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Fotografias: Myriam Boulos

Fotografias: Myriam Boulos

"Ela disse que o filho não seria um mártir. Agora dança no palco com ele": a coreografia do desespero em "Contado pela minha mãe"

Duas mães que querem resgatar os filhos do extremismo religioso e político. Antes dos espectáculos em Lisboa, o coreógrafo Ali Chahrour conta como criou a redenção que é "Contado pela minha mãe".

Abbas tinha 15 anos quando foi recrutado para ir para a Síria combater. Estava certo de que, em nome da religião, a violência é aceitável. Aos 15 anos dispôs-se a ser um mártir. A história teve um final diferente porque a mãe, Leila, enfrentou tudo, até o governo libanês, para não deixar o filho ter esse destino. Abbas largou as armas, pisou um palco — coisa que nunca tinha feito antes — e é através da dança que agora transmite a sua experiência. “Contado pela minha mãe” é para ver em Lisboa, no Teatro Dona Maria II, nos dias 24 e 25 de novembro, e é um espetáculo idealizado pelo bailarino e coreógrafo Ali Chahrour.

Durante 1h10 entrelaçam-se os relatos de duas mães: Leila, que conseguiu salvar Abbas, e Fatima, que procurou o filho, Hassan, desaparecido misteriosamente. Até morrer nunca teve respostas. Estas mulheres têm nomes, mas representam muitas mais, são a cara de duas realidades demasiado comuns no Líbano, onde nasceu e vive Chahrour.

O espetáculo faz parte de uma trilogia sobre o amor e estes exemplos são especialmente emotivos para o encenador. Fatima representa a tia de Ali Chahrour e Leila é prima do pai. Sacrifícios, dor, perda, fé, luto, felicidade. Em cena há uma coreografia que faz dançar todos estes sentimentos. Entre o público, o mais comum são as lágrimas, embora haja também quem não seja capaz de processar de imediato tudo o que está a ver, a ouvir e a sentir — o próprio irmão do coreógrafo de 32 anos não lhe falou durante dois dias, envergonhado por ter chorado diante de um amigo.

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“Contado pela minha mãe” é uma homenagem à força de mulheres que nunca desistem, mas também uma chamada de atenção para relatos semelhantes que continuam a acontecer. A estreia aconteceu em maio em Beirute e desafiou as ordens do governo libanês, que queria manter os teatros fechados. Entretanto, Ali Chahrour, Hala Omran (atriz e cantora que interpreta os temas do espetáculo), Leila Chahrour, Abbas al-Maoula, Ali Hout, Abed Kobeissy estão em digressão há quase um mês e a última paragem antes de regressarem ao Líbano é no Alkantara Festival, no qual se inserem as atuações previstas em Lisboa.

Esta será a segunda vez de Ali Chahrour em Portugal — apesar de em 2017 só ter visitado Lisboa e Cascais como turista — e no dia 25, depois da apresentação, haverá uma conversa entre o encenador e a investigadora palestiniana Shahd Wadi, moderada pela jornalista e ativista cultural Carla Fernandes. Além disso, a 21 de novembro, já no domingo, o bailarino vai ser o orientador de uma sessão de práticas artísticas (apenas destinada a profissionais da área).

Antes de apanhar um voo para Portugal, Ali Chahrour falou com o Observador e explicou como idealizou “Contado pela minha mãe” e qual o seu objetivo com o espetáculo.

"Histórias como esta continuam a acontecer, é uma tragédia. Quando a minha tia morreu ainda estava à procura do filho, Hassan, na Síria. Passou os últimos cinco anos da vida à procura, a fazer todos os possíveis para saber o que tinha acontecido."

“Contado pela minha mãe” faz parte de uma trilogia. Qual é o foco?
Este é o segundo capítulo de uma trilogia sobre o amor. São histórias de familiares, amantes ou parceiros que foram separados ou mortos debaixo da pressão religiosa ou política. Olhamos para famílias e mães e para pequenas vitórias — que considero grandes vitórias, mas das quais ninguém fala porque estão escondidas nas vielas e nas casas de Beirute [capital do Líbano]. Olhamos para o sacrifício dessas mães e para a sua proteção. Trabalhamos com as histórias de amor e herança em paralelo com a realidade da sociedade contemporânea.

