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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Gonçalo Byrne: “Imagem de luxo apagou a função primordial do arquiteto”

Aos 79 anos, é o novo presidente da Ordem dos Arquitetos. Em entrevista, fala do turismo em Lisboa, de arquitetos-estrela e de edifícios polémicos. Sobre a pandemia, diz: "O confinamento traumatiza.”

Para um arquiteto que não gosta muito de eleger os seus melhores projetos — são mais de cinco décadas de prática e a tarefa nunca seria fácil —, os próximos desafios são sempre os preferidos. E há pelo menos dois neste momento: a Cidade da Música, em Genebra, com construção prevista para 2021, e a presidência da Ordem dos Arquitetos, com tomada de posse marcada para quinta-feira, 16. O novo cargo, para o qual foi eleito por três anos, dá o mote à entrevista.

Bom conversador e com uma cordialidade à antiga, Gonçalo Byrne rapidamente transformou a ocasião numa aula sobre teoria e prática da arquitetura, o que diz bem da intensidade com que vive a profissão. Defendeu uma ideia que lhe é cara — a arquitetura como arte de intervenção ao serviço da cidade. Falou de urbanismo, identificou o Parque das Nações com uma das melhores zonas para se viver  na capital e dissertou acerca dos preços altos das casas e dos efeitos psicológicos da pandemia da covid-19.

Explicou ainda algumas das suas obras polémicas e marcantes, como o condomínio Estoril-Sol, a Torre de Controlo do Tráfego Marítimo de Lisboa e o bairro social conhecido como Pantera Cor-de-Rosa, em Chelas (Lisboa). No fim indicou que a Ordem dos Arquitetos precisa de uma transição: de um certo apagamento para a fase do diálogo e da comunicação.

Gonçalo Byrne vive entre Lisboa e São Pedro de Moel. Filho de um engenheiro de minas e neto de um juiz, com antepassados na Irlanda, nasceu em Alcobaça a 17 de janeiro de 1941 e terminou o curso em 1968 na Faculdade de Belas-Artes. Ainda estudante começou a colaborar com dois nomes fundamentais da arquitetura portuguesa, Nuno Teotónio Pereira e Nuno Portas. O atelier que estabeleceu em 1991 tornou-se uma referência e isso valeu-lhe vitórias em inúmeros concursos públicos, incluindo para renovação ou construção de instituições de ensino um pouco por todo o país. A crise económica e financeira de 2008 abalou as estruturas e e as ondas de choque ainda se sentem. Esta semana, o arquiteto abriu-nos as portas desse local de trabalho, situado na Rua da Escola Politécnica, em Lisboa, num edifício pombalino a que vai fazer referência durante a entrevista.

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Cidade da Música, em Genebra (Suíça), foi projetada por Gonçalo Byrne e Pierre-Alain Dupraz

DR

As outras ordens profissionais têm bastonário e esta tem um presidente.
É a única. Tenha ideia de que os arquitetos, quando da fundação da Ordem [1998], terão pensado no bastão como uma coisa do século XIX, que hoje não faz muito sentido, é um pouco clerical, para certas cerimónias. Não temos nem bastão nem traje próprio para o presidente da Ordem.

Ou seja, é uma classe que rejeita certas formalidades.
É, é. A arquitetura e os arquitetos representam uma forma de conhecimento e uma profissão muito particular. O curso de arquitetura tem um perfil generalista e completamente transdisciplinar. A formação abrange estética, teoria do conhecimento, filosofia, antropologia, sociologia, história, mais as técnicas, tecnologias, os materiais de construção, as questões da sustentabilidade, etc.

É isso que explica a informalidade?
Sim, porque no fundo o exercício da profissão faz-se num ambiente de diálogo que se tem alimentado de informalismo. Informalismo social. Depois o mundo do arquiteto é o mundo da forma construída, do edifício, do espaço. Tudo isto converge numa coisa chamada projeto, que é um processo de escolhas, de caminhos, a partir de um programa, de um sítio em que esse projeto se vai inserir. Temos de trabalhar com um sistema contínuo de vai e vem, que recorre a muitos áreas de conhecimento para se concentrar na síntese. O projeto implica ir eliminando hipóteses para criarmos um objeto, um edifício, um espaço qualificado. Se nos ficássemos pelas especialidades, nunca conseguiríamos fazer a síntese. O projeto representa uma visão holística ou globalizante. Passar do projeto à obra é uma coisa de grande responsabilidade, porque uma vez construída a obra fica normalmente por um tempo muito mais longo do que a vida do próprio arquiteto. Isto quer dizer que ela vai interagir com uma sociedade, com um dono, com os cidadãos, o público… A arquitetura inscreve-se no território da cidade, através do artifício, e vai-se medir com as preexistências, com séculos de história ou com a natureza.

