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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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As histórias de quem viu, acudiu e viveu o descarrilamento de Soure

Susana viu o comboio descarrilar a poucos metros da cozinha. Carlos não esquece o pranto de uma criança. Adriano estava ao telefone com a mulher quando o acidente aconteceu. A reportagem em Soure.

Eram cerca das três e meia da tarde desta sexta-feira, último dia de julho, quando um comboio Alfa Pendular que ligava Lisboa ao Porto, com 212 passageiros a bordo, chocou uma máquina que estava a operar na linha, em obras, perto de Soure, e descarrilou. Do aparatoso acidente resultaram dois mortos e 44 feridos, oito deles em estado grave. E sobraram as histórias.

De quem viajava nas carruagens que ficaram retorcidas na linha e ou tentou sair dali à pressa ou ficou para ajudar, no meio do choro de crianças, de gritos de pessoas, malas a cair, fumo e pó. De quem viu o que aconteceu na aldeia do Senhor das Almas e ouviu o som do ferro a retorcer correndo até lá. E de quem acudiu, mesmo quando não devia. Estes são os seus relatos.

Descarrilamento de Alfa Pendular faz pelo menos dois mortos em Soure

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Quem viveu o acidente

O choro da menina que vai tirar o sono ao militar Carlos

Carlos Pimentel viajava na carruagem número 5, lugar 11. Sozinho, partiu de Lisboa em direção a Coimbra para passar o fim de semana e aproveitou para trabalhar no seu portátil. Foi o computador que lhe deu o primeiro sinal de que algo não estava a correr bem. “Apercebi-me de uma movimentação estranha do computador no tabuleiro, uma espécie de zig zag. Era o travão brusco do maquinista a tentar evitar o acidente, mas não conseguiu”, conta ao Observador, já de regresso ao seu destino.

Após o “grande embate”,  Carlos sentiu as malas colocadas junto ao teto a cair abruptamente no chão e fumo a sair da carruagem 6. Apressou-se a tranquilizar as pessoas que viajavam consigo, especialmente os mais idosos. “Um senhor com 50 anos estava sozinho e tinha uma cadeira de rodas junto a si, percebi que tinha dificuldade em sair do seu lugar e ajudei-o”, relata.

Depois de ultrapassar as portas automáticas que dividem as diferentes carruagens, sair do comboio parece ter sido “relativamente fácil”. “De um lado, a porta para o exterior estava trancada, do outro, bastou carregar o botão.” Graças a isso, o militar de profissão entrou e saiu várias vezes da carruagem para ajudar alguns passageiros a abandonarem os seus lugares e a levar as suas coisas. “Além da cadeira de rodas, trouxe também a mala e duas muletas do mesmo homem. Recolhi alguns pertences de outras pessoas que estavam aflitas. Na minha carruagem não ficou lá nada.”

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Nesse entra e sai, que ainda durou alguns minutos, Carlos Pimentel acrescenta que inalou bastante fumo e valeu-lhe a máscara no rosto. Conta ainda que o revisor do comboio estava “visivelmente afetado”, mas não apresentava ferimentos, e também ajudou naquela que foi “a árdua tarefa” de retirar as pessoas “o mais rapidamente possível”.

Já cá fora, na linha de comboio, o militar, também ele sem qualquer ferimento, garante ter visto “parte de um corpo”, provavelmente uma das duas vítimas mortais do acidente. “Não sei precisar se era um dorso ou uma anca, mas vi pele humana. Aí percebi que alguém tinha morrido e que o acidente era mesmo grave.”

O que também não lhe sai da memória é o choro de uma menina de cinco anos que viajava com a mãe. Foram ambas hospitalizadas. “A mãe ficou logo imobilizada entre os bancos e a menina com o pânico estava completamente aos berros, num pranto”, recorda ainda com a voz a tremer. “Tinha ferimentos nos lábios e à volta da face, provavelmente dos vidros partidos da janela. Foi um bombeiro que lhe pegou ao colo e a conseguiu acalmar, aí ela parou de soluçar, mas este choro vai-me tirar o sono.

Encaminhado para o Pavilhão Multiusos de Soure, para onde foram transportados 180 passageiros por camionetas da autarquia — 11 seriam transportados para três hospitais –, Carlos Pimentel garantiu aos enfermeiros que se sentia bem. “Não me deram mais atenção e liguei logo para a minha esposa me vir buscar.”

