Abdul Bashir matou duas mulheres no Centro Ismaili, em Lisboa, há um ano. A faca que usou no dia 28 de março de 2023 andava consigo, dentro de uma mochila, desde janeiro, e fazia parte dos utensílios de cozinha da casa onde vivia com os três filhos menores. A hipótese de terrorismo, apesar de afastada publicamente na altura, só foi totalmente descartada pela investigação este ano, pouco antes de deduzida a acusação a que o Observador teve acesso. O homem está agora acusado de 11 crimes: dois de homicídio agravado, seis de homicídio agravado na forma tentada, dois de resistência e coação sobre funcionário e um de detenção de arma proibida.
Na altura surgiram muitas dúvidas: não era conhecido o motivo dos crimes, não se sabia onde Abdul Bashir tinha conseguido a faca que usou para matar duas jovens que trabalham no Centro Ismaili e ainda não era certo o que tinha acontecido dentro daquele edifício, naquela manhã. Sabia-se, no entanto, que as duas vítimas estavam a tratar do processo de Abdul Bashir, que tinha aulas de português e que contava com a ajuda daquele centro, uma vez que tinha estatuto de refugiado.
Agora, com a acusação deduzida pelo Ministério Público a poucos dias de completar um ano desde o crime, é possível perceber que Abdul Bashir enviava várias mensagens às vítimas, insistindo que estas o ajudassem — numa das mensagens, Adbul dizia que amava uma das mulheres que matou. E é também possível saber que estas respondiam que o tom utilizado nas mensagens não era adequado, tendo começado a colocar barreiras. Aliás, a primeira mensagem foi enviada no final de novembro de 2021, um mês depois de o afegão ter chegado a Portugal.
Abdul Bashir queria, segundo o MP, que alguém o ajudasse a tratar dos três filhos, que estavam na escola, e queria também sair de Portugal, por considerar que não estava a receber a ajuda de que precisava. Para o afegão, a responsabilidade, lê-se no despacho, seria das vítimas, uma vez que eram estas que estavam com o seu processo.
Uma faca de 13,9 cm e duas mortes violentas
O Ministério Público não conseguiu perceber a razão pela qual Abdul começou a transportar consigo uma faca de cozinha, de 13,9 cm, dentro da mochila, embrulhada em guardanapos. Mas estes episódios começaram a acontecer em janeiro, praticamente na mesma altura em que este homem começou a enviar e-mails a Zhara Aga Khan, filha do Príncipe Aga Khan IV. A conversa era, no entanto, unilateral — nunca existiu uma resposta às palavras de carácter amoroso, refere o despacho de acusação.
No dia em que matou duas mulheres, Abdul Bashir levou a faca de cozinha consigo para o Centro Ismaili, como era habitual. Abdul era, aliás, um homem rigoroso, sublinha o MP. Mas nessa manhã, quando entrou na sala para a sua aula de Língua Portuguesa e Conversação, disse ao professor “boa fortuna”, sublinhando que era mesmo isto que queria dizer e não “boa sorte”. Nesse momento, o professor terá estranhado a resposta.
A meio da aula, depois de ter recebido uma mensagem de um primo, que o informava ter conseguido encontrar uma casa, Abdul saiu da sala e fez uma chamada para o mesmo contacto. O conteúdo da chamada não é conhecido, mas foi nesse momento que o afegão se dirigiu à sala 21, onde estavam as duas vítimas — uma sentada numa mesa oval e a outra dentro de um gabinete forrado a vidros.
Abdul deu vários golpes no pescoço das duas vítimas, tendo estas ainda gritado por ajuda. Ao ver que uma delas resistia, o afegão terá voltado, duas vezes, a atacá-la. Pelo caminho, e numa tentativa de ajudar, outras duas pessoas que estavam dentro do Centro Ismaili foram alvo de tentativa de homicídio, mas conseguiram escapar. Aliás, refere o MP, que por duas vezes, Abdul só não conseguiu atingir com a faca outras duas pessoas, porque terá escorregado no sangue que estava espalhado pelo chão.
Este cenário só teve fim com a chegada da PSP, que disparou cinco tiros contra as pernas de Abdul, motivo que o fez parar. Aliás, também o modo como os agentes atuaram foi alvo de análise, mas o Ministério Público concluiu que todos agiram em legítima defesa.
Perícias consideram que Abdul é inimputável. MP não pede expulsão de Portugal
Os relatórios da perícias psiquiátricas e psicológicas determinaram que Abdul é inimputável e que, tanto quando cometeu os crimes, como neste momento, não tem plena consciência daquilo que fez e daquilo que aconteceu. Aliás, refere o Ministério Público que o afegão “padecia e ainda padece de de anomalia psíquica, desde logo um quadro psiquiátrico de esquizofrenia e de uma perturbação da personalidade mista, designadamente perturbação de personalidade narcisista e perturbação de personalidade antissocial”.