Diz “artifício” porque os projetos nascem da mente do arquiteto?
É uma construção mental plasmada em desenho. Costumo dizer que o projeto de um edifício é um caminho de escolhas. A centralidade das decisões do projeto tem de estar de facto na arquitetura e no arquiteto. É ele que tem de fazer as escolhas a partir dos inputs que recebe, sejam as questões da sustentabilidade sejam, até, as questões que agora apareceram por causa da vivência traumática da covid-19. As pessoas foram obrigadas a estar em casa, vivem em casas em que já viviam há muitos anos, mas o facto de estarem confinadas provocou reações psíquicas que as levaram a descobrir imensas coisas boas e más da própria casa onde vivem.

As pessoas mais pobres e as classes médias terão sido das mais penalizadas, porque vivem em casas pequenas, exíguas.
Há quem não tenha opção, as pessoas vivem em casas pequenas porque não têm dinheiro para casas maiores. Porque é que os arquitetos estudam sociologia e depois trabalham com os sociólogos? A sociologia desenvolve estudos desde há muito tempo sobre os parâmetros mínimos. Há um famoso indicador, é uma coisa dos anos 60, que diz que a habitação mínima deve ter pelo menos 14 metros quadrados por habitante, grosso modo. Se moram três pessoas na casa, a área mínima é de 42 metros quadrados. Mesmo assim, é muito pouco. Considera-se que abaixo deste limiar as condições são deficitárias para uma vida com alguma qualidade.

Porque é que as casas são tão pequenas e caras?
Isso não tem só a ver com a arquitetura. Diria até que não tem sobretudo a ver com a arquitetura. Os arquitetos não fazem nada se não tiverem um cliente, um encomendador. A não ser que seja a sua própria casa. Tive de chegar aos 70 e tal anos para conseguir pela primeira vez fazer um projeto para uma casa minha. Era uma casa da minha família, agora é minha, em São Pedro de Moel. Como tenho o luxo de ter uma segunda casa e como, apesar de o atelier estar ativo, toda a gente está em casa a fazer teletrabalho, passo a maior parte do tempo em São Pedro de Moel, muitas vezes à frente de um ecrã a trabalhar. Depois foi a campanha para as eleições na Ordem, tive de fazer reuniões atrás de reuniões através do Zoom. Se calhar, vamos ter de continuar, também na Ordem, a trabalhar com teleconferência. A covid veio pôr em evidência um método de trabalho que já era óbvio. Temos projetos em Itália e na Suíça, eu viajava muitas vezes porque toda a gente queria a presença física nas reuniões. Chega-se hoje à conclusão de que muitas das viagens eram desnecessárias. Hoje até fazemos acompanhamento de obras à distância. Quem está na obra, a fiscalização e o construtor, mete uma câmara no capacete e mostra as coisas. Quando é muito importante, vamos pessoalmente, claro.

"Aprendi a usar computadores durante a pandemia, finalmente. Era para mim uma vergonha, não tenho orgulho nenhum em dizer isto, mas também é muito importante continuar a desenhar no papel."

