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Era uma vez uma barrica de carvalho francês (e o vinho nunca mais foi o mesmo)

Entre o crescimento de um carvalho e o estágio de um vinho podem passar-se 200 anos. Encurtámos o processo e em três dias de viagem fomos à descoberta de como nascem as barricas que moldam o vinho.

A chuva miudinha começa a cair assim que chegamos à floresta de Bertranges, cujos quase 8 mil hectares encaixam na região de Nevers, França. À saída da pequena carrinha que aqui nos trouxe está Cyrill Gillet do ONF — Office National des Forêts, organismo governamental francês que tutela a exploração florestal e que gere 11 milhões de hectares de florestas públicas com vista à sua continua renovação. Vestido de verde dos pés à cabeça e indiferente à agua que escorre timidamente do céu cinzento-escuro, Gillet encaminha-nos para dentro da floresta, o suficiente para ficarmos com as galochas ligeiramente enterradas na terra e debaixo das copas das árvores. É ali que nos explica onde tudo começa: o ONF identifica e leiloa de dez em dez anos as parcelas de floresta com árvores centenárias para possível abate — cabe, depois, aos técnicos das tanoarias avaliar o potencial dos troncos imensos que podem ou não transformar-se em barricas de carvalho francês, muitas vezes a primeira morada do vinho, seja ele branco ou tinto.

De pés bem assentes na floresta de Bertranges — que, à semelhança de todas as florestas públicas, nunca é votada ao abandono –, dizem-nos que as árvores ao nosso redor têm uma média de 160 a 180 anos, erguem-se cerca de 50 metros em direção ao céu e beneficiam de influência atlântica, útil para o carvalho que, com sorte, pode dar origem a cerca de uma dezena de barricas (o veio curvo de uma árvore é suficiente para a tornar inapta). Cyrill Gillet, uma espécie de guarda florestal dos tempos modernos, explica que o abate de árvores não identificadas é legalmente impossível e pode levar até dois anos de prisão. Explica-nos também, apontando para um manto de árvores, que ali ao fundo existem viveiros de carvalho com vista à replantação.

Cyrill Gillet do ONF - Office National des Forêts

O cenário descrito é um dos berços das barricas de carvalho francês, nas quais estagiam tantos e bons vinhos — não descurando, naturalmente, o carvalho português (mas essa é outra história). Quase 200 anos podem separar o crescimento de um carvalho e a possibilidade de um vinho estagiar na sua madeira, um processo que o influencia. Se antigamente a madeira servia apenas enquanto depósito, para transportar ou guardar vinho, hoje em dia é usada para enriquecê-lo — cada vez mais de uma forma que não o marque. “A madeira deve servir para dar mais untuosidade e mais profundidade de boca ao vinho, não para o marcar aromaticamente. Não é fácil conseguir isso”, diz-nos o enólogo Diogo Lopes, que nos acompanhou nesta viagem às tanoarias Berthomieu e Ermitage, do grupo francês Charlois. Ambas as marcas trabalham madeiras de terroir, isto é, produzem barricas de carvalho francês a partir de diferentes florestas (origens) que são capazes de potenciar perfis de vinhos distintos.

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Parece estranho pensar em barricas de terroir, mas se estabelecermos um paralelismo com o vinho, fica mais fácil de explicar: se um terroir (que entre outras coisas, junta solo, clima e intervenção humana) é capaz de influenciar grandemente o resultado final de um vinho, o mesmo acontece tendo em conta a barrica onde este vai fermentar e/ou estagiar. “Normalmente, as barricas são selecionadas pela granulometria. Aqui trabalha-se o terroir das madeiras, é uma coisa que leva tempo”, continua o enólogo português, com projetos na região de Lisboa, Açores e Douro, a título de exemplo. Há efetivamente diferenças tendo em conta a origem da madeira. Para Lopes, a floresta de Bertrangers, que visitámos ao segundo dia de viagem, “preserva muito aquilo que é uma das características mais importantes no vinho, isto é, a sua frescura e carga mineral.”

