“Julia, estás a deitar a tua vida toda pelo cano abaixo”, disse uma noite o sugar daddy, preocupado com o futuro da sua protegida. Foi uma frase que também ouviu dos professores, ecoando anos de rebeldia, de abusos de substâncias, uma infância complicada, falhanços e desilusões. Em “Down the Drain”, livro de memórias lançado nos Estados Unidos a 10 de outubro — ainda sem edição portuguesa —, Julia Fox conta em detalhe as experiências que viveu a crescer na Baixa de Nova Iorque, entre clubes noturnos e casas de traficantes. Recrutando um exército de desajustados pelo caminho, tornou-se it girl e musa da cena underground muito antes de ser repentinamente catapultada para a fama, ao contracenar com Adam Sandler em “Uncut Gems”, produção lançada pela Netflix em finais de 2019.
O breve namoro com Kanye West, então recém-separado de Kim Kardashian, pô-la nas bocas do mundo no início de 2022. Mas Julia Fox, a quem os fãs tratam carinhosamente por weird it girl (“it girl esquisita”, em tradução livre), transcende a relação mediática com o rapper, adorada pela honestidade brutal com que se expõe ao mundo, tanto no TikTok — onde um vídeo do seu caótico e modesto apartamento se tornou viral — como em “Forbidden Fruits”, podcast que apresentou com a amiga Nikki Takesh.
Divorciada, mãe de um rapaz, encaixou nos 33 anos anos de vida um pouco de tudo: esteve internada num hospital psiquiátrico, sobreviveu a três overdoses, posou nua para a Playboy, publicou dois livros de fotografia, trabalhou como dominatrix numa “masmorra de sexo”, lançou uma marca de roupa, expôs poemas, desenhos e fotografias em galerias de arte, tornou-se uma estrela. Neste artigo, reunimos 5 episódios de “Down the Drain” que marcaram a vida invulgar de Julia Fox.
O pai era acumulador e envolveu-se com uma das suas amigas
Filha de mãe italiana e pai norte-americano, Julia Fox nasceu em Itália e passou o início da infância em casa do avô, num vilarejo desfavorecido nos arredores de Milão. Aos 6 anos, o pai levou-a para viver em Nova Iorque, deixando a mãe, o avô e o irmão mais novo para trás. Na escola, os colegas gozavam com o sotaque carregado e sentia-se sozinha. “À noite, deito-me na cama e choro. Abafo o som com os meus peluches porque não quero que ele [o pai] acorde. Estou a tentar ser uma menina crescida, mas sinto falta da minha mãe e do meu irmão. E sinto especialmente falta do conforto do meu avô”, escreve sobre os primeiros meses nos Estados Unidos.
O apartamento onde morava em Yorkville, um bairro modesto de Manhattan, era um depósito de artefactos inúteis e lixo que o pai recolhia na rua. Fox descreve-o como um “acumulador” que arranjava pequenos biscates na construção civil para sobreviverem, deixando-a trancada no quarto durante dias inteiros para ir trabalhar. Quando Julia ainda era criança, o pai manteve um caso secreto por vários anos com a mãe da sua melhor amiga, Mia, culminando num episódio traumático quando a mãe descobriu, numa das suas raras visitas a Nova Iorque. Fox teve de mudar de escola e foi proibida de ver Mia. Anos mais tarde, quando era adolescente, o pai viria a envolver-se também com uma das suas melhores amigas. A situação resolveu-se quando Julia, por vingança, fez uma chamada para as autoridades da emigração, que deportaram a jovem (italiana) de volta para a terra natal, impedida de voltar aos Estados Unidos por vários anos. Apesar de manterem uma relação violenta e disfuncional, os pais de Fox continuaram sempre casados.