Neste espetáculo tem duas mulheres. Uma delas representa a sua tia. É uma forma de homenagem?
É a minha forma de a honrar, mas mais importante ainda é dar ênfase à narrativa. Histórias como esta continuam a acontecer, é uma tragédia. Quando a minha tia morreu ainda estava à procura do filho, Hassan, na Síria. Passou os últimos cinco anos da vida à procura, a fazer todos os possíveis para saber o que tinha acontecido. Ele não estava envolvido em política, era apenas um tipo decente que adorava dançar e cantar com a mãe em casa e em encontros com amigos. Para mim, a performance sobre esta mãe que recusou aceitar que o filho talvez tivesse morrido é muito poderosa. Disseram-lhe isso, mas ela não aceitou. Pediu que lhe entregassem o corpo para poder cantar para ele, para acreditar que ele já não estava cá. Esta é a história de milhões de mães que vivem realidades semelhantes. Ao mesmo tempo, temos a vitória de Leila, que protagoniza a história paralela. Leila é prima da minha tia e do meu pai. Está em palco com o filho. Protegeu-o porque ele estava a ir longe demais. E foi. Foi para a Síria treinar para combater. Ela fez frente ao partido político mais poderoso do Líbano, expulsou-os de casa dela, disse que o filho não seria um mártir. E agora dança no palco com ele. A ideia foi trazer uma história de guerra para um cenário completamente diferente, o da dança. No processo de criação, a Leila teve de fazer uma transição na cabeça dela, teve de passar noites a imaginar o filho a voltar como um cadáver para agora tê-lo em cena e dançar com ele. Esta é a vitória desta mãe e o poder da performance. Este miúdo tinha 15 anos quando foi lutar. Agora tem 19, estivemos dois anos no processo de criação.

Eles nunca tinham dançado antes?
Com a Leila já tinha trabalhado num projeto chamado “Leila’s death (A morte de Leila)”. O trabalho principal dela é ser [uma espécie de] carpideira. Quando alguém morre contratam a Leila para cantar para essa pessoa, para cantar sobre memórias e fazer as pessoas chorar. Faz uma pesquisa sobre a pessoa que partiu para poder cantar sobre ela e para ela. Em 2015 fizemos um trabalho sobre essa carreira. Já o Abbas, foi a primeira vez que viu uma performance sequer e a primeira vez em palco, e logo com a mãe. Foi um processo muito ternurento.

A história de “Contado pela minha mãe” é a de Leila e do filho, Abbas, familiares de Ali Chahrour. São eles que estão em palco, mas estão presentes, de alguma forma, "familiares, amantes ou parceiros que foram separados ou mortos debaixo da pressão religiosa ou política", esclarece o coreógrafo.

Quando é que se começou a formar na sua cabeça “Contado pela minha mãe”?
Em 2015, quando estava a trabalhar em “Leila’s death”, também queria colaborar com a minha tia. Ela tinha uma voz linda e uma forma de se movimentar muito especial. Ficou muito empolgada mas coincidiu com o desaparecimento do Hassan. A embaixada ligou-lhe a dizer que ele tinha morrido e que ela podia ir buscar as coisas dele mas não o corpo. A minha tia estava extremamente triste e começou a procurar o filho, por isso não pude trabalhar com ela. Quando morreu, em 2018, continuei a querer trabalhar com ela, não fisicamente, mas sobre a história dela, as memórias, a jornada. Foi aí que me surgiu a ideia. Emocionalmente foi muito difícil de processar porque a história ainda não está acabada — a filha da minha tia, a irmã do Hassan, continua à procura dele.

Tiveram notícias entretanto?
Nada. Há anos e anos que as pessoas desaparecem.

E é comum entregarem os pertences e não o corpo? Sem explicação?
Sim. Se, por exemplo, o levaram para uma prisão síria, por um motivo que não conseguimos descobrir, não podem dizer que o levaram e se esqueceram dele. Para que paremos de fazer perguntas dizem: “OK, ele morreu”. Ou morrem porque não se alimentam bem ou porque os tratam de forma agressiva ou são libertados. Mas isso não acontece a muitos. É difícil dizer que ele já não existe mas, ao mesmo tempo, é difícil acreditar que vai voltar. Para uma mãe, viver neste limbo é horrível.

Porque é impossível fazer o luto.
Exatamente. E este peso da espera estava a derreter-lhe o corpo. A minha tia teve cancro do pulmão, mas antes disso eu podia ver que o corpo dela ia desaparecer. Ela procurava em todo o lado e acreditava que ia encontrá-lo antes de morrer. Voltava das sessões de quimioterapia, mostrava-me as marcas e dizia que aquilo não a mataria antes de o encontrar. Essa transformação do corpo para alguém interessado no movimento foi extremamente triste, mas extremamente interessante. Há muito poder e muita fragilidade ao mesmo tempo.

"É verdade que em palco às vezes sinto uma emoção avassaladora, mas como artistas temos de distanciar-nos e temos sempre noção que estamos em cena a representar. Mais do que isso, tenho a noção de que não interessa o que faça, nunca entenderei a dor de uma mãe à procura de um filho desaparecido."

