Entre 2001 e 2018, em Espanha, o Barcelona conquistou nove Campeonatos, sete Taças do Rei e nove Supertaças. Entre 2001 e 2018, o Barcelona também pagou mais de seis milhões de euros a José Maria Enríquez Negreira, antigo árbitro e, nesse período, vice-presidente do Comité Técnico de Árbitros da Federação Espanhola de Futebol.
Conhecido como “caso Negreira”, o escândalo chegou ao domínio público há cerca de mês e meio. Começou por estar restrito a dois anos e meio, entre 2016 e 2018, passou a estender-se até 2001 e depressa se percebeu que os 1,4 milhões inicialmente adiantados eram, na verdade, os tais seis. Josep Maria Bartomeu negou tudo, Joan Laporta abriu um inquérito interno e garantiu que vai apresentar explicações, Javier Tebas defendeu a demissão do atual presidente do Barcelona. Pelo meio, a UEFA já abriu uma investigação própria e os catalães podem acabar excluídos de futuras competições europeias.
Depois do Barçagate, caso onde Bartomeu é arguido e que até o levou a ser detido há cerca de dois anos, o Barcelona volta a estar envolvido num enorme escândalo. Um escândalo que é, muito provavelmente, o maior de sempre a ter lugar no futebol espanhol. E todos os dias existe um capítulo novo.
O início do escândalo e as 33 faturas
A bomba rebentou a meio de fevereiro, há cerca de mês e meio. Numa aparentemente normal manhã de quarta-feira, a SER Catalunya revelava que o Barcelona tinha pago 1,4 milhões de euros ao vice-presidente do Comité Técnico de Árbitros da Federação Espanhola de Futebol entre 2016 e 2018. José María Enríquez Negreira, o homem cujo apelido iria tornar-se sinónimo de um dos maiores escândalos desportivos em Espanha, era agora um nome a ter em conta.
De acordo com a primeira notícia, Negreira tinha recebido a avultada quantia em tranches mensais e através da DASNIL 95, uma empresa que detém e onde o filho também é administrador. Quando o caso chegou à comunicação social, tanto Negreira como o filho já tinham sido ouvidos pelo Ministério Público, em declarações onde confirmaram a existência dos pagamentos mas rejeitaram a ideia de ser uma recompensa por alegados favores. Na altura, o antigo árbitro – integrou equipas de arbitragem da La Liga durante 13 anos – garantiu que realizou um trabalho de assessoria para o Barcelona, dedicando-se a explicar aos jogadores a forma correta como deviam comportar-se em campo e as adaptações que podiam adotar consoante o juiz nomeado para determinado jogo.
Ainda assim, Negreira não apresentou qualquer fatura relativamente a esse trabalho de assessoria e ao pagamento milionário e o Barcelona, por sua vez, também não reportou à Autoridade Tributária nenhum documento que sirva como prova dessa prestação de serviços. De acordo com a notícia inicial, o vice-presidente do Comité Técnico de Árbitros – cargo que ocupou entre 1994 e 2018 – tinha recebido do clube 532 mil euros em 2016, 541 mil euros em 2017 e 318 mil euros em 2018.
Com a janela temporal a reportar a um tempo em que o presidente catalão ainda era Josep Maria Bartomeu, coube a Joan Laporta assinar a primeira reação oficial do Barcelona a todo o caso. “No passado, o Barcelona contratou os serviços de um consultor técnico externo que providenciava, em formato vídeo, informações técnicas referentes a jogadores de categorias inferiores do Estado espanhol para a secretaria técnica do clube. Adicionalmente, a relação com esse funcionário externo ampliou-se através de informações técnicas relacionadas com a arbitragem profissional, com o objetivo de complementar informação pretendida pela equipa técnica da equipa principal e da equipa B, uma prática habitual nos clubes de futebol profissionais”, começava por referir o comunicado do clube.
