O BCE garante que ainda “é prematuro” falar em descer juros mas “o primeiro pequeno passo” está dado, dizem analistas. Christine Lagarde reconheceu esta quinta-feira que há sinais de “estabilização” no ritmo de aumentos salariais na zona euro – aumentos que quando ultrapassam o crescimento da produtividade são uma dor de cabeça para qualquer banco central porque significam, normalmente, inflação. Mesmo os aumentos que estão a existir, acrescentou a presidente do BCE, estarão a ser absorvidos pelas empresas que, desta forma, estão a sacrificar parte dos lucros e não estão a repercutir os custos salariais maiores em preços mais elevados. É exatamente este o cenário que o BCE precisa de confirmar para poder aliviar o atual aperto monetário.

Foi a terceira reunião consecutiva em que o Banco Central Europeu (BCE) manteve inalteradas as taxas de juro, com a taxa dos depósitos – a mais importante para a política monetária neste momento – a manter-se nos 4% que se acredita ser o “pico” deste ciclo. A dúvida, agora, é quanto mais tempo é que o BCE irá manter as taxas de juro neste “pico” e, também, quanto mais tempo será necessário mantê-las em níveis considerados “restritivos” – isto porque se considera que qualquer taxa de juro superior a 2%-2,5% está deliberadamente a restringir a atividade económica com o objetivo de controlar a inflação.

Ora, o discurso de Christine Lagarde, esta quinta-feira, foi considerado pelos analistas mais dovish, expressão normalmente usada quando um banqueiro central dá mais ênfase à desaceleração económica e aos fenómenos que poderão levar a que a inflação continue a descer (e menos ênfase dada ao perigo de inflação e à necessidade de manter os juros elevados, o que seria hawkish). Mas apesar deste tom mudaram pouco as expectativas dos investidores nos mercados financeiros: a negociação dos futuros de taxas de juro continua a apontar para que 2024 termine com a taxa de juro 136 pontos-base mais baixa, o que significa um valor entre 2,5% e 2,75% – ou seja, um nível que, a confirmar-se, ainda será ligeiramente restritivo.

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Antes disso, porém, é preciso dar o primeiro passo que é sinalizar a primeira descida das taxas de juro, que poderá levar os juros para 3,75% ou, mesmo, para 3,5%. Para Jörg Krämer, economista do banco alemão Commerzbank, esse passo está “cada vez mais próximo” mas já está dado “o pequeno passo” de falar em “estabilização” dos aumentos salariais, um dos fatores que estão a preocupar mais o BCE porque serão decisivos para a evolução da inflação nos próximos meses.

“Ao contrário do que [Lagarde] tinha dito em dezembro, afirmou que existem sinais de que o crescimento dos salários está a estabilizar”, escreve Jörg Krämer, acrescentando que “também foi feita uma referência à compressão das margens de lucro das empresas”, o que também é um possível prenúncio de inflação mais controlada. “Globalmente, o BCE deu nesta quinta-feira um pequeno passo no caminho em direção à decisão de cortar as taxas de juro, embora Lagarde tenha sublinhado que é preciso mais dados que comprovem que as pressões inflacionistas estão a diminuir”.

Esses dados podem chegar já no início de março, quando o BCE divulgar as projeções macroeconómicas atualizadas. Mas, para Filipe Garcia, economista do IMF – Informação de Mercados Financeiros, “todo o discurso de Lagarde foi no sentido de preparar uma mudança de atitude relativamente à política monetária, abrindo um pouco o espaço para corte de taxas dado que se reconheceu que os indicadores de inflação estão no bom caminho e a economia europeia está, ainda, a desacelerar”.

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“Fica a sensação de que, embora não querendo dizer já que o banco central irá começar a discutir cortes de taxas, isso é algo que está cada vez mais em cima da mesa“, refere o especialista. Porém, a perspetiva mais consensual nos mercados financeiros continua a ser de que só em junho virá o primeiro corte efetivo da taxa de juro. “Enquanto a taxa de inflação continuar mais perto de 3% do que de 2%, o BCE não vai estar disponível para fazer cortes nas taxas de juro”, aposta Carsten Brzeski, economista-chefe do banco holandês ING, que retira que “o primeiro corte não virá antes de junho“.

