[Este artigo faz parte da série de trabalhos sobre o percurso, os desafios e as polémicas dos dez novos ministros que o Observador publica no day after da formação do novo Governo]
Não seria descabido se, algures nos próximos quatro anos, um membro do Governo liderado por António Costa venha a conquistar um Prémio Nobel da Física. Elvira Fortunato, apresentada na quarta-feira como a nova ministra da Ciência, Tecnologia e do Ensino Superior, cargo até aqui ocupado por Manuel Heitor, é uma das cientistas favoritas a vencer o galardão pelas descobertas revolucionárias na área da eletrónica de papel.
Com 57 anos, a engenharia natural de Almada pensa que ainda é cedo para o prémio mais elevado da carreira científica: a idade média dos galardoado com um Nobel é de 61 anos e apenas 5% dos vencedores são do sexo feminino. Mas o Nobel não a apoquenta: não costuma planear muito a vida. De resto, nem sequer planeava ser cientista.
Qual é o currículo?
Elvira Maria Correia Fortunato licenciou-se em Engenharia Física e de Materiais em 1987 pela Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa; e terminou o doutoramento em Microelectrónica e Optoelectrónica em 1995 pela mesma universidade. Professora catedrática no Departamento de Ciência dos Materiais da mesma faculdade em que se formou, é pioneira na investigação em eletrónica transparente com materiais e tecnologias sustentáveis e positivas para o ambiente.
O currículo de Elvira Fortunato inclui cargos de liderança na academia e da carreira científica — já lá vamos — que se traduziram na redação de 1.005 artigos científicos, na autoria de 29 capítulos e 49 livros; e em dezenas de patente internacionais, uma das quais considerada tão revolucionária que pode mesmo valer um Prémio Nobel da Física: a dos transístores e microchips em papel, uma invenção com potencial para colocar as empresas na rota da sustentabilidade, por exemplo com a criação de embalagens inteligentes que comunicam com o consumidor.
Em entrevista ao Observador em 2016, a cientista explicou como funcionariam estes produtos, batizados de Paper-e: “Se falarmos das embalagens alimentares, cada vez mais é importante sabermos a validade, mas também o estado do alimento que lá está — que pode até estar dentro do prazo de validade, mas ter qualquer problema que nos faz mal. Portanto, temos desde sensores à base de eletrónica a pequenos mostradores à base de eletrónica de papel”.
As contribuições de Elvira Fortunato para o desenvolvimento científico e para o reconhecimento de Portugal na área da engenharia de materiais foram galardoadas com dezenas de prémios e distinções. Destacam-se o grau de Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique, Medalha Blaise Pascal em 2016, Prémio Czochralski em 2017, o Prémio Pessoa, Prémio Horizon Impact da Comissão Europeia, Prémio da Federação Mundial da Ordem dos Engenheiro e o Prémio Estreito de Magalhães do Governo do Chile — todos em 2020 —, o prémio de Inovação em Materiais 2021 concedido pela Federação Europeia das Sociedades Microbiológicas; e o Prémio dos Direitos Humanos concedido pela Assembleia da República em 2021.
Já este ano, por altura das celebrações do Dia da Mulher, Elvira Fortunato foi nomeada pela presidência da União Europeia, com a França ao leme, uma das 27 mulheres mais inspiradoras da Europa e representa Portugal na lista que inclui outras cientistas, artistas e atletas. Em reação à nomeação, a engenharia disse: “A mensagem que gostaria de deixar às mulheres é, acima de tudo, para nunca desistirem dos seus sonhos e pensarem sempre que são possíveis. A palavra ‘impossível’ não está no nosso dicionário. E, no fim do dia, sejam felizes”.
Elvira Fortunato integra ainda há onze anos a Chancelaria das Ordens Honoríficas de Portugal, o serviço da Presidência da República que gere as distinções de mérito concedidas pelo chefe de Estado — primeiro, Aníbal Cavaco Silva; depois, Marcelo Rebelo de Sousa — aos cidadãos portugueses cujos feitos tenham beneficiado o país de modo excecional o país.
E foi mesmo uma das agraciadas: em junho de 2010 recebeu o grau de Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique, um prémio que costuma ser atribuído a Chefes de Estado estrangeiros, mas que pode ser entregue a antigos Presidentes da República e a cidadãos “cujos feitos, de natureza extraordinária e especial relevância para Portugal, os tornem merecedores dessa distinção”.
Qual é o percurso político?
