Reportagem em Filadélfia, Pensilvânia
Quando ainda falta uma hora para Joe Biden começar a falar, Sandy saltita de carro em carro, empunhando um papel com letras escritas a preto. Como dá para perceber no cabeçalho daquela folha, aquela é uma tentativa de criar um cântico para Joe Biden.
“Escrevi isto em casa ontem, passei o dia a preparar-me para fazer isto, porque acho que temos de puxar por nós todos para conseguirmos levar o Joe Biden até à Casa Branca”, diz esta voluntária da campanha democrata. “Isto também depende de nós!”
Falta menos de uma hora para o candidato democrata começar a falar diante deste cenário pouco usual, mas que, ao mesmo tempo, se tornou uma das imagens de marca da sua campanha em tempos de Covid-19: um comício em formato drive-in. Em vez das agora desaconselháveis multidões de perder de vista, Joe Biden e os democratas juntam no Franklin Delano Roosevelt Park de Filadélfia aquilo que poderia muito bem ser um stand de carros usados, com pouco mais de 50 viaturas estacionadas de frente para um palco modesto em cenografia.
Sandy está elétrica. “Vamos embora, pessoal!”, grita, enquanto vai passando, num entusiasmo que só uma professora da escola primária, como ela foi até ao ano letivo passado, é capaz de ter. “Vamos abanar isto tudo!”. O seu entusiasmo é imenso e notório — mas o seu plano de torná-lo contagiante vai contra várias barreiras que, no final de contas, demonstram ser intransponíveis.
Primeira barreira: Sandy planeou o cântico de maneira a que ele soasse como o hino dos Philadelphia Eagles, equipa de futebol americano desta cidade, mas a verdade é que muitos lhe respondem “desculpe, não sou de cá, não conheço” e até os locais dizem “não gosto muito de futebol”. Segunda barreira: apesar de usarem todos máscaras, quando Sandy se aproxima das pessoas no seu estilo saltitão, muitos recuam e não chegam sequer a aprender o cântico. Terceira barreira: quando sobe para a parte de trás da sua carrinha pick-up, uma das que estão mais perto do palco, tenta iniciar o cântico, qual maestrina virada para quem está atrás — mas ninguém lhe dá troco, até porque, com a máscara, dificilmente Sandy se faz ouvir. Quarta barreira: começa a chover torrencialmente.
Ao que parece, depois de várias tentativas, Sandy parece reconhecer uma causa perdida quando a tem pela frente. “Eu fartei-me de tentar animar esta gente, gritei por todo o lado, mas eles simplesmente não parecem estar entusiasmados ou com o espírito certo”, disse, ensopada pela chuva. “Se as eleições correrem tão bem como isto aqui, então vamos ter de gramar com o Trump mais quatro anos.”
Fora de portas, mas à porta fechada — e todos com máscara
O comício de Joe Biden pode muito bem ser fora de portas por causa da Covid-19, mas não deixa de ser à porta fechada. Os convites para este evento são distribuídos apenas entre a equipa e os voluntários da campanha de Biden — e, por isso, a haver gente de fora, será porque entraram de carro com alguém que recebeu um desses convites exclusivos. A controlar as entradas estão três barreiras de segurança: primeiro, um voluntário da equipa confirma os nomes numa guest-list; depois de se avançar quase meio quilómetro, a polícia traz um cão para detetar alguma substância ilegal; e, finalmente, passa-se pelos serviços secretos, que fazem revistas de forma aleatória a quem passa.
Entre os membros da equipa de Joe Biden e os voluntários da sua campanha, só Sandy reconhece falta de entusiasmo em torno da campanha do democrata — e alguns chegam mesmo a admitir que, no futuro, não seria nada má ideia continuar a fazer comícios em formato drive-in e não como eles sempre foram feitos: com pessoas de pé, umas ao lado das outras.
Casey tem 33 anos e é voluntário da campanha do democrata. Vive em Chester, na Pensilvânia, e tem estado por todo o lado no Este deste estado que parece guardar as chaves da Casa Branca nestas eleições. Para Casey, este formato é “muito bem pensado” — e até lhe permite matar saudades daquilo que nunca teve.
