A auditoria, conduzida pelo Hospital de Santa Maria, aos casos de administração de um medicamento para a Atrofia Muscular Espinhal, o Zolgensma, concluiu que foi o à época secretário de Estado da Saúde da Saúde António Lacerda Sales a marcar a consulta para as gémeas luso-brasileiras, avançaram a TVI e a CNN Portugal e confirmou o Observador, que teve acesso à auditoria. Desta forma, reforçam-se as suspeitas de favorecimento no caso.
A auditoria, aberta no dia 9 de novembro e concluída esta terça-feira, também aponta o modo como a marcação foi feita: por telefone, através da Direção de Departamento de Pediatria. A confirmar-se que existiu este alegado favorecimento, Lacerda Sales pode vir a ser investigado pela alegada prática do crime de abuso de poder.
O documento também revela que o Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte (CHULN), onde o Santa Maria se integra, tratou 10 crianças com atrofia muscular espinhal desde 2019, com um custo total superior a 15,4 milhões de euros.
Na negociação entre o Infarmed e a farmacêutica suíça Novartis (que comercializa o Zolgensma, que, em 2019, era considerado o fármaco mais caro do mundo), foi acordada uma partilha de risco, com pagamentos faseados que dependem da evolução clínica favorável dos doentes. Por outras palavras, se o medicamento não produzir benefício clínico, a farmacêutica não recebe o pagamento.
Lacerda Sales telefonou para o Departamento de Pediatria, diz auditoria
A auditoria do Hospital de Santa Maria, que demorou mais de um mês a ficar concluída, vem clarificar um pouco mais os contornos da intervenção do Ministério da Saúde no caso. Segundo o documento, as duas gémeas luso-brasileiras foram “referenciadas pelo Secretário de Estado da Saúde (segundo registo do dossier clínico)”. Embora a auditoria nunca refira o nome do governante em causa, a formulação surge sempre no masculino (Secretário de Estado), o que indicia tratar-se de António Lacerda Sales, já que, no final de 2019, era um dos dois secretários de Estado da ministra Marta Temido — o elenco governativo do Ministério ficava completo com Jamila Madeira, também Secretária de Estado.
[Já saiu: pode ouvir aqui o sexto e último episódio da série em podcast “O Encantador de Ricos”, que conta a história de Pedro Caldeira e de como o maior corretor da Bolsa portuguesa seduziu a alta sociedade. Pode sempre ouvir aqui o quinto episódio e aqui o quarto, o terceiro aqui, o segundo aqui e o primeiro aqui]
No documento, existem quatro referências ao Secretário de Estado da Saúde, e que confirmam que o ex-governante interveio no sentido de marcar a consulta para as gémeas. Na audição no Parlamento, na manhã desta quarta-feira, a presidente do Centro Hospitalar e Universitário de Lisboa Norte, que integra o Santa Maria, referiu-se sempre à marcação da consulta como tendo sido realizada pela Secretaria de Estado da Saúde e não pelo Secretário de Estado, evitando apontar nomes.
Segundo o documento, Lacerda Sales requisitou a consulta por via telefónica à Direção de Departamento. Na auditoria não se especifica qual o departamento em causa, mas tudo indica que se trata do Departamento de Pediatria do CHULN, que integra a Unidade de Neuropediatria, onde as gémeas acabariam por ser acompanhadas pela médica Teresa Moreno. Aliás, em entrevista à TVI, o diretor da referida Unidade, António Levy Gomes, já tinha dito que existiram pressões exercidas sobre o serviço de Pediatria.
As duas “utentes”, assim referidas no documento, são “naturais do Brasil, têm nacionalidade brasileira portuguesa e residiam no Brasil até dia 22 de dezembro de 2019”, data em que se mudaram para Lisboa.
Regras de referenciação não foram respeitadas e Lacerda Sales pode ser investigado por abuso de poder
Para que um utente do SNS tenha acesso a uma primeira consulta hospitalar terá de existir uma referenciação feita por uma unidade de saúde ou por uma estrutura do SNS. De entre os 10 doentes tratados com Zolgensma no hospital de Santa Maria, entre 2019 e 2023, oito foram referenciados por Agrupamentos de Centros de Saúde, hospitais públicos ou pelo INSA, revela a auditoria. Dois utentes foram referenciados pelo Hospital São Francisco Xavier, um por Hospital CUF, um pelo Hospital da Ilha Terceira (Açores), um pelo Hospital Garcia de Orta, um pelo Hospital Amadora-Sintra, outro pela USF Corino de Andrade (Póvoa de Varzim) e outro pelo Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA).
No caso das gémeas, não foi assim. A marcação foi feita diretamente pelo Secretário de Estado da Saúde, o que, a confirmar-se, viola o estipulado na portaria 147/2017 (artigo 8º), que estabelece as regras específicas de acesso a uma primeira consulta hospitalar. A auditoria confirma isso mesmo, quando o relator sublinha que o procedimento em causa, isto é, o telefonema do Secretário de Estado para o hospital, “não cumpre com a portaria”. No documento, explica-se que o poder de referenciação para primeira consulta hospitalar está reservado apenas aos Agrupamentos de Centros de Saúde (ACES), hospitais do SNS ou de fora do SNS, outros serviços hospitalares do mesmo hospital, centro de contacto do SNS ou então à Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados.