A associação entre qualidade de vinho e madeira não é despropositada, não que isso signifique, como é evidente, que todos os vinhos precisem de ir à madeira — há perfis e perfis. Mas existe uma correlação se pensarmos que a barrica é um investimento avultado, para cima de 700 euros a unidade, considerando uma capacidade de “armazenamento” de 225 litros. Isto sem contar que, na origem, uma árvore pode custar em média 2.000 euros — e, naturalmente, não são só as tanoarias que as compram. Mais, se no caso dos vinhos brancos as barricas têm uma validade quase eterna, o mesmo não acontece em relação aos tintos — mal uma barrica recebe vinho tinto, deixa de ser nova e a sua validade fica comprometida até um máximo de cinco anos. “Só mesmo os melhores vinhos é que comportam este tipo de investimento, além de serem necessariamente vinhos com boa estrutura, capazes de aguentar o estágio.”

Na floresta de Bertranges, os carvalhos têm em média 160 anos

Aduela a aduela, constrói-se uma barrica

O dia continua frio quando chegamos a uma “merranderie”, local onde se inicial o processo industrial com vista à construção da barrica. É aqui que encontramos António Aguiar Abade, português de 53 anos que trocou o país de origem por França com apenas 8 anos. É ele quem nos explica, num português afrancesado que lhe foge da boca, que cerca de 30% de cada árvore abatida é aproveitada para fazer aduelas. António mata saudades da língua de Camões, à conversa com o grupo de jornalistas que sofregamente lhe pede informação, enquanto assinala nos troncos das árvores, com tinta amarela florescente, as medidas certas para criar futuras aduelas (“merrain”, em francês, isto é, as tábuas que são a estrutura base de uma barrica).

4 fotos

Depois de desenhadas as medidas, os carvalhos são cortados e fendidos, diz-nos Aguiar Abade, apontado para a maquinaria que se abriga da chuva miudinha, debaixo de um toldo de pedra. O processo da fenda respeita a estrutura molecular da árvore e difere da técnica de corte do carvalho americano, que é cerrado. O certo é que uma grande lâmina parece fender sem qualquer esforço os blocos do tronco previamente cortados, que tombam no chão com uma facilidade incrível. E a cada tombo, o chão estremece — nada que pareça fazer confusão a quem aqui trabalha. Fendida a madeira, o material é submetido ao envelhecimento natural ao ar livre, em parques virgens de poluição, por um período mínimo de 24 meses (neste caso em concreto). O processo é moroso e preciso: a ideia passa por eliminar a humidade, os taninos (que ficando em excesso na madeira podem marcar demasiado os vinhos) e outros componentes indesejados.

“Há um fator que raramente se fala, que diz respeito à parte da secagem”, explica-nos Diogo Lopes — braço direito do enólogo e “Senhor Alvarinho” Anselmo Mendes e devoto das barricas em questão. “Quando se fazem as primeiras paletes, a madeira está verde. Ou seja, os veios onde circulam a seiva estão muito frescos. O processo de secagem faz com que a madeira perca esta humidade natural da seiva, de forma a que os vasos sequem permanentemente. Além da origem da madeira, o sítio onde vamos fazer este processo de secagem ao ar livre vai influenciar muito.” A julgar pelas palavras do enólogo da AdegaMãe, a madeira precisa tanto do período de secagem como o vinho de um estágio capaz de lhe moldar ou fazer sobressair o seu real carácter.

Em três dias de viagem houve oportunidade para conhecer duas tanoarias do grupo já referido — uma bem mais tradicional do que a outra. Se na primeira, uma barrica leva um dia a ser construída pelas mãos de um mesmo homem, num processo integralmente artesanal tal qual uma arte esquecida, na segunda a estrutura mecanizada torna tudo mais fácil e rápido. O ciclo de produção começa precisamente após o período de secagem, com a madeira a ser cortada e limpa no seu tamanho definitivo para, depois, as aduelas serem armadas na estrutura da barrica (roseta). Segue-se a pré-tosta a vapor, com as rosetas a serem submetidas a uma câmara de vapor, a temperatura elevada, cujo processo vai permitir a redução de taninos. A estrutura ainda por definir da barrica é domada pelo vapor.

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Há mais passos a serem dados nesta tanoaria, que consegue produzir cerca de 120 barricas por dia com os 35 homens que aí trabalham das 07h às 15h — o armazém, nas traseiras, fala por si (o grupo Charlois tem um total de 7 tanoarias e, ao todo, consegue garantir o fabrico de 350 barricas por dia). Concluída a pré-tosta a vapor, que ainda demora uns 30 minutos, segue-se a muito importante tostagem pelo fogo, cuja intensidade das labaredas que brotam de uma fogueira, vindas do chão, varia consoante o objetivo final (pode-se escolher entre quatro tipos de tostagem, da ligeira à mais forte, consoante o estilo de vinhos pretendidos). A tostagem tem sempre a duração de uma hora, o que varia é a intensidade das chamas — a olho nu, conseguimos contar 20 tostadeiras, se assim as podermos chamar, e vários exaustores XXL há muito enegrecidos pelo fumo.