“Atualmente, este tipo de serviços externos recai num profissional que está integrado à área do futebol. O Barcelona lamenta que esta informação surja precisamente no melhor momento desportivo da presente temporada. O Barcelona vai iniciar ações legais contra quem está a denegrir a imagem do clube com possíveis insinuações contrárias à reputação da entidade”, podia ler-se na nota. Contudo, e apesar das explicações dos catalães, depressa se percebeu que o caso dificilmente ia ficar por aí.
Ainda no mesmo dia, mais pormenores: Javier, o filho de José María Enríquez Negreira, o tal filho que também era administrador da empresa que recebia os pagamentos do Barcelona, era responsável por ir buscar os árbitros de maior renome aos respetivos hotéis e transportá-los diretamente a Camp Nou no dia dos jogos. E isso era só a primeira camada da cebola a ser descascada.
Os 1,4 milhões passaram a 1,7 para aterrar nos seis. E tudo começou em 2001
De forma natural, até porque o Barcelona conquistou dois Campeonatos, três Taças do Rei e duas Supertaças de Espanha entre 2016 e 2018, a imprensa espanhola apressou-se a rever as decisões de arbitragem mais polémicas em jogos dos catalães durante essa janela temporal. E saltou à vista um pormaior: nesses três anos, o Barcelona não teve qualquer grande penalidade assinalada contra si na Liga espanhola ao longo de 78 partidas.
As teorias da conspiração desenhadas a partir das críticas às arbitragens dos jogos dos blaugrana que tantas vezes surgiam tinham agora uma base de sustentação palpável – ainda que não fosse possível formular qualquer ligação direta de causa-efeito. Mas existiam motivos para levantar dúvidas. 33 motivos, aliás. No dia seguinte às primeiras notícias, o El Mundo revelou que, em janeiro de 2021, os dirigentes do Barcelona apresentaram 33 faturas com a empresa de Negreira como destinatária à Autoridade Tributária.
A primeira fatura, de janeiro de 2016, tinha o valor de 45.228,8 euros – a partir daí existiu uma periodicidade mensal que mudava apenas no valor a ser liquidado e que oscilou entre os 90.750 euros e os 30.250 euros. O último pagamento ocorreu em junho de 2018 e, ao contrário do valor inicialmente apontado de 1,4 milhões, ficava claro que o Barcelona tinha transferido 1,685 para a DASNIL 95 ao longo de dois anos e meio. De acordo com declarações da Autoridade Tributária ao El Mundo, o clube queria “assegurar-se de que, com os referidos pagamentos, não seriam tomadas decisões arbitrais contra si, ou seja, que tudo fosse neutro”.
Na mesma altura, o El País explicou de forma detalhada o que estaria incluído no “pacote” que foi pago pelo Barcelona até junho de 2018, altura em que José María Enríquez Negreira deixou de ser vice-presidente do Comité Técnico de Árbitros: sempre que existia um jogo da La Liga ou da Taça do Rei, com uma cadência que era no mínimo semanal, era entregue nos escritórios do clube um dossiê com informações por escrito e um DVD com imagens sobre o perfil e o comportamento do árbitro nomeado para o encontro seguinte. Depois de ser analisado pelos dirigentes, todo esse conteúdo passava para a equipa técnica, que poderia ou não utilizá-lo mediante a necessidade. Segundo o jornal, o mesmo processo era repetido com a equipa B.
Entretanto, no meio do escândalo, Josep Maria Bartomeu decidiu defender-se pessoalmente. “É absolutamente falso e absurdo pensar que comprámos algum árbitro. Não há nada a esconder. Se existisse influência nossa junto dos árbitros não nos tinham anulado um golo na última jornada contra o Atl. Madrid. Um golo que nos dava o título. É absurdo pensar isto. E podia dar mais exemplos. Os dossiês de informação existiam, eram entregues tanto à equipa principal como à equipa B antes de cada jogo para comentar aspetos acerca do árbitro nomeado. Os treinadores e os jogadores agradeciam”, explicou o antigo presidente dos catalães, que revelou ainda que os dossiês eram preparados pelo filho de Negreira e não pelo próprio, algo que foi confirmado por Javier quando foi ouvido.