Elvira Fortunato foi vice-presidente do grupo de conselheiros de Carlos Moedas, atual presidente da Câmara Municipal de Lisboa, quando era comissário europeu para a Investigação, Ciência e Inovação.
Em 2015, ano em que presidiu às comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, entrou num grupo de sete investigadores que aconselha a Comissão Europeia tomar decisões com base na evidência científica — o Mecanismo de Aconselhamento Científico da Comissão Europeia. Manteve-se no cargo até 2020.
Em dezembro do ano passado, Elvira Fortunato foi uma das oradoras no Fórum Nacional do PS, no painel: “Como acelerar o crescimento económico e melhorar o rendimento dos portugueses?”. Dividiu a intervenção com Fernando Freitas, presidente executivo da Polygon, e com Ricardo Machado, professor na Universidade do Minho e líder da DTX Digital. Em fevereiro, apadrinhou o doutoramento Honoris Causa de Carlos Moedas na Universidade Nova de Lisboa.
Qual a experiência na área de governação?
Elvira Fortunato está entre os ministros não militantes do Partido Socialista — e já trabalhou tanto à esquerda como à direita nos compromissos políticos que assumiu antes de aceitar a liderança da pasta da Ciência, Tecnologia e do Ensino Superior.
A cientista não tem experiência governativa, mas ocupou cargos de liderança na carreira científica e na academia: é vice-reitora da Universidade Nova de Lisboa, onde também coordena há cinco anos a área de investigação; e dirige o Instituto de Nanomateriais, Nanofabricação e Nanomodelação, cuja área do estudo vai da física teórica e da física de materiais à nanotecnologia.
É neste mesmo laboratório que coordena, a par com o professor e engenheiro Rodrigo Martins, o Centro de Investigação de Materiais. Rodrigo Martins foi o orientador da tese de doutoramento de Elvira Fortunato, “Aplicações do Silício Amorfo Hidrogenado na Optoelectrónica”, publicado em 1995; e também é o marido da cientista desde 1986.
Foi vice-diretora da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa entre 2014 e 2017. Coordenou o programa de doutoramentos em nanociências e nanotecnologia de 2009 a 2018; e esteve no Conselho Executivo do Departamento de Ciências Materiais da mesma escola entre 2009 e 2017. Nesse ano, foi nomeada presidente do Conselho Científico das Ciências Exatas e da Engenharia da Fundação para a Ciência e Tecnologia.
Defensora da igualdade de oportunidades para os géneros, Elvira Fortunato coordena desde 2019 o projeto europeu SPEAR na Universidade Nova de Lisboa. A plataforma da Comissão Europeia apoia a implementa planos para fomentar a igualdade de género na investigação e no ambiente académico, mas também compreender as barreiras que as mulheres encontram no percurso profissional em ciências, tecnologia, engenharia e matemáticas.
Quais os desafios da pasta?
Os desafios que Elvira Fortunato terá de gerir no Ministério da Ciência, Tecnologia e do Ensino Superior foram aqueles que ela mesma sentiu na pele enquanto cientista — e que apontou no Fórum Nacional dos socialistas.
A engenheira de materiais defendeu a implementação de regras da contratação pública para a ciência, uma área em que os investigadores dependem quase sempre de bolsas para subsidiar os projetos; e a redução da burocracia do Estado para a atribuição de luz verde ao financiamento de investigações científicas. Estes problemas de financiamento na Ciência fazem crer que Elvira Fortunato terá de trabalhar de perto com o ministério das Finanças, que será liderado pelo socialista Fernando Medina.
Prova de que Elvira Fortunato está ciente destas dificuldades é que está entre os signatários da proposta “Simplex para a Ciência”, um pacote de ideias concebido para simplificar as candidaturas aos projetos científicos, a obtenção de financiamento e a sua execução. Os outros dois criadores do projeto são António Cunha, antigo reitor da Universidade do Minho e presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte; e José Manuel Mendonça, presidente do INESC-TEC.
Desde a apresentação do Simplex, o Governo criou, em 2017, a lei do emprego científico, que abria portas a um financiamento mais longo dos investigadores pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Mas os primeiros contratos feitos à luz dessa nova lei, por terem uma duração máxima de seis anos, chegam ao fim nos primeiros tempos do novo Executivo, podendo atirar centenas de cientistas para o desemprego caso não sejam incluídos nos quadros das instituições em que trabalharam nos últimos anos — no privado, a absorção destes profissionais é escassa.
