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O nome de Marcelo Rebelo de Sousa tem sido referido, por várias vezes, no caso das gémeas luso-brasileiras que receberam a nacionalidade portuguesa em apenas 14 dias e viajaram para Portugal para receber um tratamento de quatro milhões de euros num hospital público. Agora, o Ministério Público abriu um inquérito e está a investigar quer o processo que levou à atribuição de nacionalidade quer a disponibilização de um dos medicamentos mais caros do mundo às duas menores, também de forma muito rápida. Caso os procuradores do MP encontrem indícios de favorecimento do Presidente da República, será que pode ser aberto um processo contra o Chefe de Estado? E se for chamado como testemunha, pode recusar?

Num primeiro momento, Marcelo Rebelo de Sousa disse não ter nada a ver com o assunto, nem se lembrar de qualquer conversa com o filho sobre o caso (a mãe da criança disse conhecer e ter falado com a nora de Marcelo). Mas além dessa relação, a existência de uma troca de emails entre o Chefe de Estado e um dos médicos do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, deixou dúvidas por explicar sobre a intervenção (ou não) de Marcelo em todo esse processo.

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Mais recentemente, a 4 de dezembro, o Presidente da República chamou os jornalistas ao Palácio de Belém para falar especificamente sobre este tema. Nessa conferência de imprensa, Marcelo garantiu não ter dado “nenhum privilégio” e ter sido o “mais neutral” possível na gestão do caso das gémeas luso-brasileiras que vieram a Portugal receber o tratamento médico de que precisavam. Um processo relâmpago que — revelou Marcelo — incluiu 10 dias de acontecimentos (de 21 a 31 de outubro de 2019) na Presidência da República, entre o momento em que um email do “doutor Nuno Rebelo de Sousa”, seu filho”, chegou à caixa de correio de Marcelo e o momento em que o processo “saiu de Belém”.

“O que se passou a seguir [a Belém]? Não sei”, disse o chefe de Estado na mesma conferência de imprensa. “Para isso é que há a investigação da Procuradoria-Geral da República. Espero, como disse há dias, que seja cabal para se perceber o que se passou desde o momento em que saiu de Belém, foi para o sítio para onde normalmente ia sempre [Presidência do Conselho de Ministros], e depois saiu o seu processo”, rematou.

Como é que se chegou ao ponto de o Ministério Público instaurar um inquérito para investigar este caso? E o que pode acontecer daqui para a frente? O Observador responde às principais questões.

O que é que o Ministério Público está a investigar?

O Ministério Público anunciou esta sexta-feira que está a investigar o caso das gémeas luso-brasileiras, que viajaram do Brasil para Portugal em junho de 2020 para receber um tratamento no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. A administração de cada uma das duas doses de Zolgensma rondou os dois milhões de euros — quatro milhões de euros, no total.

De acordo com a informação avançada pela Procuradoria-Geral da Republica, “o processo encontra-se em investigação no DIAP [Departamento de Investigação e Ação Penal] de Lisboa e, por ora, não corre contra pessoa determinada”, o que significa que está na parte do DIAP que investiga casos contra desconhecidos — e que é, aliás, o departamento onde chegam mais processos diariamente.

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Como é que o Presidente da República foi envolvido neste caso?

O caso foi tornado público através de uma investigação da TVI e, nesse mesmo trabalho, foi avançado que a nora de Marcelo Rebelo de Sousa terá indicado que a Casa Civil poderia intervir neste processo para que o tratamento fosse feito num hospital público português e com mais rapidez, uma vez que é um tratamento para doenças raras e com custos muito elevados para os cofres do Estado.

Na altura, em 2020, a equipa de neuropediatria do Hospital de Santa Maria opôs-se ao tratamento, mas o mesmo acabou por ser feito. Além disso, foi também divulgado um email de resposta de Marcelo Rebelo de Sousa a este hospital, em que o chefe de Estado referia ter conhecimento do caso das gémeas luso-brasileiras. Além disso, o coordenador da unidade de neuropediatria do Hospital de Santa Maria referiu na mesma reportagem que “corria nos corredores que o tratamento ocorreu por influência do Presidente da República”.

Marcelo pode ser constituído arguido?