Às vezes durante uma viagem que parece inútil descobrimos coisas ou conhecemos pessoas inesperadas que mais tarde vêm a ter um papel qualquer.
Claro, a proximidade e o ver com os nossos olhos é fundamental. A pandemia mostrou a potencialidade de uma tecnologia que já existia. A questão informática pode ser útil… Não sei se sabe, o Tratado de Paris, que Portugal assinou, tem metas extremamente ambiciosas de descarbonização e ecologia, o que vai ter imensas consequências sobre a construção, por exemplo, e daí que esse vá ser um dos pontos de intervenção da Ordem dos Arquitetos — porque será preciso reciclar conhecimentos, vamos ter de criar cursos de atualização para os arquitetos, com auxílio de universidades. A possibilidade da comunicação à distância pode evitar imensa carga de dióxido de carbono provocada pelos voos aéreos. Muitos voos continuarão a existir e não tenho a mais pequena dúvida de que o turismo vai voltar, é uma indústria fundamental para o nosso país. Não vai morrer a necessidade da proximidade e do afeto. É curioso: as tecnologias da comunicação, que estão a evoluir, apenas fazem circular informação, o que circula é data, não circulam pessoas. Quando for inventado o teletransporte, aí teremos de repensar tudo. Tem-se dito que esta crise tem duas dimensões muito fortes: a sanitária, que é a primeira, gravíssima, que está a obrigar ao confinamento e que resulta da hipermobilidade do mundo, o que agrava o contágio; e a dimensão económico-financeira, que já está a ser brutal e que se vai agravar. Acho que só vamos sair daqui através de um processo gradual que põe em tensão a produção, a economia, os políticos e as preocupações sanitárias. Mas além daquelas duas dimensões, há uma terceira, com impactos brutais. É a crise psíquica, a crise da experiência, a crise do trauma do confinamento. Tenho netos adolescentes que passam o dia no computador e eu dizia que eles estavam a viver a crise na maior, porque para eles a proximidade já passava pelo ecrã. É mentira. Percebeu-se que sobretudo para os adolescentes o contacto e a proximidade com outras pessoas da mesma idade é fundamental. Sinto que são das gerações mais afetadas por esta crise.

Podemos saber se também está a viver individualmente os traumas da pandemia?
Diria que algum trauma existe, mas no meu caso isso passa mais por gerir umas limitações. Sabe, com a minha idade, há uma coisa que me tem sabido bem, que é uma certa tranquilidade. As gerações mais novas têm vindo a viver cada vez mais no tempo instantâneo, estão a perder a noção do tempo médio e do tempo longo. Sou de uma geração que preza muito o tempo médio e o tempo longo e a arquitetura é uma profissão e uma forma de conhecimento que também trabalha no tempo médio da obra e no tempo longo da história. Claro, há o tempo curto, porque as opções de um projeto têm de obedecer a prazos limitados.

"Há nichos que querem um edifício com capacidade de épater le bourgeois. Querem um edifício para surpreender, não vou dizer o papalvo, mas surpreender de uma maneira geral."

Trabalha bem com o computador?
Continuo a usar o lápis e a caneta. Olhe, aprendi a usar computadores durante a pandemia, finalmente. Toda a gente que aqui trabalha tem à frente ecrãs e computadores e eu não conseguia abrir um computador. Agora já consigo. Era para mim uma vergonha, não tenho orgulho nenhum em dizer isto, mas também é muito importante continuar a desenhar no papel. É muito diferente a relação com o ecrã e a relação entre a mão e o cérebro que decide. O tátil é muito importante.

Disse que não é responsabilidade dos arquitetos termos casas tão caras. De quem é?
Os arquitetos trabalham se tiverem clientes e os clientes têm de definir os aspetos económicos do trabalho, um dos quais é o orçamento. O arquiteto deve trabalhar dentro do orçamento. Mas também hoje há clientes no chamado mercado de luxo que pedem uma moradia num sítio magnífico com uma vista tremenda e dizem: “Quero uma obra de arte sua.” O mercado tem nichos e aqui surge um problema que é o dos arquitetos que se transformam em estrelas. Normalmente, devo dizer, são arquitetos de grande qualidade. Hoje usa-se um termo, que é uma invenção do mercado: edifício icónico. É um disparate total.

