António Costa tem uma conta à ordem, na qual recebe o seu salário de primeiro-ministro, e só não a declarou porque a lei não obriga a isso, uma vez que o saldo é inferior a 50 salários mínimos. A ausência de uma vírgula na legislação desde a alteração de 2010 cria a dúvida, mas o espírito da lei, o entendimento do Tribunal Constitucional e o próprio formulário oficial — publicado em Diário da República — dá razão ao entendimento do primeiro-ministro.

Há apenas um único lapso na declaração do primeiro-ministro, não na parte referente a contas bancárias, mas no património imobiliário. Erradamente, as duas últimas declarações de António Costa referem que é co-proprietário de uma casa que o primeiro-ministro e a mulher já tinham vendido em 2016. Ao ser confrontado com este erro pelo Observador, o primeiro-ministro tratou de imediato de dar início ao processo de correção. Não há qualquer sanção prevista, uma vez que Costa tem 30 dias para corrigir a declaração e só a partir do momento em que é confrontado pelo erro pelo Tribunal Constitucional (que não o tinha detetado). Tem, portanto, tempo.

Mas, afinal, o que diz a lei, o que declarou António Costa e o que revelam as últimas declarações entregues pelo primeiro-ministro no Tribunal Constitucional?

É verdade que António Costa não tem conta à ordem?

Não. O gabinete do primeiro-ministro esclareceu ao Observador que António Costa “tem conta bancária à ordem com saldo inferior a 50 salários mínimos, pelo que, como decorre da lei, não tem de ser declarada ao Tribunal Constitucional“. Quando foi questionado pelo Correio da Manhã, que noticiou este caso no passado sábado, o chefe de Governo também tinha optado por não responder, o que alimentou alguma especulação em torno do assunto.

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Começou a circular nas redes sociais uma suspeição sobre a forma como António Costa recebia o seu salário de primeiro-ministro e sobre a forma como fazia as compras do dia-a-dia. Isso chegou, inclusivamente, a ser utilizado como arma de arremesso político por parte do líder do Chega. O primeiro-ministro recebe, no entanto, o seu vencimento através de uma conta à ordem, como qualquer funcionário público ou político eleito.

Na declaração de rendimentos de António Costa — que está de acordo com a lei — só há assim referência a uma conta a prazo, no valor de 100.000 euros, na qual é o primeiro-ministro é o terceiro titular, sendo os primeiros dois titulares a mãe, Maria António Palla, e o padrasto Manuel Pedroso Marques. O primeiro-ministro informa ainda, numa declaração de 2 de dezembro de 2019, do vencimento de certificados de aforro da cônjuge, no valor de 22.361,60 euros.

O primeiro-ministro tinha de declarar qualquer conta à ordem?

Não. O primeiro-ministro só tinha de declarar a conta à ordem caso o saldo ultrapassasse 50 salários mínimos (33.250 euros, a valores de 2021) ou caso tivesse várias contas à ordem dispersas que, no seu conjunto, totalizassem esse valor.

Mas por que razão tanta gente apontou o dedo ao primeiro-ministro? Porque a questão é complexa. Lendo a lei parece claro que todas as contas à ordem têm de ser declaradas, seja qual for o saldo:

b) A descrição dos elementos do seu ativo patrimonial, existentes no País ou no estrangeiro, ordenados por grandes rubricas, designadamente do património imobiliário, de quotas, ações ou outras partes sociais do capital de sociedades civis ou comerciais, de direitos sobre barcos, aeronaves ou veículos automóveis, bem como de carteiras de títulos, contas bancárias a prazo, aplicações financeiras equivalentes e desde que superior a 50 salários mínimos, contas bancárias à ordem e direitos de crédito;

Quando a lei foi alterada em 2010 e passou a incluir as contas à ordem, o legislador, ao contrário do que pretendia com a lei, esqueceu-se — como reconheceram deputados de várias bancadas envolvidos no processo ao Observador — de colocar uma vírgula antes da palavra “desde”. Com essa vírgula a formulação seria a seguinte:

“…e, desde que superior a 50 salários mínimos, contas bancárias à ordem e direitos de crédito.”

Com esta formulação ficaria claro que o primeiro-ministro (ou qualquer político obrigado a estas declarações) só teria mesmo de declarar contas à ordem se totalizasse esse montante. Isto significa que António Costa está em incumprimento? Não. O entendimento do Tribunal Constitucional é de que, mesmo com esta formulação escrita, o que é exigível é que se declarem apenas as contas à ordem superiores aos tais 33.250 euros. O Observador confirmou também com deputados (envolvidos nas últimas alterações à lei em 2019) que o entendimento do legislador e o espírito da lei é esse. “É essa a interpretação geral”, diz um deputado ao Observador.