Roubava em lojas — e um dia foi apanhada
Cresceu sem acesso às coisas bonitas que via as meninas ricas usarem nos bairros de Upper East Side, por onde passava regularmente no percurso entre Yorkville e o Central Park. “A única maneira de ter, era tirar”, escreve. Consciente da sua pobreza — e sabendo que o pai não lhe daria dinheiro — começou, aos 12 anos, a roubar roupa em diferentes lojas, fazendo um alarido, levando dezenas de peças para os provadores de uma só vez, para se fazer passar por menina rica, afastando os radares dos funcionários. A técnica revelou-se (quase) infalível. À Vanity Fair, confessou que a peça mais cara que alguma vez roubou foi uma clutch Oscar de la Renta em pele de cobra, que enfiou dentro das suas calças Juicy Couture antes de sair da loja.
Numa das suas “missões criminosas”, no célebre departamento comercial Bloomingdale’s, foi apanhada a roubar com uma amiga. Foram postas na lista negra, interditas de entrar. Anos mais tarde, já depois de ter entrado em “Uncut Gems”, fechou o ciclo ao ser convidada pela empresa para fotografar uma campanha comercial.
Sobreviveu a três overdoses
Aos 11 anos, fumou erva pela primeira vez. Passados largos anos, enquanto recuperava do vício em heroína, descreveria a cannabis como o seu “portal de entrada” para a adição. Ao longo da adolescência, consumiu ecstasy, cocaína, PCP (Fenciclidina), LSD, Aderall e Xanax em doses elevadas, em festas que duravam até de manhã, com personagens caricatas e “desajustadas” da cena noturna de Nova Iorque. Sobre a primeira experiência com a heroína, escreve: “É sobre este sentimento que Lou Reed canta nos The Velvet Underground (…) Sei que estou a brincar com o fogo, mas é demasiado bom para resistir.”
O abuso de substâncias esteve sempre tão presente no meio em que se movimentava, que perdeu duas das suas melhores amigas, vítimas de overdoses fatais. “Perdi a minha melhor amiga há 4 anos. Foi o amor da minha vida. A minha alma gémea. Minha irmã”, escreveu no Instagram sobre a morte de Gianna Valdes. Por seu lado, Fox sobreviveu a três overdoses, a primeira quando ainda estava no liceu, depois de uma festa num hotel, com um grupo de homens ricos que tinha conhecido nessa noite. Acordou no hospital. Acabaria por abusar de substâncias noutras duas ocasiões, uma delas em heroína, na noite em que fez 20 anos.
Teve uma relação abusiva com um traficante que foi preso
Aos 14 anos, depois de uma temporada de estudos em Itália, Julia implorou aos pais que a deixassem passar o Natal em Nova Iorque. Na noite em que chegou, encontrou-se com uma amiga em casa de um traficante de droga. Lá, conheceu Geo (a quem, no livro, se refere pelo nome fictício Ace), que lhe ofereceu ecstasy. Envolveram-se e, passadas poucas horas, Geo fez uma chamada para a mãe a contar que tinha conhecido a mulher da sua vida. Nessa mesma noite, taturam os nomes um do outro no corpo. Geo tinha problemas com a justiça relacionados com tráfico de drogas e agressões violentas.
Durante vários meses, o casal morou escondido em casas de amigos, vivendo uma relação que flutuava entre a paixão intensa e os abusos físicos e verbais. Quando os pais de Julia, perceberam que a filha estava desaparecida, chamaram a polícia e colaram vários cartazes pela cidade à sua procura.
“Na altura, não existia mais ninguém, só nós. Eu era uma fugitiva e ele era tudo o que eu tinha. A nossa ligação era tão crua, tão apaixonada e tão maravilhosamente disfuncional”, recordou no Instagram. Julia era menor de idade, Geo era adulto. Após meses de fuga, entretanto refugiados em casa da mãe do traficante — de onde Julia foi impedida por ele de sair — a polícia encontrou-os. Geo foi condenado por vários crimes, servindo pena de prisão em Riker’s Island, a partir de onde perseguia a adolescente com chamadas, ameaças de morte e cartas, às quais juntava desenhos aterrorizantes. O episódio culminou com Julia a ser internada um hospital psiquiátrico.