Porquê?
O que querem dizer é edifício auto-referente, o que é diferente. Há nichos que querem um edifício com capacidade de épater le bourgeois. Querem um edifício para surpreender, não vou dizer o papalvo, mas surpreender de uma maneira geral. Por detrás desse edifício pode estar uma grande empresa global que quer uma sede para dar nas vistas ou um presidente de Câmara que quer construir uma Gare do Oriente — neste caso, não foi um presidente da Câmara, foi a Parque Expo — e que escolhe um arquiteto, Santiago Calatrava, que é disputado por todos. No fundo, são monumentos ao autarca ou ao próprio arquiteto. A espetacularidade de um edifício não faz dele um ícone da arquitetura, porque um ícone precisa de tempo para ser reconhecido como tal, de uma forma partilhada pela sociedade. Um exemplo é a Torre Eiffel, em Paris. Quando começou a ser construída, desencadeou um movimento de rejeição total encabeçado por intelectuais que diziam que era um atentado à cidade. A organização da Exposição Universal de Paris [1889] veio dizer que se tratava de uma construção efémera, que seria destruída a seguir à exposição. Com este engodo, acalmou as hostes e a Torre Eiffel não só ficou como provocou uma lenta mudança de opiniões. A cidade de Paris já não vivia sem a torre. Hoje é um ícone, mas precisou de tempo e de um reconhecimento partilhado. Muitos edifícios de há 20 ou 30 anos, autoproclamados pelos arquitetos, pelos políticos ou pelos críticos como ícones, hoje estão esquecidos, foram devorados pela produção imagética da própria sociedade. Os edifícios ainda sem reconhecimento partilhado são auto-referentes. Se me vierem encomendar um edifício auto-referente, provavelmente tenho de o fazer, mas terei de perceber como e para quê.

Concluído em 2010, o Estoril-Sol Residence tornou-se à época um dos condomínios mais caros do país com apartamentos até três milhões de euros

LUSA

A Torre de Controlo do Tráfego Marítimo já é icónica?
Poderá vir a ser se a sociedade lisboeta, ao longo do tempo, vier a dar-lhe esse estatuto, mas não estou preocupado com isso. É uma obra auto-referente, completamente. Quando apresentei o projeto, falei da Praça do Comércio [Terreiro do Paço], que integra a place royale, uma tipologia típica do Iluminismo, período em que há maior concentração de poder nos reis absolutos. Em Portugal, tivemos o D. José, mas de facto o absolutista era o Marquês de Pombal. Ora, a Praça do Comércio tem que ter um vazio de distância e respeito ao rei que está ao centro. Quando se utilizava a praça como estacionamento [até à década de 1990] estava-se a destruir esse conceito. Hoje os cafés ocupam as bordas da praça, de vez em quando há espetáculos, mas são efémeros. Esta praça vive da relação entre o vazio e o monumento a D. José.

A Torre de Controlo é como a estátua de D. José?
A torre faz o controlo de todo o movimento marítimo desde o Porto de Caminha até Vila Real de Santo António. Em boa verdade, o controlo não precisava de ser feito na torre, porque as pessoas estão a olhar para ecrãs. Lembro-me de ter perguntado, na altura do concurso: “Porque é que vocês querem uma torre? Podiam estar numa cave, é tudo controlado por computadores e ecrãs.” A resposta foi: “Tem toda a razão, mas, sabe, somos marinheiros e gostamos de ver os barcos.” Claro que num dia de nevoeiro não há binóculos que valham. O meu raciocínio foi: quando a torre estiver construída vai estar um pouco como o D. José, rodeada de um vazio enorme. Está entre a água e a margem, a cidade e a água. Todo aquele estuário do Tejo, que vai até ao Bugio, é o grande canal história, dos romanos aos fenícios, que fez a cidade de Lisboa e deu lastro à mitologia portuguesa da viagem. É inclinada, porque se fosse vertical estaria completamente estática, e inclinada tem um sentido de movimento.

O condomínio Estoril-Sol é auto-referente?
É uma arquitetura de escala grande, mas com expressão de alguma forma escultórica. Uma escultura, por definição, não é habitável mas a arquitetura é. Tirei o curso de arquitetura na Escola Superior de Belas-Artes, onde havia cursos de escultura e pintura. A arquitetura é uma arte, era uma das três belas-artes. Hoje, as belas-artes são muito mais do que três. O visual, o tátil, o sonoro, o térmico, tudo isto são elementos sensoriais e entram na definição da própria forma dos edifícios, quer no aspeto interior quer na vivência interior. O espaço habitável é um espaço fortemente sensorial. Por isso, a experiência do confinamento traumatiza. O confinamento exacerba a perceção sensorial, para o bem e para o mal. Isto é outro facto importante da arquitetura. A arquitetura tem uma relação importantíssima com a música. Do ponto de vista sensorial, há quem diga que a arquitetura é a música cristalizada, transformada em forma fixa.