Se a escolha da floresta (origem) pode ser considerada o detalhe, o pormenor, a tosta acaba por ser uma decisão mais óbvia, diz Diogo Lopes, que usa barricas de tostas ligeiras nos brancos e barricas de tostas médias nos tintos que produz, a título de exemplo, na AdegaMãe. “Os tintos aguentam o carácter mais tostado da barrica, o que ajuda bastante a dar complexidade ao vinho.”

Uma barrica de 225 litros pode pesar até 55 quilos.

A fase dos acabamentos chega com a colocação das tampas nas barricas e com os obrigatórios testes de controlo de qualidade, que passam pela inserção de água quente e de pressão no interior da barrica, de modo a despistar eventuais fugas — no dia em que visitámos a tanoria de processo mecânico, uma das barricas falhou o teste e foi posta de lado para, mais tarde, ser sujeita a retoques. Parece fácil, mas não é: o processo pode ser mecanizado, mas não é independente do esforço físico de quem aqui trabalha, de tantas que são as vezes em que as barricas são transportadas e até marteladas. A título de exemplo, uma barrica de 225 litros pode pesar até 55 quilos.

No fim de tudo, assistimos à colocação dos aros definitivos, de um prateado intenso, que vão substituir os ferrugentos utilizados na produção. Finda esta fase, as marteladas dão finalmente trégua aos ouvidos virgens de tamanho barulho. Talvez não devêssemos ter recusado os tampões oferecidos à chegada.

Em Sancerre o Sauvignon Blanc é rainha

As tanoarias visitadas encontram-se a escassos minutos de Sancerre, na margem esquerda do rio Loire. É esta região de vinhos com mais de 3.000 hectares e cerca de 300 produtores, onde a casta Sauvignon Blanc é rainha — em menor escala, podemos dizer que a tinta Pinot Noir é uma espécie de rei consorte. Os produtores que visitámos — Domaine Henri Bourgeois, na vila de Chavignol, e Domaine Vincent Pinard, em Bué, comuna que faz parte de Sancerre — são exemplo da variedade de perfis vínicos que se podem criar a partir de uma só casta (em particular, o Sauvignon Blanc).

O primeiro domaine (que, em português, equivale a um produtor de vinho) tem uma longa tradição de vinho e uma infraestrutura de enoturismo montada na pequena vila de Chavignol que vale a pena conhecer. Não se trata apenas de visitar a sua adega gravitacional e as caves onde estão pérolas vínicas com décadas de existência, mas também (e sobretudo) provar as muitas referências da casa e conhecer a história por detrás do apelido. Jean-Christophe Bourgeois, que nos acompanhou na visita, conta-nos, por exemplo, como um dos seus familiares chegou a enterrar o vinho no pavimento para que, durante a segunda guerra mundial, os alemães não o descobrissem.

O enólogo Diogo Lopes na visita ao Domaine Henri Bourgeois.

Já o Domaine Vincent Pinard trabalha com 17 hectares de vinha e aposta numa produção biodinâmica. A vindima é manual, garante-nos um dos filhos do homem que dá nome ao domaine, e os vinhos tentam, tanto quanto possível, aproximarem-se do seu “sabor original” — uma ideia que contrasta fortemente com a noção de “vinhos cosméticos”. “Quem decide é o vinho e não o enólogo”, diz-nos Clément, que ajuda a tomar contar das 12 referências de vinhos existentes (oito brancos, três tintos e um rosé). À prova deu-nos vários vinhos, mais brancos do que tintos, cuja madeira era curiosamente pouco expressiva, capaz de enaltecer determinadas características no vinho, sem nunca se sobrepor ao seu carácter. A adega deste domaine é pequena e aqui apenas encontramos 20% da produção. Não há programa fixos de enoturismo, mas Clément garante abre a porta a quem passar. As provas, essas, são sempre gratuitas — parece ser tradição não oficial da região. É de aproveitar.

O Observador viajou ao convite do Grupo e da empresa N Cadete.

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