Há um elemento, disponibilizado aos titulares de cargos políticos, que os dispensa de forma mais inequívoca de declarar uma conta à ordem com um saldo inferior aos 50 salários mínimos nacionais (SMN): o próprio formulário-tipo que saiu da última alteração à Lei do Controlo Público da Riqueza dos Titulares de Cargos Políticos, de 31 de julho de 2019.

Excerto do Diário da República onde foi publicada a última alteração à lei e o último formulário

Ou seja, o próprio documento oficial mostra que no momento do preenchimento, o formulário apenas pede aos políticos que declarem as contas “de valor superior a 50 salários mínimos”.

Esta é a única forma de monitorizar contas de políticos?

Não. Há um mecanismo na banca, que resultou de uma diretiva europeia transposta para legislação portuguesa em 2017, que se dirige especificamente a clientes classificados como “pessoas politicamente expostas” (PEP), e que foi criado para, segundo a lei, fazer a “prevenção da utilização do sistema financeiro e das atividades e profissões especialmente designadas para efeitos de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo“.

Os PEP são pessoas que desempenhem ou tenham desempenhado, nos últimos doze meses, altos cargos políticos ou públicos ou que sejam membros próximo da sua família ou com eles tenham relações de natureza societária ou comercial. Uma definição que coloca sob este filtro automático uma longa lista de destacadas funções públicas de nível superior, como por exemplo membros do Governo, o Presidente da República, deputados, membros de órgãos executivos de partidos políticos, mas também os altos representantes da justiça, conselheiros de Estado, chefes de missões diplomáticas, oficiais generais das Forças Armadas, autarcas, administradores e fiscalizadores de bancos centrais, de institutos públicos ou de fundações.

Na prática, todos têm as suas contas bancárias sejam de que tipo forem, automaticamente filtradas, com o setor de compliance das instituições financeiras a terem de identificar o risco associado a cada movimento registado. O sinal de alerta é lançado nos bancos de que são clientes, sempre que uma transação seja suspeita, como por exemplo a entrada de montante cujo valor, origem ou razão não sejam claro. Nestes casos, o banco pode pedir dados adicionais ao cliente para que explique a transação e, se mantiver a dúvida, pode declinar a execução da mesma ou comunicá-la à Unidade de Informação Financeira da Polícia Judiciária e ao Departamento Central de Investigação e Ação Penal da Procuradoria-Geral da República.

António Costa é um PEP, qualquer movimento de contas que possua — ou a sua mulher — estão obrigatoriamente sob o filtro da instituição bancária. A identificação desta situação particular cabe aos clientes, mas os bancos têm naturalmente listas próprias de alguns dos elementos cujas funções são do conhecimento público.

Há falhas ou omissões na declaração de rendimentos de Costa?

Na parte do património imobiliário declarado pelo primeiro-ministro há um único lapso nas declarações que foram entregues ao Tribunal Constitucional. Na declaração entregue a 24 de julho de 2018, António Costa declarou vários movimentos imobiliários nos dois anos anteriores. Num deles o primeiro-ministro declara que a 20 de outubro de 2016 vendeu um imóvel, na Rua do Paiã, em Odivelas, por 47.000 euros. Na altura, o Observador consultou o histórico do imóvel e verificou que a casa era de António Costa e da sua mulher desde 18 de dezembro de 1991 e que foi vendida a 21 de outubro de 2016 a uma empresa de Odivelas, a Vasques & Nabais.

O imóvel voltou, no entanto, a aparecer na declaração que o primeiro-ministro entregou a 2 de dezembro de 2019, bem como na declaração mais recente de António Costa, entregue a 11 de maio de 2021, semana em que o primeiro-ministro foi questionado pelo Correio da Manhã acerca das contas à ordem. Estas duas últimas declarações são posteriores à venda do imóvel de Odivelas, altura em que já não seria propriedade de António Costa e de Fernanda Tadeu. Após o Observador detetar este erro, o primeiro-ministro admitiu o lapso e irá corrigir de imediato a situação. “O imóvel foi vendido e a sua venda foi comunicada na declaração de 24 de julho de 2018. Nas declarações posteriores referidas, em que esse imóvel continua a constar no património apesar de já ter sido vendido, trata-se de um lapso que será devida e brevemente corrigido“, admitiu o gabinete do primeiro-ministro ao Observador-

Também na declaração entregue a 11 de maio de 2021, a mais recente, o primeiro-ministro informa que vendeu a casa onde vivia até ao início deste ano, na Rua Cláudio Nunes, em Benfica. No entanto, ao contrário do que fez nas alienações de imóveis anteriores, António Costa não aponta a data em que fez a venda da casa. O gabinete do primeiro-ministro esclareceu, no entanto, ao Observador que a escritura da casa foi feita a “3 de maio”. Ou seja: o primeiro-ministro demorou apenas 8 dias a declarar a venda, quando tinha 60 para o fazer.