Para já, a investigação ainda está numa fase inicial — o inquérito terá sido instaurado no início do mês de novembro, quando vieram a público as primeiras notícias sobre este caso —, podendo levar vários meses a ser concluída. Se os procuradores do Ministério Público que ficaram com o caso em mãos entenderem que o Presidente da República teve algum tipo de influência no processo, mesmo sendo titular de cargo político, Marcelo Rebelo de Sousa pode ser constituído arguido.

Mas não é assim tão simples. Existem normas específicas na lei que enquadra o procedimento a cumprir nos crimes da responsabilidade de titulares de cargos políticos. Neste caso, o artigo 33 é bem claro: primeiro, caso um Presidente da República seja investigado por crimes eventualmente praticados no exercício das suas funções, o processo não poder correr num tribunal de primeira instância, como acontece normalmente, mas no Supremo Tribunal de Justiça; e, em segundo lugar, cabe aos deputados da Assembleia da República avançar com uma iniciativa para a abertura de um inquérito que vise a mais alta figura do Estado.

“A iniciativa do processo cabe à Assembleia da República, mediante proposta de um quinto e deliberação aprovada por maioria de dois terços dos deputados em efetividade de funções”, refere esta norma. Ou seja, são necessários 46 deputados para avançar com a iniciativa e é obrigatória a aprovação por pelo menos 153 dos 230 deputados eleitos.

Uma vez que a audição de Marcelo como arguido depende dos deputados, a dissolução da Assembleia da República tem consequências?

O Parlamento só será dissolvido em janeiro, uma vez que Marcelo Rebelo de Sousa permitiu que a Assembleia da República continuasse em plenas funções até à votação do Orçamento do Estado para o próximo ano, que acontecerá a 29 de novembro, e marcou eleições para o dia 10 de março de 2024. O Parlamento só pode ser dissolvido 55 dias antes das eleições e esse calendário eleitoral permite perceber que o funcionamento da AR se mantêm em pleno até às primeiras semanas de 2024.

Tendo em conta que, por norma, a investigação de um caso não fica concluída num período tão curto — cerca de três meses, desde o início do processo —, é provável que, se o Ministério Público encontrar indícios suficientes da intervenção de Marcelo no processo de atribuição de nacionalidade às gémeas brasileiras ou na disponibilização do tratamento no Hospital de Santa Maria, esta votação pelo Parlamento tenha de ser feita já depois das legislativas.

Caso o Ministério Público manifeste intenção (se isso vier mesmo a acontecer) de investigar Marcelo antes das eleições e já depois da dissolução do Parlamento — portanto, entre janeiro e o momento em que a próxima composição parlamentar assuma funções —, o mais provável é que a votação dessa iniciativa tenha também  de esperar.

A Constituição da República Portuguesa refere, no seu artigo 172, que “a dissolução da Assembleia da República não prejudica a subsistência do mandato dos deputados, nem da competência da comissão permanente, até à primeira reunião da Assembleia após as subsequentes eleições”. Mas esta Comissão Permanente, constituída pelos presidente e vice-presidentes da Assembleia da República e por deputados escolhidos pelos vários partidos, só funciona em casos excecionais, excluindo uma votação desta natureza.

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No artigo 179, é referido que a Comissão Permanente pode “promover a convocação da Assembleia sempre que tal seja necessário”, mas não para que os deputados participem em votações de diplomas, e que pode “dar assentimento à ausência do Presidente da República do território nacional, autorizar o Presidente da República a declarar o estado de sítio ou o estado de emergência, a declarar a guerra e a fazer a paz”.

“A abertura de um processo, no momento em que a legitimidade do Parlamento está diminuída, parece-me altamente improvável”, considera Pedro Bacelar de Vasconcelos. O constitucionalista, e ex-deputado do PS, explica ainda ao Observador que a Comissão Permanente “é um governo de gestão, numa situação crítica de transição” e que a Assembleia não será chamada para votação, “ainda que possa ser convocada pela Comissão Permanente”.

Caso seja chamado como testemunha, em que moldes pode falar em tribunal?