A interferência de Lacerda Sales pode ter consequências a dois níveis: ao nível disciplinar e ao nível criminal. No primeiro caso, a violação da portaria pode implicar a aplicação de uma sanção disciplinar por parte da Ordem dos Médicos (Lacerda Sales é ortopedista, embora não estivesse a exercer à altura dos factos), cujo bastonário, Carlos Cortes, já pediu ao Conselho Disciplinar do Sul daquela entidade que abrisse um inquérito disciplinar para avaliar a ação de todos os clínicos envolvidos no caso das gémeas.
No entanto, ao nível disciplinar, uma eventual sanção poderá cair por terra, uma vez que a lei da amnistia (aprovada a propósito da Jornada Mundial da Juventude) prevê o fim de todos os processos que investiguem factos ocorridos antes de junho de 2023, desde que a sanção em causa não seja a de expulsão. Assim, “António Lacerda Sales pode beneficiar da lei da amnistia e, por isso, o inquérito aberto pela Ordem dos Médicos não deve ter continuidade”, disse à Rádio Observador o advogado Paulo Saragoça da Matta, especialista em Direito Penal.
Já no que diz respeito à parte criminal, a intervenção de Lacerda Sales pode vir a configurar um alegado crime de abuso de poder e de favorecimento, desde que seja conjugado com outros indícios. A violação da portaria que regula o acesso dos utentes ao Serviço Nacional de Saúde, apontada na auditoria do Hospital de Santa Maria, não constitui por si só uma alegada prática criminal, diz Saragoça da Matta,
Recorde-se que o Ministério Público abriu um inquérito ao caso, que está a decorrer no Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa, e a violação da portaria 147/2017 pode constituir um indício claro para que Lacerda Sales seja um dos alvos da investigação. Desde que esse indício seja conjugado com outros igualmente relevantes, o ex-secretário de Estado da Saúde pode vir a ser acusado pelo DIAP de Lisboa.
Neste campo penal, Lacerda Sales já não poderá beneficiar da aplicação da lei da amnistia, uma vez que a mesma só se aplica a cidadãos com menos de 30 anos na altura dos factos com relevância criminal.
Santa Maria já gastou mais de 15 milhões a tratar crianças com Zolgensma
O Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte (CHULN), onde o Santa Maria se integra, tratou 10 crianças com atrofia muscular espinhal desde 2019, com um custo total superior a 15,4 milhões de euros. Na auditoria, sublinha-se que o acordo celebrado entre o Infarmed e a farmacêutica suíça Novartis, que comercializa o Zolgensma, é “de risco partilhado”, o que significa que as tranches em que cada pagamento está dividido só são saldadas pelo hospital se existir uma evolução clínica favorável dos utentes.
Numa linguagem mais técnica, a auditoria explica que “o acordo de risco partilhado” é “baseado em resultados de vida real, monitorizados (…) e com pagamentos faseados durante os primeiros quatro anos a contar do início do tratamento, variando “consoante os resultados alcançados com o medicamento Zolgensma”. Ou seja, este modelo prevê a partilha de risco em função dos resultados, num tratamento que, em 2019, custava cerca de dois milhões de euros por doente — preço que, entretanto, terá sido substancialmente reduzido, como adiantou o Infarmed ao Observador. A auditoria detalha que 20 a 30% do custo é pago logo após a administração do Zolgensma. Já as segunda, terceira e quarta tranches devem ser saldadas — se a evolução clínica for favorável — 14 , 26 e 50 meses após a administração, o que significa que, no caso das gémeas (que receberam o tratamento em 2020), o SNS ainda terá de saldar o restante da dívida à Novartis.
O problema é que, no caso das gémeas, não é claro de que forma está a ser feito o acompanhamento clínico das crianças, que hoje, têm já mais de cinco anos de idade. Ou seja, o SNS não tem forma de saber se o tratamento está a ser ou não bem sucedido, uma vez que as crianças regressaram ao Brasil e deixaram de ser acompanhadas na Unidade de Neuropediatria do Hospital de Santa Maria.
O Zolgensma está indicado para o tratamento de doentes com até seis meses de idade diagnosticados com AME tipo I (o tipo da doença que afetava as gémeas) e em doentes pré-sintomáticos. Ora, as gémeas não cumpriam nenhum destes requisitos. A auditoria confirma que as bebés já tinham 15 meses aquando da administração do fármaco. Para além disso, a mãe, Daniela Martins, referiu à TVI que as filhas já apresentavam sintomas da doença antes de viajarem para Portugal.
As gémeas luso-brasileiras, que alegadamente beneficiaram de um tratamento diferenciado no acesso ao tratamento em Portugal, foram tratadas ao abrigo de uma Autorização de Utilização Excecional (AUE), um mecanismo usado em casos em que o medicamento em causa ainda não tem financiamento público aprovado e em que não existem alternativas terapêuticas. Em Portugal, e segundo avançou o Infarmed ao Observador, foram tratados, ao abrigo de AUE, 17 crianças. Desde que o financiamento público foi aprovado, em outubro de 2021, foram tratadas outros 16 utentes.
A cadeia de favorecimento que facilitou o acesso das gémeas luso-brasileiras ao Zolgensma começou com um email enviado pelo filho do Presidente da República, Nuno Rebelo de Sousa, para Belém. Daí, seguiu um ofício para o gabinete do primeiro-ministro, que encaminhou o caso para o gabinete da ministra da Saúde, Marta Temido, no início de novembro de 2019. Durante este período, o ex-secretário de Estado da Saúde, António Lacerda Sales, ter-se-á reunido várias vezes com o filho do Presidente da República, Nuno Rebelo de Sousa, avançou a TVI.