“Enquanto millennial, posso dizer que sentia uma certa nostalgia em relação à experiência dos cinemas drive-in e agora tive a oportunidade de vir a algo semelhante”, diz. Ainda agora entrou, mas já está a gostar, garante. “É excelente, dá para trazer qualquer coisa para comer, ficar dentro do carro e ouvir tudo sentado, em vez de estarmos na rua ao frio. Por mim podia ser sempre assim que não me importava nem um pouco.”
Casey diz tudo isto sem referir o fator pandemia, mas, quando é altura de fazê-lo, refere o lado de Donald Trump e a maneira como os comícios do candidato republicano têm sido feitos: ao ar livre, mas com multidões cuja dimensão não é controlada e onde a maior parte das pessoas não usa máscara. Esta sexta-feira, um grupo de investigadores da Universidade de Stanford publicou um estudo onde, através de um modelo matemático, era estimado que 18 comícios de Donald Trump entre junho e setembro possam ter causado um excesso de 30 mil infeções e 700 mortes.
No comício de Joe Biden, são muitos os que têm este estudo na ponta da língua. Aqui, não se pode dizer que haja orientações oficiais a indicar que toda gente deve usar máscara — mas, oficiosamente, é isso que se diz. Basta olhar em volta: não deve haver nesta secção do Franklin Delano Roosevelt Park de Filadélfia uma única boca ou qualquer nariz destapados. E, nos EUA, também as máscaras são parte da política.
Uma sondagem da NBC News, no final de julho, demonstrou que apenas 48% de republicanos diziam usar máscara “sempre”, contra 71% de independentes e 86% de democratas que responderam o mesmo. A aversão entre republicanos às máscaras ficou ainda visível numa sondagem da Pew Research Center. Questionados sobre o que lhes tinha dificultado mais a vida em contexto pandémico, a resposta mais comum entre republicanos (19%) foi o uso da máscara. Para os democratas, foi a 9.ª maior preocupação.
Não é, pois, uma surpresa quando Joe Biden aparece no palco não com uma, mas com duas máscaras. Só depois de tirá-las sobre o pódio previamente desinfetado é que grita: “Olá, Filadélfia!”.
Uma questão de fé
Quem ouvisse de longe e não soubesse o que se estava ali a passar naquele canto do Franklin Delano Roosevelt Park de Filadélfia, o mais certo seria pensar que estranho é haver um buzinão ao final de uma tarde de domingo, de um volume tão ensurdecedor que nem no trânsito matinal de segunda-feira se ouviria tal coisa. Mas não era trânsito, era apoio: é esse o código entre os seguidores de Joe Biden.
Quando Joe Biden chega, nem todos estão dentro dos carros. Além do grupo que se juntou mais próximo do palco, há depois todos aqueles que foram criativos em torno das suas viaturas. Muitos estão de pé, ao lado das portas dos respetivos carros, com a janela aberta, de maneira a deixar a buzina à mão de semear. Outros arriscam molhar o interior do carro no meio desta chuvada e abrem o tejadilho, apoiando o pé direito no banco do passageiro e o esquerdo a postos para pisar a buzina sempre que necessário.
O que sobra disto? Um enorme festival de buzinas onde, a páginas tantas, nem Joe Biden conseguia fazer-se ouvir. Talvez por isso — e também por causa da chuva e da distância que ia das pessoas para o palco — o público não ficou a par da primeira gaffe de Biden no discurso.
“Conheço bem Filadélfia. Até casei como uma miúda de Philly”, disse, utilizando o diminutivo para esta cidade. “Já agora, até trouxe o meu casaco dos [Philadelphia] Eagles”, disse, referindo-se ao casaco que levava vestido. O problema é que, em vez da águia dos Eagles, aquele casaco levava outra ave estampada: a galinha azul que simboliza a Universidade do Delaware, onde Joe Biden se licenciou em Ciência Política e em História nos idos de 1965. Ninguém parece ter reparado, perante a quantidade de buzinadelas em sinal de aprovação que Joe Biden recebeu perante aquela entrada.