Adriano, o GNR que fez uma cadeira com os braços para ajudar uma idosa

Adriano Fortes, oficial da GNR, viajava na mesma carruagem, mas no lugar 86. Partiu sozinho de Santa Apolónia em direção a Braga e quando o acidente aconteceu estava ao telefone com a sua mulher. “Ela pensou que eu estaria a passar por um túnel, pedi-lhe para não desligar e quando o comboio parou expliquei-lhe que tínhamos descarrilado, mas que eu estava bem.”

Se uma mão segurava o telefone, a outra segurava “com todas as forças” num banco. “Firmei-me a um banco, acho que foi isso que me salvou. Muita gente à minha volta vinha a dormir e a surpresa foi ainda maior.” Adriano adianta que o comboio descarrilou cerca de 500 metros até parar e recorda a “nuvem de fumo” que viu logo a seguir. “Vinha do lado da janela e com o meu companheiro do lado tentamos partir o vidro com o pé, não conseguimos. Só depois descobri o martelo. Há uma impotência humana muito grande numa situação destas.”

Conseguiu sair graças à porta entreaberta que dava acesso ao exterior e já com os pés na linha, a paisagem que via era “assustadora”. “Vi combustível a cair, cabos elétricos e destroços do comboio espalhados pela linha. Sinceramente, temi o pior.”

Dividido entre a vontade de abandonar rapidamente o local e ajudar os mais velhos que ainda se encontravam dentro da carruagem, Adriano não resistiu e regressou a comboio. Com o seu companheiro de banco, fez “uma cadeira humana” para conseguir transportar uma senhora de 80 anos que se queixava dos joelhos e dos braços para uma ambulância. Viu também pessoas com cortes de vidros nos braços e no rosto e outras que diziam ter batido com a cabeça e andado “literalmente aos encontrões”.

Com o corpo dorido e todas as suas coisas consigo, conta que algumas pessoas que saíram “aparentemente bem” do comboio apressaram-se a chamarem táxis e ubers para saírem dali. Já ele preferiu esperar pela carrinha da Câmara Municipal de Soure para ser analisado no Pavilhão Multiusos.

“Quando lá cheguei, vi um ambiente organizado, feridos ligeiros, pessoas a hidratarem-se e outras a conversarem com psicólogos do INEM. Ficaram com os meus contactos e pedi boleia a uns amigos para Aveiro, onde a minha mulher me foi buscar.” O polícia garante nunca ter vivido um acidente deste género, esperou que o pior acontecesse e lamenta não ter ajudado mais pessoas. “Agora sinto que podia ter feito mais, mas, sinceramente, só queria sair dali.”

André, o jornalista que achou que o comboio nunca mais parava

André Rito é jornalista, viajava na carruagem número 4, partiu de Lisboa em direção a Braga, onde ia passar o fim de semana. Ao Observador, recorda uma carruagem “praticamente cheia”. “O comboio não ia na sua velocidade máxima, tínhamos abrandado anteriormente porque passamos um túnel e cruzámo-nos com outro comboio.”

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André ouviu um estrondo e percebeu que o comboio tinha descarrilado. “Vi imediatamente pó a entrar pela janela e muitos detritos. Foi um momento muito rápido”, explica, acrescentando que sentiu o Alfa Pendular “desgovernado”, percorrendo 500 metros até parar completamente. Já com o comboio imobilizado, o jornalista conta que uma rapariga próxima de si gritou para que as pessoas se deitassem no chão e segurassem na cabeça para se protegerem. “Foi o que fizemos.”

Pouco tempo depois, André pegou na mochila, “onde tinha tudo o que precisava”, e conseguiu sair do comboio, ainda com algumas dores nas costas e na cabeça, por ter batido no banco da frente. “Vi peças soltas e senti muito cheiro a combustível”, descreve, acrescentando que o local onde tinham parado era “isolado e com campos agrícolas à volta”.

Com os restantes passageiros, a intenção era apenas uma: procurar um lugar seguro. “Não sabíamos bem para onde ir, a nossa sorte foi descobrirmos uma cancela e conseguirmos abri-la. Depois vimos chegar logo as ambulâncias e descansámos.”