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Concorda?
Sim, porque se eu olhar uma fachada… Olhe, este edifício aqui ao lado. Estamos no torreão de um edifício que foi a Real Fábrica da Seda. É pombalino, foi feito por um dos três arquitetos, que eram engenheiros militares, da Lisboa pombalina, o Carlos Mardel, um austro-húngaro. A composição desta fachada faz-nos perceber que há repetições, frequências, silêncios, ruídos, dois torreões nas pontas e um corpo central com um frontão. Os estilos históricos são determinados pelos historiadores. O historiador só trabalha no passado, é esse o seu objeto de estudo, e quando olha para trás percebe que há um determinado ciclo. Os ciclos eram muito longos na Idade Média, menos longos no Renascimento, logo a seguir aparece o barroco, há o maneirismo entre os dois. Depois vem o neoclássico, depois o moderno e agora cada vez os períodos vão sendo mais curtos. O pós-moderno como linguagem e presença de arquitetura teve um período muito curto. Hoje há reflexos do pós-modernismo mas não há o pós-modernismo intenso como em Portugal aconteceu com as Torres das Amoreiras. A arquitetura do Tomás Taveira vai ficar na história, não tenho dúvidas, ele teve um período intensíssimo e gerou discípulos. Isto quer dizer, para voltar atrás, que a arquitetura é também um produto cultural. A cultura não é, ao contrário do que muitos pensam, só o que vem do passado, a cultura é dinâmica. O que provoca a transformação não é a cidade histórica, curiosamente, porque essa é já um depósito da cultura, ligado a questões de memória e identidade. Ao lado da cidade histórica temos as pessoas, a cidade viva do cidadão, do eleito, do tirano. Sempre existiu ao longo da história esta relação entre a cidade-memória e a cidade viva. Se por acaso fosse possível, e é, congelar a cidade física no tempo, ela torna-se completamente desabitada e acaba em ruínas. Há cidades abandonadas, como Conímbriga, porque a certa altura a população desapareceu. Virou um campo arqueológico ao fim de poucos séculos. Se não se adaptar nem se transformar nada, os hábitos de vida abandonam as cidades. O abandono é dos grandes motores da vulnerabilidade urbana, talvez o pior, e na cidade contemporânea isso está em todo o lado. Veja-se a Baixa de Lisboa: foi preciso chegar o turismo para ele ser levada em força, com os problemas que isso também trouxe, porque passou a ser quase exclusivamente para Airbnb. Mas a verdade é que a economia do turismo permitiu reabilitar uma parte da cidade que estava vazia e a cair na ruína. A Baixa não tinha centralidade. O que é a centralidade? É ter a mistura de funções, pelo menos três: habitação, trabalho, lazer. Hoje, na minha opinião, a centralidade mais viva de Lisboa é a Parque Expo, do ponto de vista da vitalidade.

Porque tem as três funções de que fala?
E uma quarta: a maior plataforma intermodal de mobilidade de todo o território português, que é a Gare do Oriente. A Gare do Oriente tem os comboios das periferias de Lisboa, os comboios intercidades e um pindérico internacional que demora dez horas a chegar a Madrid, mas tem. Está previsto que integre a rede de alta velocidade e quando isso acontecer a potencialidade da intermodalidade dispara. Depois tem o metro colado, os autocarros suburbanos e aqueles que vão para Braga, para o Porto, para Paris, etc. E depois tem os aviões, o aeroporto fica a cinco minutos de metro. Se a Refer tivesse dinâmica para isso, incluindo financeira, já teria feito na Gare do Oriente o que na Suíça é banal em muitas estações: apresento o bilhete do voo, faço ali o check-in e despacho a bagagem para o voo que vou fazer a seguir. Além disso, durante a Expo ’98, aquela zona teve a interface do transporte fluvial. Há um plano para recuperar isso, o cais ainda lá está, abandonado. Finalmente, a rede de autoestradas passa toda por ali, o nó da ponte, com a autoestrada do norte e a passagem ao sul. Ora, quando há uma plataforma destas em Lisboa, temos o maior catalisador do empreendedorismo. Os empreendedores privados dizem-nos hoje que a primeira escolha para fazerem negócio imobiliário… Claro, se for um empreendimento de luxo, é a qualidade da construção que conta, mas há outra coisa: mobilidade, mobilidade, mobilidade. Isto fez disparar o valor imobiliário dos terrenos. E agora voltamos àquela sua pergunta: porque é que as rendas sobem e porque é que as casas são caras? É um fenómeno imobiliário, não é culpa dos arquitetos, é o mercado a funcionar.