A inflação (global) na zona euro subiu em dezembro para 2,9% mas a inflação subjacente (que exclui itens mais voláteis como preços da energia e da alimentação não processada) foi medida em 3,9%, o que ainda é um nível preocupante para o BCE porque é quase o dobro do objetivo. As taxas de juro estão “em níveis que, mantidos durante um período de tempo suficiente, irão fazer um contributo significativo” para aproximar a inflação do objetivo de 2%, garantiu o BCE. Mas a descida da cotação do euro face ao dólar confirma que a apreciação feita pelos mercados é que a primeira descida dos juros terá ficado um pouco mais próxima, nesta quinta-feira.

Cotação do euro face ao dólar mostra como o euro perdeu terreno face à divisa norte-americana na altura em que Christine Lagarde começou a falar (e, também, quando saíram dados positivos para a economia dos EUA). FONTE: Trading Economics

Carsten Brzeski, do ING, diz que, “nos próximos meses, os desenvolvimentos na inflação vão ser determinados pela evolução de duas forças contrárias”. Por um lado, diz o especialista, pode haver mais desinflação (descida do ritmo de inflação, ou subida dos preços mais lenta) ou “até, mesmo, deflação (descidas dos níveis de preços) como consequência de uma descida mais acentuada da procura económica”.

Por outro lado, há o risco de que possam surgir novas pressões inflacionistas relacionadas com os conflitos na Ucrânia ou no Médio Oriente, incluindo as ameaças ao comércio internacional através do canal do Suez – tudo isto são fatores que podem fazer subir os preços na economia e, por isso, retardar a redução dos juros por parte do BCE, diz Carsten Brzeski.

Neste contexto de incerteza, e com novas projeções económicas a serem preparadas até março, não havia muita razão para o BCE alterar aquilo que vem dizendo. “O consenso à volta da mesa no Conselho do BCE é que é prematuro discutirem-se cortes na taxa de juro”, sublinhou Christine Lagarde, que ainda na semana passada, em Davos, tinha dito que “quando alguns dizem que é provável [que os juros comecem a descer no verão] eu também acho que é provável“.

“Reitero o que disse na entrevista [à Bloomberg], embora não me responsabilize por aquilo que disseram que eu disse“, afirmou a presidente do BCE.

É “provável” que o BCE corte as taxas de juro no verão, diz Christine Lagarde

Funcionários contra Lagarde? Líder do BCE trazia resposta na algibeira

“Mario Draghi estava cá para servir o BCE e, agora, o BCE parece estar cá para servir Christine Lagarde“, escreveu um funcionário do banco central numa sondagem anónima que é feita anualmente por um sindicato e cujas conclusões – muito negativas para Lagarde – foram noticiadas esta semana pelo jornal Politico.eu.

Nesta conferência de imprensa, a francesa pareceu colocar em causa a metodologia desse estudo de opinião, dando a entender que não é representativo. “Nós [no BCE] também fazemos muitas sondagens e fazemos sondagens com métodos técnicos nos quais podemos confiar“, diz Lagarde, que trazia claramente “no bolso” uma resposta a esta pergunta.

“Nessas sondagens é comum perguntar se as pessoas são felizes a trabalhar no BCE” e “mais de 60%” dos funcionários costumam responder, o que é uma amostra mais representativa do que a sondagem do sindicato.

A essa pergunta, garante Lagarde, mais de 80% dizem que estão felizes a trabalhar no BCE e mais de 75% dizem que recomendariam a um amigo trabalharem na instituição. “Estou muito orgulhosa e honrada por liderar esta instituição e servir a população da zona euro – e vou continuar a fazê-lo“, rematou Lagarde.

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