Nesta altura da campanha, os temas já estão esgotados, os eleitores saturados de informação e os candidatos correm até o risco de terem as suas imagens gastas. Por isso, já não há discursos novos — e, muitas vezes, a diferença de ouvir Biden na Pensilvânia ou em Michigan é apenas o boné ou o casaco das equipas desportivas locais. Mas, para lá de todos os temas que têm marcado a política e a vida em sociedade nos últimos tempos nos EUA — com a pandemia obviamente à cabeça —, há um que Joe Biden vai buscar há quatro anos: a certeza de que só se ganha depois do fim do jogo.
“Milhões de americanos já votaram e mais milhões irão votar nos próximos dias. Mas ainda há muitas pessoas na Pensilvânia que ainda não votaram e nós precisamos de cada um de vocês para conseguirmos trazer os eleitores até às urnas na terça-feira”, disse. “A minha mensagem para vocês é simples: a Pensilvânia é essencial nestas eleições. Da última vez, Donald Trump venceu por apenas 44 mil votos. Cada um dos votos vai contar”.
Um pouco por todo o parque de estacionamento, esta é uma preocupação que assombra os que aqui vieram. Muitos foram voluntários há quatro anos e viram de perto a experiência de sentir o sabor amargo da derrota quando já se preparavam para festejar a vitória. Outros tornaram-se agora voluntários com a esperança de evitar que o mesmo cenário de há quatro anos se repita.
Andrew tem 35 anos e tem dedicado todo o seu tempo livre das últimas duas semanas em ações de voluntariado pelo nordeste da Pensilvânia — isto apesar de viver em Nova Iorque. Antes de ter ido para o terreno, saía do trabalho no setor da tecnologia para ir fazer chamadas a eleitores indecisos. Veio ao comício de Joe Biden com a mãe, que também está envolvida na campanha — dia 3 de novembro, estará a trabalhar nas urnas.
“A experiência de há quatro anos foi traumática, portanto, desta vez, quero garantir que faço tudo o que está ao meu alcance para conseguirmos vencer”, diz. Apesar de participar em campanhas democratas desde a de Barack Obama em 2008, esta foi aquela em que trabalhou mais. “De longe”, acrescenta. Depois, sublinha que “ninguém está disposto a festejar antes de tempo desta vez”. “Por isso é que digo a toda a gente aquilo que sinto: estou esperançoso, mas não estou confiante”, confessa.
Esse esforço de última hora é até visível no discurso de Joe Biden, que, quando se preparava para sair, depois de acenar à audiência que tinha acabado de o ouvir, volta atrás.
“Mais uma coisa…”, acrescenta. “Cada vez que saía da casa dos meus avós em Scranton, o meu avô dizia-me ‘Joe, mantém a tua fé’. E a minha avó depois dizia: ‘Não, Joe, vai espalhá-la’.” Por esta altura, várias pessoas já começam a voltar para dentro dos seus carros — e alguns até já abandonam o local.
Mas houve quem nunca saísse do carro. Foi o caso de Anton Moore, líder da 48.ª divisão do Partido Democrata, que tem passado as últimas semanas nas ruas do seu bairro, no Sul de Filadélfia, para garantir que mais afro-americanos, como ele, vão às urnas desta vez. A uma semana das eleições, organizou até um esquema com um DJ e pizzas para atrair eleitores e um autocarro para levá-los às urnas, como contámos nesta reportagem.
Primeiro, quando ainda falavam os primeiros oradores da noite, Moore não parecia disposto a sair do carro para ir vê-los ao palco. “Está a chover, porra, nem pensar!”, disse, sentado no banco de trás de um carro. “Quando o grandalhão chegar, eu apareço lá”, adiantou, referindo-se a Joe Biden.
Porém, quando o democrata sobe ao palco, Anton Moore ainda ali está — e é lá que continua quando Biden está a contar a história sobre os seus avós, no final do discurso. Uma vez que, por esta altura, a chuva já abrandara, perguntamos-lhe se é por falta de entusiasmo que não saiu do carro. Moore levanta os olhos do telemóvel e aponta para o tablier do carro: “Ah, eu ouvi na rádio…”. Dito isto, regressa ao telemóvel e retoma o scroll. Concentrado nisso, diz, sem convicção aparente: “Não foi mau, não foi mau”.