Ora, quando tudo já parecia particularmente grave, surgiu o detalhe que deu a volta à versão do Barcelona. Ao contrário do que tinha sido inicialmente adiantado, a relação entre os catalães e o antigo árbitro não tinha começado em 2016 – mas sim em 2001, há mais de 20 anos, o que estendia o problema a mandatos de Joan Gaspart, Sandro Rosell e também Joan Laporta, que liderou o clube entre 2003 e 2010 antes de voltar a candidatar-se em 2021. A notícia foi revelada pelo El Mundo, que adiantou que José María Enríquez Negreira tinha ameaçado contar toda a história à comunicação social quando os milionários pagamentos foram interrompidos.
“A minha surpresa e a minha desilusão têm sido gigantescos. Depois de todo este tempo juntos levo o fim do acordo como um insulto pessoal e absolutamente injustificado. Tenho a forte intenção de reportar tudo isto aos tribunais, algo que garantidamente teria consequências negativas. Até agora não iniciei este processo para evitar consequências sérias, na esperança de chegar a um acordo em relação ao meu pedido. Acho que um novo escândalo não iria favorecer o clube. Até hoje, tendo em conta a reciprocidade de tratamento que recebi de si, dos ex-presidentes e do clube, considero que conquistei respeito e levo o tratamento atual com dano e ofensa, o que infelizmente me liberta da obrigação auto-imposta”, escreveu o antigo árbitro num burofax enviado a Josep Maria Bartomeu já depois de o Barcelona decidir dispensar os serviços prestados.
O El Mundo indicava ainda que, no total e bem longe dos 1,4 ou 1,7 milhões de euros inicialmente reportados, o Barcelona transferiu mais de seis milhões de euros para a empresa de Negreira de 2001 a 2018. A partir deste momento, Joan Laporta ficou diretamente implicado no caso. O atual presidente dos catalães não só tinha sido prolongado os pagamentos ao antigo árbitro como os tinha engordado – já que o jornal espanhol garantia que, durante o primeiro mandato de Laporta, Negreira deixou de ganhar 145.000 euros mensalmente para encaixar 573.000 euros a cada mês.
A dica de Tebas, o Alzheimer de Negreira e a queixa-crime de um árbitro
Na sequência de tudo isto e sem conseguir continuar a escusar-se a comentários ou referências, o presidente da La Liga acabou por abordar o caso. “Se Laporta não sabe explicar as coisas, devia demitir-se. Uma coisa é trabalhar com ex-árbitros, outra é o Comité Técnico de Árbitros. Tem de se perceber o que é que aconteceu. São muitas temporadas, com diferentes direções que teoricamente não tiveram comunicação entre elas. Não sei, não me parece nada bem. Não me vou esconder atrás dos clubes neste tema, vamos seguir a mesma linha. Não vou presidir uma instituição onde existem indícios que não posso investigar. Existe um mal-estar generalizado entre os clubes”, atirou Javier Tebas, numa altura em que tanto o Sevilha como o Espanyol tinham emitido comunicados a reportar alguma preocupação relativamente às notícias que iam saindo. O Real Madrid, que de início tentou passar “à margem” para não beliscar um projeto chamado Superliga Europeia, assumiu depois que iria colocar-se como assistente no processo.
Nesta fase, menos de uma semana depois do rebentar do escândalo, o Comité Técnico de Árbitros enviou uma carta a todos os árbitros dos dois primeiros escalões espanhóis para perceber se tinham tido algum tipo de contacto com José María Enríquez Negreira ou com o filho, Javier. A carta em questão incluía quatro perguntas:
- 1) Antes do mês de maio de 2018, teve algum tipo de relação com Javier Enríquez Romero? Em caso de resposta afirmativa: a) que tipo de relação tinha?, b) em que período temporal teve lugar essa relação?, c) caso tenha existido uma compensação económica, refira as quantidades recebidas;
- 2) Antes do mês de maio de 2018, em algum momento foi acompanhado por Javier Enríquez Romero ao estádio onde ia arbitrar? Em caso de resposta afirmativa, refira os jogos em questão e as datas em que tal aconteceu;
- 3) Depois do mês de maio de 2018, teve algum tipo de relação com Javier Enríquez Romero? Em caso de resposta afirmativa: a) que tipo de relação tinha?, b) em que período temporal teve lugar essa relação?, c) caso tenha existido uma compensação económica, refira as quantidades recebidas;
- 4) Depois do mês de maio de 2018, em algum momento foi acompanhado por Javier Enríquez Romero ao estádio onde ia arbitrar? Em caso de resposta afirmativa, refira os jogos em questão e as datas em que tal aconteceu.