Abdul será julgado por um tribunal coletivo, mas nunca será sujeito a uma pena de prisão, mas sim a uma medida preventiva. Tendo em conta que “existe uma elevada probabilidade de o arguido” poder praticar outros crimes “da mesma natureza”, o Ministério Público pediu ainda que fosse aplicada a medida de segurança de internamento.
Além disso, adianta também o MP, não será pedida a medida de expulsão do território português, precisamente por ser inimputável.
A chegada de Abdul Bashir a Portugal
O despacho do Ministério Público revela ainda que Abdul Bashir alterou o seu nome pouco antes de viajar para Portugal, motivo pelo qual foi concedido o estatuto de refugiado ainda na Grécia e não foi feita a ligação com o mandado de detenção europeu emitido pelas autoridades gregas em seu nome, no ano passado. O afegão é suspeito de ter incendiado o contentor onde dormia no campo de refugiados em Lesbos e, por consequência, é também suspeito da morte da mulher, que não sobreviveu ao incêndio — motivo do mandado de detenção europeu que foi emitido em seu nome ainda antes de entrar em Portugal.
Abdul Bashir chegou ao campo de refugiados em Lesbos com a sua família em 2019 e, pouco tempo depois, um incêndio acabou por matar a sua mulher. Na noite do incêndio, defendem as autoridades gregas, Abdul terá deixado uma botija de gás ao lado da cama da mulher, que dormia, e ateou fogo. Sem tentar apagar as chamas, Abdul terá tirado do interior do contentor os três filhos, deixando a mulher para trás. Depois terá ainda impedido um dos vizinhos de ajudar.
Após o incêndio, Abdul Bashir e os três filhos foram transferidos da ilha de Lesbos para o continente grego e, nessa altura, lê-se no despacho de acusação, pediu a alteração do seu apelido — de Khil para Kheili — e da sua data de nascimento — de 1990 para 1994. Nessa altura, foi apresentado um alegado documento do Afeganistão e as autoridades gregas aceitaram.
Para o Ministério Público, estas duas alterações tiveram impacto na entrada de Abdul Bashir em Portugal e na investigação do incêndio no campo de refugiados, uma vez que não era possível saber onde estava o afegão. Com tais mudanças, não foi identificada nenhuma irregularidade no processo de verificação a que estão sujeitas todas as pessoas que têm estatuto de refugiado. Foi por esta razão, acredita o MP, que a entrada de Abdul Bashir em Portugal foi admitida.
Hipótese de terrorismo só foi afastada no início deste ano
Um dia depois da morte das duas mulheres no Centro Ismaili, a 29 de março do ano passado, a Polícia Judiciária afastou logo a hipótese de terrorismo. “Não há um mínimo indício, um único sinal de matriz religiosa”, explicou aos jornalistas Luís Neves, diretor nacional da PJ. No entanto, esta hipótese só foi totalmente descartada pelo Ministério Público no início deste ano, revela o despacho de acusação.
Tanto o DCIAP como a Unidade Nacional Contra-Terrorismo identificaram vários pontos suspeitos: o local do crime — o Centro Isamili faz parte de um ramo minoritário dentro do xiismo e os membros do Estado Islâmico são sunitas radicais –, a nacionalidade afegã de Abdul Bashir, a entrada em Portugal com estatuto de refugiado, o desconhecimento de um motivo concreto para a prática dos crimes, o uso de uma faca e a compra de bilhetes de avião para o dia seguinte.
Somados todos estes factos, teve início uma investigação por possível crime de terrorismo. Aliás, só o DCIAP tem competência a nível nacional para investigar este tipo de crime e, durante vários meses, lê-se no despacho de acusação, não foi possível saber com certeza qual foi a motivação de Abdul Bashir ou se este tinha alguma doença mental.
Foram, por isso, pedidas informações às autoridades gregas que, além dos dados sobre a alteração de nome, negaram que Abdul Bashir tivesse qualquer ligação a grupos de terroristas e adiantaram que não existia naquele país qualquer informação desta natureza. Mas esta informação só chegou em janeiro deste ano e, ainda assim, a dúvida permaneceu, já que o crime de terrorismo não acontece só em contextos de ligação a grupos radicais, podendo Abdul ter atuado sozinho.
Só depois de analisados os computadores e telemóveis apreendidos na sequência das buscas feitas pela PJ e de conhecidos os relatórios da perícias psiquiátricas e psicológicas é que foi possível afastar totalmente a hipótese de terrorismo. Esta certeza chegou apenas em março deste ano e o Ministério Público considera que Abdul Bashir não teve intenção de afetar a integridade e independência nacionais ou de outros Estados.