Episódios traumáticos como uma arma apontada à cabeça, ameaças ou insegurança contribuíram para a saída dos portugueses das ex-colónias após o 25 de Abril e, sem o apoio psicológico atualmente prestado em situações semelhantes, muitas feridas ainda não sararam.

“Ainda hoje não consigo ver notícias de refugiados, que me lembro do que passei quando tivemos de deixar Angola”, conta à agência Lusa Susete Santos, que veio para Portugal em 1975, então com 16 anos.

Conta que o pai decidiu que era altura de a família deixar Porto Alexandre (agora Tômbua), em Angola, quando ela e a irmã foram abordadas por alegados elementos do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) que lhes disseram: “Ainda vão ser nossas. Sabemos onde moram”.

Ao medo que passou a ser constante, juntaram-se duas semanas no aeroporto de Lisboa, onde a sujidade do chão ainda é uma memória viva.

Cansaço, fome, falta de uma casa de banho limpa, de uma banheira e de um futuro” são as memórias de Susete Santos, que acabaria por ser alojada com a família num hotel em Sesimbra.

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Após o 25 de Abril de 1974, cerca de meio milhão de portugueses que viviam nas ex-colónias vieram viver para Portugal. Para alguns, foi o primeiro contacto com a “metrópole”, para outros o regresso forçado à terra de onde tinham partido.

As circunstâncias que os levaram a deixar os países africanos onde viviam e a forma como chegaram a Portugal, alguns apenas com a roupa no corpo, sem saber como iam viver, esperando vários dias no chão de aeroporto, quase sem comida e sem banho, deixaram marcas em muitos destes retornados.

Para a psicóloga Renata Benavente, “não sendo uma situação de guerra, muitos dos episódios vividos por estes portugueses representaram perigo para a sua vida ou para a integridade física do próprio ou de terceiros”.

“Todas as pessoas que estiveram expostas a fenómenos deste tipo estão em alto risco de desenvolver” Perturbação de Stress Pós-Traumático (PSPT), acrescentou a vice-presidente da Ordem dos Psicólogos.

As características pessoais, o apoio pessoal e a forma como lidam com a experiência é que influenciam o desenvolvimento, ou não, da patologia.

Cármen Sanches, 67 anos, tinha 18 quando chegou a Portugal, onde encontrou vários dedos apontados na sua direção: “Diziam que eu devia ir para a minha terra, que tinha roubado os pretos em África e que andava a roubar o trabalho dos outros. Sentia que não me viam como portuguesa e muita revolta”, conta.

E acrescenta: “Psicologicamente, atingiu-me bastante, embora eu tivesse alguma força”.

Cármen lembra-se que a família decidiu partir quando soube que existia uma ordem de matar todos os brancos que se encontravam na zona onde vivia, perto de Luanda.

Questionada sobre o apoio que recebeu, nomeadamente a nível psicológico, ri-se e desabafa: “Nunca tive ajudas nenhumas do Estado português. Valeu-me a minha família”.

Renata Benavente acredita que, mesmo passados tantos anos, “é possível desenvolver formas de ajustamento mais adequado, minimizar os sintomas para uma vida mais saudável e com bem-estar emocional”.

“A intervenção psicológica e a disponibilização de apoio desta natureza a pessoas que passaram por experiências deste tipo é fundamental”, insiste.

Olga também tem dificuldades em esquecer o que viveu a seguir ao 25 de Abril, primeiro em Angola e, mais tarde, em Portugal.

Ela e a família passaram por um tiroteio e, com 15 anos, teve uma espingarda encostada ao corpo. Dias depois estava a caminho de Lisboa, “sem nada, nem um tostão”.

“Quando vejo imagens da Palestina, da Ucrânia, lembro-me do que passei. Entendo muito bem o que estão a sentir”, diz.

Em Portugal, o choque foi “muito grande”. “As pessoas falavam, olhavam para nós com desdém, com medo que lhes pedíssemos alguma coisa”.

Episódios como estes podem resultar num conjunto de sintomas como sonhos recorrentes associados ao fenómeno, mal-estar psicológico e irritamento persistente, indica Renata Benavente.

Para algumas pessoas, como aconteceu com Susete Santos, o trauma resolveu-se com um regresso a África. “Vi a minha casa, entrei nela, com autorização da atual dona, e pisei o mesmo chão. Na porta, ainda estão vasos que foram da minha mãe. Tinha de fazer esta viagem. Para mim, foi o fechar de um ciclo”.

O primeiro voo da ponte aérea que Portugal organizou para trazer os portugueses das ex-colónias aterrou em 13 de maio de 1975. Até novembro desse ano, chegaram 463.315 cidadãos: cinco por cento da população. O Censos de 1981 atualizou esse número para 471.427.