Dias depois, a equipa de advogados de Negreira adiantou que o antigo árbitro foi recentemente diagnosticado com Alzheimer, um dado que vai obrigar a que seja sujeito a exames caso a investigação do Ministério Público espanhol resulte numa acusação e num consequente julgamento. Pelo meio, os clubes da La Liga à exceção do Real Madrid e do Barcelona emitiram um comunicado conjunto a repudiar todo o caso, enquanto que Joan Laporta decidiu defender-se e responder às declarações de Javier Tebas.
“Tirou a máscara, continua a ser obcecado pelo Barcelona. Defender assim que eu devia deixar a presidência mostra a sua intenção de manipular o Barça à distância, porque sabe que enquanto eu for o presidente não vai conseguir fazê-lo. Queremos dar todas as explicações e isso não vai tardar. Mas garanto que, no meu primeiro mandato, estes pagamentos tinham como origem um fator documental e uns vídeos que provam que os serviços de assessoria existiam”, atirou o líder catalão, no mesmo discurso em que anunciou que o Barcelona iria realizar uma investigação interna a todo o caso.
Já no final de fevereiro, todo o escândalo deu a volta mais inesperada. Xavier Estrada Fernández, árbitro catalão, decidiu entrar pessoalmente na narrativa e apresentar uma queixa-crime contra José María Enríquez Negreira e o filho, defendendo que ambos foram pagos “com o objetivo de garantir uma arbitragem favorável aos interesses do Barcelona”.
As mariscadas, a investigação da UEFA e uma denúncia do Ministério Público onde Laporta e Javier ficaram de fora
Entretanto, nas últimas semanas, as peças do puzzle têm continuado a surgir. O El Mundo revelou recentemente que, dos seis milhões de euros que o Barcelona pagou a Negreira de 2001 a 2018, cerca de 550.000 serviram para o antigo árbitro realizar compras algo suspeitas. No mínimo. O agora ex-vice do Comité Técnico de Árbitros chegou a adquirir 1.500 cartões vermelhos e amarelos personalizados, com os correspondentes porta-cartões, para distribuir pelos juízes. Adicionalmente, gastou mais de 2.000 euros em moedas especiais para o sorteio do campo no início dos jogos.
As contas da DASNIL 95 também incluem gastos de milhares de euros em bilhetes para jogos de futebol, presuntos, doces, vinhos, licores, queijo, bilhetes de lotaria, tostadeiras, mantas, canetas topo de gama ou contas astronómicas nas melhores marisqueiras de Madrid e Barcelona. Despesas que, supostamente, eram presentes para os clientes da empresa. O problema? O único cliente da empresa era o Barcelona.
Já em março, o Ministério Público denunciou oficialmente o Barcelona por alegada corrupção. A denúncia prende-se com os crimes de corrupção entre particulares no âmbito desportivo, administração desleal e falsidade documental e inclui o próprio José María Enríquez Negreira, os ex-presidentes Sandro Rosell e Josep Maria Bartomeu e os ex-dirigentes Óscar Grau e Albert Soler. De fora ficaram Joan Laporta e Javier, o filho do antigo árbitro, por não ter ficado provado que “conhecia e partilhava do propósito do pai”.
Dias depois, também a UEFA anunciou que tinha iniciado uma investigação – sendo que as eventuais sanções, se tudo ficar provado, vão da advertência e da multa à exclusão das competições europeias futuras e até à retirada de títulos já conquistados. O escândalo dos pagamentos do Barcelona a Negreira já é um dos maiores da história recente a nível europeu e o maior de sempre em Espanha. E todos os dias, praticamente sem exceção, existe um capítulo novo.