A responsável pela pasta da Ciência também tomará posse numa altura em que a área está em ajustamento depois do grande esforço praticado durante a pandemia de Covid-19 — época em que ficou provado o papel da ciência como instrumento ao serviço da sociedade e em que se demonstrou os avanços possíveis quando há grandes investimentos na área.
Foi o que permitiu desenvolver vacinas contra a doença em tempo recorde. Mas ainda há uma vacina portuguesa contra a Covid-19 à espera de financiamento, nomeadamente do Estado, para progredir nos ensaios clínicos — a da Immunethep, sediada em Cantanhede. Outro projeto português à espera de um empurrão — porque ainda não saiu sequer do papel — é o porto espacial dos Açores, em Santa Maria, que continua por construir. O novo concurso para a construção (o primeiro só teve duas propostas e ambas foram excluídas pelo júri) deveria ter começado já este março.
Na área do Ensino Superior, destacam-se os apelos para uma reestruturação na fórmula para atribuição de verbas no setor das escolas superiores. O tema foi levantado pelo Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas que denunciou uma distribuição de verbas que parece prejudicar algumas universidades em detrimento de outras. Mas as queixas abriram um conflito com os institutos politécnicos, que alertaram para a possibilidade de serem prejudicadas no financiamento se essa reestruturação não for acompanhada de um aumento da verba alocada ao Ensino Superior.
As regras de acesso ao ensino superior também podem ser revistas sob a liderança de Elvira Fortunato. São as mesmas desde 2003, orbitando essencialmente em torno das médias obtidas com os exames nacionais, e podem vir a ser alteradas. A pandemia de Covid-19 veio provar isso mesmo: nos últimos anos, e como será neste ano letivo, os estudantes só terão de fazer os exames nacionais que são essenciais para acederem ao curso a que se querem candidatar.
Que momentos mais se destacam na sua carreira?
A invenção do transístor de papel catapultou a carreira de Elvira Fortunato para a esfera pública. “Às vezes estas ideias aparecem assim um bocadinho de repente, sei lá. Uma pessoa lembra-se que trabalha na área dos materiais, sabemos quais as propriedades dos materiais e que, por vezes, podemos usá-los em coisas que à partida ninguém estava à espera. Daí também o sucesso do transístor de papel”, considerou ela em entrevista ao Observador.
Os transístores são peças semicondutoras que trocam e amplificam sinais elétricos; e a sua invenção valeu o Prémio Nobel de Física em 1956 aos investigadores John Bardeen, William Shockley e Walter Brattain. Precisam de três componentes para funcionarem: materiais condutores, materiais semicondutores e materiais isolantes. Neste momento, a maioria dos transístor usam metais como condutores, silício como semicondutor e mica ou vidro como isolante.
O que Elvira Fortunato descobriu é que podia construir transístor com materiais mais baratos e mais sustentáveis. Os metais continuam a ser os materiais condutores, mas a engenheira provou que se pode substituir o silício por óxidos metálicos mais comuns, como o óxido de zinco (que entra até na composição dos protetores solares); e a mica ou vidro por papel.
É quase como fazer uma fotocópia frente e verso, num dos lados tenho o semicondutor, do outro lado tenho o condutor, que estão isolados eletricamente por uma folha de papel. Foi isto que foi feito”, concluiu a cientista.
Ainda não há produtos comerciais com transístores de papel, mas há protótipos. Elvira Fortunato acredita que a tecnologia por ela inventada pode ser de especial utilidade para a indústria farmacêutica, precisamente por causa dos investimentos multimilionários que a produção de medicamentos envolve. Na Suécia e na Finlândia, essa aplicação já está a ser estudada, explicou a engenheira ao Observador:
As próprias embalagens dos medicamentos podem estar ligados e monitorizar, por exemplo, se pessoas mais idosas que vivam sozinhas tomaram o comprimido na hora correta. Se não tomaram há um alarme que é enviado para a pessoa não se esquecer de tomar o medicamento”.
Em 2020, Elvira Fortunato foi distinguida pelo projeto “Invisible”, um ecrã transparente com materiais sustentáveis para o ambiente. Neste caso, a base do produto é o óxido de zinco — um material semicondutor barato, não degradável e que permite uma melhor qualidade de imagem. E não depende de ninhos fios e cabos para funcionar, eliminando a necessidade de criar criar circuitos à base de silício — algo que exige ambientes controlados, a altas temperaturas; e que expõe os trabalhadores a gases tóxicos.