É considerada a obra-prima de Leonardo Sciascia (1921-1989). O dia da coruja chega-nos agora pela mão da Editorial Presença, com tradução de Filipe Guerra. Sciascia, que produziu nas áreas do romance, da poesia e do conto, era natural da Sicília e a sua literatura voltou-se para as questões sociais, destacando-se o foco na máfia como tema, tal como acontece neste romance que aqui trazemos hoje.

Em O dia da coruja, a acção é rápida, envolvente. Com um ritmo de policial, o autor explora a vida de uma pequena terra da Sicília, cujos habitantes são influenciados pela relação que têm com a máfia – ou pela relação que não querem ter. É assim que o autor vai tecendo a acção, mostrando a busca do capitão Bellodi pelo culpado de uma série de assassinatos. Logo de início, temos um homem abatido, sem que se saiba porquê. E temos testemunhas, mas nenhuma delas vê nada. Ninguém vê, ninguém se lembra. A polícia conta, assim, com a conivência de quem não se quer envolver – e até da súbita amnésia fingida de quem não tem como ajudar. A polícia pergunta pelos disparos, as testemunhas agem meio à toa, perguntando se alguém disparou. Da máfia também ninguém parece saber nada.

– Eu sei – disse o sargento, erguendo ao céu uns olhos cheios de paciência –, eu sei e não me interessa nada a licença. Só quero saber uma coisa, dizes-ma e eu deixo-te ir embora vender bolos aos miúdos: quem disparou?

– Porquê? Alguém disparou? – pergunta o doceiro, admirado e curioso.” (p. 14)

O problema inicial será mesmo este, o facto de as testemunhas nada verem; quem vê os assassinatos diz que não repara; quem ouve a culpa fica surdo na hora de apontar o dedo. Para a polícia, será exasperante. Para quem lê, é divertido, uma vez que, no decorrer da leitura, sobressai a ironia escancarada. De repente, num cenário em que há várias testemunhas, parece que não há forma de alguém abrir a boca.

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O que poderia ser uma investigação policial fácil esbarra, afinal, no medo de alguém ir parar às mãos da máfia – essa que assusta mais do que a polícia, essa que cavalga qualquer protecção policial. Precisamente pela falta de confiança na capacidade de protecção por parte da polícia, intui-se ainda a descrença no Estado por parte dos cidadãos. O dia da coruja é, por isso, um romance sobre o poder – não o eleito, não o institucional, mas o poder real de quem pode meter uma bala na cabeça de alguém. O que mais vai impressionando na rede tecida não é tanto o poder directo da máfia, mas a rede que, por medo, a protege; os cidadãos sem relação com ela que a vão protegendo; o poder a perpetuar-se só por ser poder.


Título: “O dia da coruja”
Autor: Leonardo Sciascia
Tradução: Filipe Guerra

Editora: Presença
Páginas: 144

Bellodi vai parecendo desempoeirado, em parte por ter sido transferido da parte continental de Itália para ali. A sua vida, que fora outra, impõe-lhe uma visão que contrasta com a dos habitantes da zona, e o seu medo também. Dele, a população vai achando que não sabe nada da vida, que não sabe como se faz o dia-a-dia na Sicília. O policial vai-se fazendo num ritmo rápido, de prosa funcional, enquanto o capitão tenta entrelaçar pistas ténues até que se percebam as malhas do poder em que se tecem os crimes. Ao longo da leitura, vamos tendo uma intenção – benévola, legal, decente – e o imbróglio em que esta se encontra perante um cenário em que o poder desafia as questões morais.

Enfrentando tudo isto, Sciascia optou por uma narrativa em que está imbuído um certo tom de leveza: a leitura avança em catadupa, entre humor e diálogos vivos, sempre apoiada por uma prosa escorreita, regra geral irónica. Finda a leitura, o leitor não terá como encaixotar o romance num só estilo, num só formato: há a estrutura do policial e há a profundidade de quem mergulha nos contextos, fazendo de O dia da coruja uma experiência que vai, para o leitor, muito além da necessidade de concatenar os elementos e atingir um fim, uma solução. Nisto, a acção acontece em dois planos. De um lado, há a procura de Bellodi, o intuito de juntar peças; do outro, há o lado oculto que, acontecendo em segundo plano, permite a falência do primeiro.

O romance não permite qualquer redenção. Em vez disso, é a vida que existia. Chutadas para canto estão a moral e a justiça. Em cima da mesa, está a permanente vitória da mentira, do medo, da injustiça, da impunidade do crime. Com isto, a justiça e a lei tornam-se inúteis perante a lei da selva que acontece nas ruas: tanto os acordos ocultos como a força da violência em bruto, que parecem substituir a lei, permitem a continuidade do crime, garantindo-lhe a impunidade. E, neste cenário, a própria lei é encarada de forma irónica, quase como um devaneio de um ingénuo, uma teoria num papel, escrita por quem não tem de lidar com ela, por quem não fica sujeito à discricionariedade do poder das ruas – não eleito, não treinado, não nomeado, não nada.

O informador nunca acreditou, nem podia acreditar, que a lei fosse imutavelmente escrita e igual para todos: porque, entre os ricos e os pobres, entre os sábios e os ignorantes, havia os homens da lei; e estes homens podiam estender só para um lado o braço do arbítrio, enquanto para o outro lado deviam proteger e defender. Um arame farpado, um muro.” (p. 31)

Com isto, Sciascia fez um romance que se volta para a condição do indivíduo no seu contexto: ao ver os indivíduos em acção, é o contexto que salta mais à vista para quem lê. A prosa aparentemente sem pretensões é, afinal, coisa limada, texto para ir directamente ao osso, ao serviço do efeito. Assim, ao ler O dia da coruja, o leitor não se depara com pó nem com gorduras. Pelo contrário, tudo é fluidez e efeito.

A autora escreve de acordo com o antigo acordo ortográfico