No capítulo do património, o primeiro-ministro declarou mais do que lhe era exigido e informou o Tribunal Constitucional das características da casa que arrendou também na freguesia de Benfica, em Lisboa, e até fez questão de apontar quanto paga de renda: 1200 euros. Estes elementos não são exigidos pela lei. Não é assim tão pouco habitual os políticos não terem casa própria: o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, também não tem casa própria (vive numa casa arrendada em Cascais).

Declarações mostram que Costa perdeu dinheiro com negócios imobiliários?

Se na venda de um imóvel que fez em 2016, António Costa conseguiu rentabilizar um pequeno apartamento no Rato, que comprou por 55.000 euros e vendeu por 100.000 euros, o mesmo não tem acontecido nos últimos dois anos e meio. A 10 de dezembro de 2018, o primeiro-ministro vendeu a moradia Villa Catarina, em Sintra, por 350 mil euros, um imóvel que chegou a estar à venda por 500 mil euros. Logo aí o primeiro-ministro perdeu cerca de 150 mil euros.

Depois disso, evitando pagar muito por mais-valias, o primeiro-ministro e a mulher compraram dois dias depois (a 12 de dezembro de 2018) um apartamento (cave) na Rua Cláudio Nunes, Benfica, Lisboa, por 325 mil euros. Já em 2021, António Costa vendeu esse mesmo imóvel por 280 mil euros, tendo perdido mais 45 mil euros face ao preço a que tinha comprado a casa. Pelo meio, Fernanda Tadeu (que — como mostram as escrituras — assume a gestão destes processos) e António Costa fizeram várias transações imobiliárias.

Veja aqui todas as transações imobiliárias do casal Tadeu-Costa desde 2016

  • 26 de abril de 2016: Compra de imóvel na Rua do Sol ao Rato, 1.º andar. Valor da aquisição: 55.000 euros
  • 21 de outubro de 2016: Venda de imóvel na Rua da Paiã, 2.º esquerdo, em Odivelas. Valor da venda: 47.000 euros
  • 3 de março de 2017: Venda de imóvel na Rua do Sol ao Rato, 1.º andar.Valor da venda: 100.000 euros
  • 26 de abril de 2017: Compra de imóvel na Estrada do Desvio, Santa Clara, Lisboa. Valor da aquisição: 100.000 euros.
  • 10 de dezembro de 2018: Venda de moradia na urbanização Villa Catarina, em Sintra. Valor da venda: 350.000 euros. 
  • 12 de dezembro de 2018: Compra de cave com logradouro na estrada Cláudio Nunes, em Benfica, Lisboa. Valor da compra: 320 mil euros.
  • 3 de maio de 2021: Venda de cave com logradouro na estrada Cláudio Nunes, em Benfica, Lisboa. Valor da venda: 280 mil euros.

Os políticos têm por hábito declarar contas à ordem inferiores a 50 salários mínimos?

Por regra, não. A esmagadora maioria dos políticos tem o mesmo entendimento do primeiro-ministro António Costa e só declara as contas a prazo. É verdade que há deputados e outros titulares de cargos políticos, em declarações já consultadas pelo Observador, que o fazem de mote próprio, mas essa não é prática comum.

Um dos deputados que apontou o dedo a António Costa foi André Ventura e o Observador também consultou as três declarações entregues pelo líder do Chega no Tribunal Constitucional (15 de maio de 2018, 22 de dezembro de 2019 e 18 de dezembro de 2020). Em todas declarou uma conta à ordem (não tem conta a prazo), já que tinha e valores superiores aos 50 salários mínimos: 48.891,72 euros em 2019 e 66.991, 09 euros em dezembro de 2020. No entanto, nesta última declaração, André Ventura declarou uma conta à ordem com um saldo inferior a esse valor (14.078,69 euros), que é a conta da campanha eleitoral das Presidenciais.