Trabalhou como dominatrix e teve um sugar daddy
Depois de ser apanhada a roubar numa discoteca, com dois bilhetes de identidade falsos nos bolsos, ficou em liberdade sob a condição de encontrar um trabalho. Candidatou-se online a uma vaga para ser dominatrix e foi contratada no mesmo dia. Sob o nome Mistress Valentina, começou a atender clientes no sítio a que se refere como “masmorra de sexo”, descrevendo extensivamente os pedidos pervertidos que lhe faziam, mas também o ambiente competitivo que existia entre as colegas (uma das meninas urinou num par de Jimmy Choos que um cliente lhe ofereceu).
O seu primeiro cliente era conhecido como Smoking Stewart (“Stewart fumador”, em português). Nu, estendeu-se no chão, com uma máscara na cara e um instrumento de tortura no orgão sexual, e pediu-lhe que fumasse um maço de Marlboro Lights. “Observei-o num silêncio atordoado enquanto ele atarrachava um tubo de borracha à boquilha da máscara e explicou, numa voz distorcida, que eu tinha de fumar os cigarros em cadeia e soprar o fumo através do tubo, que estaria dentro da sua boca”, descreve.
No dia em que resolveu despedir-se, foi chamada para visitar um cliente externo, que acabaria por se tornar seu sugar daddy. Rohan (nome fictício) era um homem mais velho, abastado, que a ajudou a dar uma volta à sua vida. Pagava-lhe uma mesada, um apartamento no bairro de Soho, ofereceu-lhe um Mercedes, uma Birkin bag e investiu na marca de roupa que Julia lançou com uma das suas melhores amigas. Ao fim de 5 anos de uma relação com amor — e alguns tumultos — acabaram por seguir caminhos separados.
Kanye West pediu-a em namoro um dia depois de a conhecer
Depois de “Uncut Gems”, a vida de Julia Fox deu uma valente volta. Conheceu o agora ex-marido, Peter Artemiev, participou num filme de Steven Soderbergh (“No Sudden Move”, 2021) e foi mãe de Valentino. A par da crescente atenção mediática, foram vários os homens poderosos que a procuraram, entre eles Kanye West, a quem se refere no livro como “The Artist”. Conheceram-se quando o rapper a convidou para ir passar a Passagem de Ano, enviando o jato privado para a transportar, juntamente com um grupo de amigas, para Miami. Na segunda noite que passaram juntos, pediu-a em namoro, proposta que fez Julia rir às gargalhadas, mas que eventualmente aceitou.
No primeiro dia, West contratou uma equipa de stylists composta por duas amigas de Fox para passarem a vesti-la no dia-a-dia. “Pensei imediatamente num episódio de ‘Keeping Up With the Kardashians, onde [West] fez a mesma coisa à ex-mulher no início do namoro”, escreve. “Isto parece tudo tão surreal. Não acredito que isto é a minha vida.” Uma noite, depois de irem juntos ao teatro, Julia recebeu uma mensagem de uma das amigas stylists, a pedir-lhe que se encontrasse com ela na casa de banho, onde era esperada com mudas de roupa para vestir ao jantar. “É um pouco estranho que ele não me tenha simplesmente dito que não gostava do meu look original. Sem protesto, visto as roupas (…) O seu fotógrafo tira-me fotografias a noite toda, encorajado pelo artista. Parte de mim sente-se como um macaco de circo, mas passei a minha vida toda a representar, por isso qual é o problema?”
Ao longo do breve namoro de quase 2 meses, West ofereceu-se para lhe pagar implantes mamários (oferta que gentilmente recusou) e pediu-lhe que escrevesse um texto sobre como se tinham conhecido para a Interview Magazine, tendo depois incumbido um amigo de editar a história, por não gostar da versão honesta de Julia. Assim que terminaram o namoro, perdeu o contrato de um milhão de dólares que tinha assinado com uma marca italiana. “Era contingente de seres namorada dele”, explicaram-lhe. West ainda tentou convencê-la a assinar um acordo de confidencialidade que a impediria de alguma vez fazer revelações sobre a relação, mas Fox recusou. “Não posso ser teu amigo se não assinares”, ameaçou ele. A resposta seguiu curta e grossa: “Vou sobreviver”.