Acha que o Parque das Nações é a melhor zona de Lisboa para se viver?
Não estou a dizer isso, embora também ache que é uma boa zona para se viver. Com um pequeno problema: a parte residencial do Parque das Nações ainda tem pouco transporte público e depende muito do automóvel. Agora, quem vive perto da Gare do Oriente está muito melhor em termos de transportes do que quem vive na Lapa. Felizmente, a Lapa vai ter uma estação de metro lá perto, se esse projeto avançar. Aparentemente, no Parque das Nações, vamos ter uma linha de elétrico rápido, uma espécie de metro de superfície que vai servir toda a linha de costa, está até a ser colocada a hipótese de ele ir até Sacavém.

A polémica que rodeia algumas obras de arquitetura é resultado da interpretação ou é intencional?
Quando trabalhamos em projetos, a polémica não é um objetivo. Há uma história enorme das arquiteturas polémicas neste país. O Diário Popular, um famoso vespertino que desapareceu, fez a certa altura uma série de artigos com o título “Mamarrachos de Lisboa”. Todas as semanas, saía um. Praticamente, 90% do que eles apontavam como mamarrachos eram os melhores edifícios de arquitetura contemporânea Lisboa. Um deles é aquele que ficou conhecido como O Franjinhas [1969; Rua Braancamp], que até recebeu um Prémio Valmor.

Como é que explica isso?
O tempo assimila. O fator tempo conta muito. Muitas vezes os edifícios provocam um desequilíbrio na sensação comum que se tem do espaço e muitas vezes os arquitetos trabalham com outros dados.

O que é que incomodava as pessoas no seu Estoril-Sol?
Primeiro, é um condomínio fechado. Depois, a dimensão do edifício. Terceira coisa — isto é a minha interpretação, se calhar há ainda mais queixas —, a forma do edifício, que perturba. Por alturas da inauguração da Torre de Controlo, houve reações estranhas na imprensa. Lembro-me de que o Correio da Manhã escreveu “Lisboa já tem a sua Torre de Pisa”. Percebo, mas não é verdade, porque a Torre de Pisa era direita e só se inclinou por problemas nas fundações. Houve qualquer coisa que as pessoas estranharam. No Estoril, essa estranheza foi ainda mais forte. Fernando Pessoa, como publicitário, escreveu: “Primeiro estranha-se, depois entranha-se.”

Foi o que aconteceu com o Estoril-Sol?
Não quero garantir que sim, mas muitas obras polémicas ao longo da história tiveram processos lentos de assimilação. Aceitei com a condição de apresentar duas ou três opções. A ideia que lá está não é aquela de que eu gostava mais, que teria sido uma torre de 160 metros de altura.

Ainda mais marcante?
Sim, mas com a planta mínima, com menor impacto na relação entre o parque municipal atrás e o mar em frente.

Ou seja, a obra é sempre solução possível e não a mais adequada.
A arquitetura é a gestão do possível. Quando olhamos para um Miguel Ângelo, podemos pensar que ele fazia o que queria. É mentira. Ele estava profundamente limitado, desde logo pela cânones, depois pela vontade do cliente. Na arquitetura tentamos sempre o melhor possível, dentro de certas condicionantes, é esse o desafio. Ali, apresentei as três maquetes. O presidente da Câmara, na altura era António Capucho, olhou e disse que a escolha dele seria a torre. “A minha também”, disse eu. E diz ele: “Mas se eu autorizasse a torre, cortavam-me o pescoço no dia seguinte.” Se calhar cortavam o dele e cortavam o meu. Uma outra obra minha deu bastante polémica. Foi dos meus primeiros projetos, ainda em colaboração com Nuno Teotónio Pereira. Deram-lhe a alcunha Pantera Cor-de-Rosa, penso que foi o arquiteto José Manuel Fernandes que escreveu isso num artigo para A Capital ou para o República, e pegou.

