Primeiro, olhar para — e incentivar o mais possível — a “heróica” resistência ucraniana no terreno, complicando uma ocupação da Rússia. Segundo, estar atento à elite russa — que pode saturar-se das consequências nefastas e da pressão económica que a invasão da Ucrânia trará ao país. E, terceiro, a mais longo prazo, contar com a pressão dos próprios russos, finalmente afetados também pelo peso das sanções económicas, para rejeitarem Putin.
É este o guião que o historiador e analista britânico Timothy Garton Ash traça, numa entrevista telefónica concedida ao Observador esta terça-feira, até ao fim de uma guerra em que compara as consequências que o povo russo sofrerá pelas ações de Vladimir Putin às que o povo alemão sofreu com as de Adolf Hitler. Garton Ash, que viveu nos dois lados da Berlim dividida do tempo da Guerra Fria e viajou pelos países da União Soviética, como documentou em jornais e livros premiados, analisa aqui os erros que o Ocidente cometeu por não se ter prevenido mais cedo. E avisa que a solução estará dentro das próprias elites russas — revelando mesmo que, dentro do próprio Ministério dos Negócios Estrangeiros, a decisão de invadir a Ucrânia não terá sido bem recebida.
No seu último artigo de opinião, no The Guardian, diz que historicamente o Ocidente subestimou muitas ameaças até ser tarde demais. Acha que Putin podia ter sido parado antes? Há algo que o Ocidente devesse ter percebido antes sobre ele e não percebeu?
Sem dúvida, podíamos tê-lo feito. O momento crucial foi 2014, com a anexação da Crimeia, que foi o início da ação armada, incluindo a primeira invasão russa no leste da Ucrânia. Se nessa altura tivéssemos feito muitas das coisas que estamos a fazer agora, como ajudar a Ucrânia a construir as suas capacidades defensivas, aplicar mais sanções à Rússia e reduzir a nossa dependência energética, há uma boa probabilidade de que Putin não tivesse pensado que podia sair impune de uma invasão à Ucrânia em 2022. Em retrospetiva, foi uma grande oportunidade perdida.
E agora, chegados a 2022, qual é o objetivo final de Putin? É a expansão da Rússia e o sonho de um novo império?
Ele claramente quer restaurar tanto quanto possível o império russo e a sua esfera de influência. Acho que o objetivo imediato é recuperar o controlo da Ucrânia e, já agora, da Bielorrússia, para onde se está a encaminhar com uma abordagem agressiva. Se ele não encontrar fortes resistências a isto — e vai encontrá-las –, acho que gostaria de ir mais longe.
Para outros países da esfera soviética.
Duvido muito de que vá tomar uma ação direta contra os países bálticos, que seriam o próximo passo. Já fez ciberataques, já está a fazer lá a guerra da informação. Mas acho que vai ter tantas coisas em mãos — porque a Ucrânia claramente não foi derrotada, está a lutar heroicamente e vai tornar o país ingovernável durante uma ocupação russa — que Putin não vai ter a capacidade de ir além disso no futuro mais próximo.
Estava a falar da resistência ucraniana. Acha que Putin estava a contar com isso?
Passamos o tempo todo a falar de nós, mas o que vai ser realmente decisivo nos próximos dias é a resistência ucraniana, as forças armadas ucranianas, as muito impressionantes forças terrestres e a resistência civil. Ainda há uns minutos vi um vídeo que mostrava civis a porem-se no caminho de um veículo armado russo e literalmente pararem-no com os seus corpos, enquanto gritavam “Volta para a Rússia!”. Quanto mais resistência assim houver, menos Putin vai ser capaz de ocupar a Ucrânia, e isso também significa que se nalgum ponto houver um cessar-fogo ou o início de conversações para a paz ele estará numa posição muito mais fraca. Isso é o que realmente importa. Por isso, o que importa agora além das sanções, para realmente afetar a Rússia, é dar apoio aos militares ucranianos e à resistência ucraniana.
Falou em negociações de paz. Acredita nas que estão a acontecer agora? Já foi noticiado que poderiam ser retomadas esta quarta-feira.
Acho que é muito improvável que as conversações atuais tenham um bom resultado, porque a Rússia ainda está a tentar ganhar militarmente. Mas nem a Rússia nem a Ucrânia vão ganhar esta guerra sem mais, no sentido em que os aliados ganharam a guerra à Alemanha nazi. Por isso, nalgum ponto, terá de haver uma negociação. Mas ainda é cedo.