Nos seus trabalhos, vida e morte caminham sempre lado a lado. Fazer estas performances é drenante e deixa-o exausto?
Durante o processo de criação sinto-me emocionalmente exausto, mas quando fechamos a estrutura final do espetáculo, consigo distanciar-me do trabalho. O objetivo numa performance como esta, e com tempo limitado, com tudo coreografado, é passar as emoções e também questionar os aspetos políticos e religiosos na nossa vida diária. Quis resumir essa realidade complexa através de histórias íntimas de amor. É verdade que em palco às vezes sinto uma emoção avassaladora, mas como artistas temos de distanciar-nos e temos sempre noção que estamos em cena a representar. Mais do que isso, tenho a noção de que não interessa o que faça, nunca entenderei a dor de uma mãe à procura de um filho desaparecido ou a alegria da Leila a dormir ao lado do filho depois de ter passado noites a imaginar que ele não voltaria. Nenhuma peça, arte, poesia conseguirá atingir essas emoções. Por isso somos muito modestos em palco, com movimentos muito simples, para não exagerarmos. A arte só pode ir até certo ponto.

Estas histórias continuam a acontecer. Estas duas mulheres representam muitas mães. Saber da realidade é uma coisa, mas passá-la para palco é outra. Teve problemas com este espetáculo em Beirute?
Não tivemos problemas, mas foi arriscado. Era muito claro que estávamos a dizer “chega de arrancar estes jovens indivíduos do peito das mães para lutar por motivos estúpidos, chega de fazer lavagens cerebrais a miúdos de 15 anos e usá-los como ferramentas políticas”. Isto era dirigido a um partido específico, apesar de não referirmos nomes. O Abbas também foi muito corajoso ao aceitar dançar em vez de segurar uma arma. Eu acho que não tivemos problemas porque, na verdade, eles não querem saber da cultura, acham que não existimos.

Que não fazem a diferença?
Exatamente, mesmo o governo. Por exemplo, depois dos confinamentos por causa da Covid-19 abriram tudo no país, ginásios, bares, restaurantes, tudo menos os teatros. Decidi abrir o teatro na mesma, falei com o responsável e disse-lhe que, se as pessoas podiam ir ao ginásio, também podiam ir a uma sala de espetáculos com todas as medidas de segurança. Foi a primeira performance pós-Covid, contra a decisão do governo, e foi incrível. Foi como uma celebração na cidade, esgotou e fomos recebidos de forma muito calorosa. Os amigos do Abbas foram ver e deram um feedback incrível. Ao mesmo tempo, houve muitas questões, do género “és contra este partido político”? Na verdade, sou contra qualquer partido no Líbano porque são extremamente corruptos, mas não é essa a questão. Se fosse esse o foco, perderíamos a importância daquelas duas mães.

"Bater palmas, não bater? Ir embora apenas? Tivemos esse feedback, que muitas pessoas só queriam partir, não queriam estar naquela sala. É muito interessante esse silêncio. Há quem ache demasiado agressivo e não consiga comunicar depois."

Como foi a reação nessa estreia?
Em Beirute as pessoas choraram muito. Conseguíamos ouvir no palco.

Que reações o marcaram mais nestas semanas de digressão?
Na Alemanha aconteceu uma coisa muito interessante. O fim é muito claro, temos um blackout e normalmente não acendemos as luzes antes do público começar a aplaudir. Lá tivemos cinco minutos de silêncio, ninguém bateu palmas, ninguém se mexeu, nem as respirações ouvíamos. As pessoas começaram a aplaudir devagar, acenderam-se as luzes e a maioria não sabia bem o que fazer. Bater palmas, não bater? Ir embora apenas? Tivemos esse feedback, que muitas pessoas só queriam partir, não queriam estar naquela sala. É muito interessante esse silêncio. Há quem ache demasiado agressivo e não consiga comunicar depois.

Precisam de um momento para processar o que acabam de ver?
Sim, acho que é isso.

É mais fácil ou difícil trabalhar com familiares?
Definitivamente mais difícil. Neste projeto estou a trabalhar com amadores, é a primeira vez do Abbas a atuar, por exemplo. É sempre muito emotivo e pessoal. O meu irmão vive na Alemanha e foi ver o espetáculo. Não falou comigo durante dois dias.

Porquê?
Foi com um amigo e ficou envergonhado porque chorou durante a atuação. Disse-me que lhe pus à frente da cara tudo o que ele estava a tentar evitar.

Transformar estes temas em arte pode ser mais poderoso do que uma intervenção política, por exemplo?
Acredito que qualquer arte pode fazer algo por essas histórias. A performance é pesada, mas também tem momentos felizes. Como falámos há pouco, vida e morte caminham sempre em paralelo.

“Contado pela minha mãe” faz parte da programação do Alkantara Festival. O espetáculo é falado em libanês, tem legendas em português e inglês.Vai estar em cena a 24 e 25 de novembro, às 19 horas, na sala garrett do Teatro Nacional D. Maria II. Os bilhetes custam entre 9€ e 16€. Estão disponíveis nas bilheteiras online ou no local.

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