Se do inquérito que está agora a ser investigado pelo DIAP de Lisboa resultar uma acusação, e se for necessário chamar Marcelo Rebelo de Sousa a depor, esta comunicação tem de ser feita pelo juiz ao Ministério da Justiça, “que a transmite, por intermédio da Presidência do Conselho de Ministros, à Presidência da República”, refere o artigo 504 do Código de Processo Civil, que incide sobre a “inquirição do Presidente da República”.

Neste caso, os deputados não têm de aprovar a iniciativa para que o Chefe de Estado fale como testemunha, mas, “se preferir”, o Presidente da República pode optar por prestar depoimento por escrito sobre “o que souber sobre os factos” em investigação. Depois, o tribunal, o Ministério Público ou os advogados podem colocar, também por escrito “e por uma só vez”, questões ao Chefe de Estado.

A alternativa à resposta escrita é o depoimento presencial, caso em que cabe à secretaria-geral da Presidência a indicar o “dia, hora e local em que deve ser prestado o depoimento”. E o interrogatório é feito pelo juiz: “As partes podem assistir à inquirição com os seus advogados, mas não podem fazer perguntas ou instâncias, devendo dirigir-se ao juiz quando julguem necessário algum esclarecimento ou aditamento.”

E pode recusar-se a testemunhar?

Sim. Voltando ao artigo 504, o número 2 refere precisamente que, se o Presidente da República “declarar que não tem conhecimento dos factos sobre que foi pedido o seu depoimento, este não tem lugar“.

Quando falou sobre este assunto? Marcelo confirmou o seu envolvimento neste caso?

Logo no início do mês, no dia 4 de novembro, o Presidente da República foi questionado pelos jornalistas a propósito deste caso e foi bastante claro: “Se tivesse feito, tinha dito que fiz”. “Não intervim”, garantiu. Marcelo disse ainda que “é a honra do Presidente da República” que está em causa, negando várias vezes qualquer tipo de favorecimento neste caso.

“O que está em causa é se o Presidente da República interferiu ou não interferiu. Pediu uma cunha para que sucedesse uma solução favorável a uma pretensão de duas crianças doentes? Disse que não tinha feito isso“, esclareceu o Chefe de Estado, acrescentando ainda que “não pode estar sujeito à suspeição de que pode interferir em decisões de cadeia administrativa ordenando, pedindo, metendo cunha a ninguém”.

Então, como surgiram as dúvidas relacionadas com Marcelo?

Também à TVI, o coordenador da unidade de neuropediatria do Hospital de Santa Maria, António Levy Gomes, divulgou um email em que o próprio Marcelo refere o seguinte: “No meio de milhentos pedidos e solicitações, falou-me o meu filho Nuno num caso específico de luso-brasileiras no Brasil.” E admitiu ainda que “apurou junto do chefe da Casa Civil que chegou um pedido e que, como se entendeu que o mesmo era particularmente relevante, mas complexo”, foram enviadas duas cartas — uma para o chefe de gabinete do primeiro-ministro, que na altura era Vítor Escária, constituído arguido no âmbito da Operação Influencer, e outra carta para o gabinete do secretário de Estado das Comunidades Portuguesas.

As dúvidas surgem aqui, entre emails que terão sido trocados entre os dois. Mas, ao Público, o Presidente da República explicou que estava apenas a responder ao email enviado por Levy Gomes e que estava apenas a ser “bem-educado”.

Porque é que o coordenador da unidade de neuropediatria do Hospital de Santa Maria enviou o email?

António Levy Gomes estaria incomodado com o facto de duas crianças de nacionalidade brasileira se deslocarem a Portugal apenas para receber o tratamento, num hospital público, sendo que estariam a ser seguidas no Brasil.

Mas há mais uma questão: a nacionalidade. O que se passou?

O pedido de nacionalidade portuguesa para as gémeas foi aprovado em apenas 14 dias, tal como avançou o Observador esta semana. O Ministério da Justiça explicou que os processos “têm tratamento prioritário” quando são referentes a menores e que os prazos deste caso específico não são diferentes dos restantes, mas os advogados que tratam deste tipo de processos garantem que nunca tiveram casos tão céleres.

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Artigo atualizado a 5 de dezembro de 2023 com informações sobre a conferência de imprensa que Marcelo Rebelo de Sousa convocou na véspera para falar sobre os dados recolhidos na Presidência da República acerca da intervenção de Belém no processo.