O jornalista lembra que algumas pessoas ficaram encarceradas no interior do Alfa Pendular, mas não foi o caso de uma família indiana que viajava como uma criança de 8 anos. “Reencontrei-os mais tarde no pavilhão e estavam bem.” Foi nesta espécie de hospital de campanha improvisado que diz ter encontrado enfermeiros que lhe mediram a tensão, auscultaram-no e lhe deram um analgésico para as dores. No local havia cadeiras, camas, garrafas de água, fruta e pacotes de açúcar, três passageiros viajavam com animais de companhia, mas nenhum precisou de cuidados.

Da mochila, André retirou o telemóvel e ligou ao pai para o ir buscar. Já em Braga, o seu destino final, concluiu que o acidente foi rápido demais para poder pensar, mas tinha apenas um receio. “Tive medo que o comboio nunca mais parasse.”

Quem viu

A visão de Susana a partir da cozinha e a corrida de havaianas

Primeiro foi o estrondo e um “barulho esquisito de ferro contra ferro, um ruído seco e arrastado que vinha a caminhar para cá”. Depois, a “visão dos diabos”: “O comboio com aquela velocidade toda dele a arrastar a máquina toda amassada à frente, uma nuvem escura de fumo muito forte que me tapou”.

Eram três e meia da tarde quando Susana Marques, 58 anos, residente da aldeia do Senhor das Almas, acabada de chegar a casa e distraída nos seus afazeres na pequena cozinha à frente da porta, viu o descanso ser interrompido pelo descarrilamento do Alfa Pendular que colidiu numa máquina de manutenção que trabalhava nas linhas de ferro.

São oito da noite, mas as mãos de Susana ainda tremem ao recordar o acidente. O cabelo castanho preso fragilmente com uma mola baloiça obedientemente ao ritmo dos gestos com que ilustra o que presenciou horas antes. “Falava sozinha, pois, não tinha ninguém comigo. Só gritava: ‘O que é isto?! A cabine está toda partida!‘”.

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Saiu à rua ainda “toda despenteada, toda mal vestida” movida pelo espanto, conta ela. Pouco ou nada viu: rapidamente foi envolvida por uma nuvem de poeira escura que a cegou antes de assentar nas flores do jardim. Assim que dispersou, Susana correu para junto do carro “para saber se tinha sido atingido pelas pedras”. Só depois é que se aproximou do comboio.

Não foi ela quem chamou os bombeiros: “Fiquei sem ação, não sabia o que fazer perante aquilo a que tinha assistido. Fiquei parada”, justificou. Lá ao fundo, nas últimas carruagens, viu um passageiro que ajudava os outros a sair do comboio. Pensou em juntar-se a ele, mas não podia: “Estava de Havaianas” — explica Susana, apontando para os pés — “e estava com receio. Não tinha telefone e podia só atrapalhar“.

Quem acudiu

João, o homem que levou dois feridos ao Centro de Saúde e levou uma reprimenda

Os bombeiros chegaram “muito rápido”, garante Susana, que assistiu ao acidente. Mas a eles juntaram-se também os residentes da aldeia do Senhor das Almas que, alertados pelo rugido do ferro, decidiram acudir os passageiros nos primeiros instantes após o descarrilamento.

Um deles foi João Neves, 39 anos. Encostado ao muro de uma casa com o filho ao colo, conta ao Observador como ajudou os passageiros a sair das carruagens. “Fiz uma coisa que, pelos vistos, não devia ter feito”, lamenta João: “Peguei em dois feridos ligeiros e levei-os ao centro de saúde”.

Alertado pelas autoridades que todos os passageiros do comboio precisavam de ser contabilizados, teve de os “devolver”, conta ele com um sorriso contido nos lábios. Depois juntou-se às equipas médicas: “Fiquei aqui como voluntário, a ajudar os feridos mais ligeiros”.

João Neves viu crianças da idade do filho — que, abstraído da conversa, vira costas ao comboio para ver o nascimento da Lua no céu de Soure — dentro do Alfa Pendular. Mas diz-se “tranquilo” com tudo o que viveu: “Só fiz o que tinha de ser feito, não é?”, termina ele com uma sacudidela nos ombros.

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