Estuda estas questões há décadas (e viveu nos dois lados da Berlim dividida durante a Guerra Fria, tendo também viajado pelos países da esfera soviética e documentado a queda do regime durante os anos 1980 e 1990). Putin tem instrumentos em sua posse para manter a opinião pública russa completamente na sua mão? A opinião dos russos também é importante para este desfecho?
Sim, são importantes, porque se soubessem a verdade não apoiariam esta guerra. Neste momento, a maior parte não sabe, sobretudo se vê televisão estatal e ouve dizer que esta é uma operação contra o “nazismo e fascismo”. Claramente, uma parte da opinião pública russa sabe do que se passa, porque se manifesta e temos muitos relatos de russos a contactar os seus amigos e familiares na Ucrânia para pedirem desculpa por isto. Ainda assim, é um erro pensar que no curto prazo há alguma hipótese de o povo russo poder revoltar-se contra Putin. Uma questão mais imediata é se a elite, as figuras de poder no exército e noutras estruturas de poder vão começar a dizer: “Isto está a custar-nos demasiado, economicamente e em termos de reputação, em relação aos interesses russos no mundo. Temos de optar por um rumo diferente”. Ninguém sabe se há pessoas lá que estejam prontas e preparadas para fazer isso, mas acho que é à posição dentro da elite, embora isto seja uma ditadura de um só homem, que é preciso estarmos atentos agora, mais do que ser o povo a revoltar-se. No longo prazo, quando as sanções começarem a fazer efeito e as pessoas perceberem o que estava a acontecer, obviamente a opinião pública começará a ter importância.
Vimos recentemente aquele vídeo de Putin, no Conselho de Segurança russo, e vários desses responsáveis pareciam muito hesitantes sobre a ideia da invasão. Ele parecia estar a forçar algumas das suas respostas. Isso pode levantar a questão sobre se é possível que o Governo e os responsáveis russos não estejam de acordo com Putin e se isto será um plano de um homem só.
Acho que não só é possível como é quase certo. Sabemos de fontes bem posicionadas e com contactos na diplomacia russa, e já ouvi uma delas dizer diretamente, que este não é o rumo que o Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia queria tomar. Qualquer um que tenha uma avaliação realista da situação, e é de esperar que o Ministério dos Negócios Estrangeiros russo tenha uma visão realista, deve perceber isto. O que Putin estava a fazer naquela reunião do Conselho de Segurança russo era torná-los a todos corresponsáveis pela invasão, dizer: “É a vossa guerra, tanto quanto é minha.” É quase uma caixa negra para a maior parte de nós, mas acho que esta é a área para onde devemos olhar. Mas antes disso, nos próximos dias, a história está no terreno, com a resistência ucraniana.
É possível imaginar como é que ficará a relação da Europa com a Rússia e com Putin a partir daqui? É difícil imaginar que depois desta guerra, destas sanções, isto não seja um ponto de não-retorno.
Passamos demasiado tempo a falar da Rússia e não da Ucrânia. O presidente Zelensky pediu que seja iniciado o processo de adesão à União Europeia. Se estivermos a falar do longo prazo, e mesmo no curto prazo, isto é a coisa mais importante que a União Europeia pode fazer, e eu encorajaria qualquer pessoa com influência na UE a fazê-lo. Sendo claro: não creio que se possa aplicar uma ‘via verde’ de entrada a um país como a Ucrânia, mas sim começar o processo, iniciar a negociação, sabendo que vai levar anos para que consigam entrar. Ainda agora falava com uma pessoa em Kiev que está a liderar as tropas no terreno — e por isso está a arriscar a sua vida todos os dias — e ele confirmou que uma mensagem muito importante para os ucranianos cercados é dizer-lhes que os queremos na UE. No que toca à Rússia, obviamente, temos de lidar com Putin, mas o restabelecimento das relações a partir de agora só acontecerá pós-Putin.
Isto pode ser o fim de Putin? Há muitos analistas que dizem que tem uma visão anacrónica, além de isolada, da Rússia. Ainda pode haver Putin depois disto?
Lamento dizer que sim. Claramente estamos a viver num mundo de “homens fortes”, e ele é o homem forte original, mas claro que será uma Rússia isolada e, com o tempo, empobrecida, económica, política, cultural e moralmente. Sejamos claros: tal como os alemães eram vítimas de Adolf Hitler, os russos serão, no final, vítimas de Vladimir Putin. Infelizmente, não devemos ceder à ilusão de que, por ser anacrónico, Putin vai desaparecer.