No site do seu atelier é essa a designação que aparece.
Acabámos por adotar, um bocadinho contra a minha vontade. Nada proíbe que um dia um edifício mude de cor. A Praça do Comércio já mudou várias vezes de cor.

"A certa altura foi moda em Lisboa manter a fachada, remodelar o interior e acrescentar pisos em cima. Chamo a isso edifícios-mochila, um total aborto."

Gostava que a sua Pantera Cor-de-Rosa mudasse de cor?
Não tenho nada contra. Não gosto que os meus edifícios sejam alterados e deturpados, mas estou cá, se tudo correr bem, mais 10 ou 15 anos. Quem sou eu para dizer que não se pode alterar? Uma arquitetura com muita qualidade tem mais condições para perdurar, mas isso hoje não é garantido. Vejo que o culto do tempo longo é cada vez mais raro. Não sou dono de nada. Nós fazemos edifícios para os outros. A arquitetura é para ser habitada, para ser confrontada com os utilizadores. Os arquitetos andaram a encher o mundo de salas de cinema, mas quantas sobrevivem hoje? Em Lisboa sobrevive o Cinema Império porque apareceu uma igreja evangélica e o espaço se adapta ao culto deles. O Cinema São Jorge tinha uma sala fabulosa que foi retalhada em três salas, bem feitas, é certo. Mantém a dignidade, mas não é o projeto original. O cinema de grande sala teve o seu período de vida. Pode-se congelar o edifício no tempo, mas não se pode obrigar a que exista cinema lá dentro se ele não for rentável. Estamos a falar de reabilitação. Reabilitar um edifício muitas vezes significa mudar-lhe o uso.

Mantém-se a fachada do edifício e altera-se o interior. Faz mais sentido isso ou simplesmente demolir e fazer uma obra nova?
Há casos e casos. Toda a Baixa de Lisboa, por exemplo, está hoje classificada como Monumento Nacional, portanto, qualquer obra ali tem de passar pela tutela e faz todo o sentido. Reabilitações em que se mantém apenas a fachada não são hoje permitidas na Baixa. Depois há sítios em que estou de acordo consigo. A certa altura foi moda em Lisboa manter a fachada, remodelar o interior e acrescentar pisos em cima. Chamo a isso edifícios-mochila, um total aborto, não faz sentido nenhum. Nesses casos, é preferível ter a coragem de dizer que é para deitar abaixo e fazer um edifício bem feito, integrado, a dialogar com os outros, com uma linguagem contemporânea.

Dos seus projetos qual é aquele de que mais gosta?
Tenho uma resposta standard: o meu projeto preferido é o próximo. Não consigo dizer um, consigo dizer uma dúzia ou duas dúzias.

Depois de mais de 50 anos de trabalho foi eleito presidente da Ordem dos Arquitetos e toma posse a 16 de julho

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Vamos voltar ao início e à Ordem dos Arquitetos. Ao assumir este cargo vai ter menos tempo para ser arquiteto?
Vou ter que gerir o meu tempo. A minha vida toda é ser arquiteto de projeto e de obra, até privilegio mais a obra do que o projeto, embora uma obra boa tenha de ter um bom projeto. Devo dizer que o meu atelier sobreviveu à crise de 2008 com dificuldade. Ainda hoje estamos com algum passivo, mas continuamos ativos, com trabalhos no estrangeiro, foi isso que nos permitiu sobreviver, sobretudo Itália, Suíça, Áustria, Bélgica. O trabalho de atelier é muito exigente, obriga à presença. A certa altura, o trabalho no atelier desceu muito e comecei a trabalhar com ateliers de ex-colaboradores meus, com quem tinha grande empatia. Sempre gostei muito de delegar trabalho. Costumo dizer que mais de metade dos meus projetos são em coautoria. Não sou cioso do projeto, tem é de ser o melhor e tudo o que contribuir para a melhoria do projeto é bem-vindo.

Ou seja, ser presidente da Ordem não irá atrapalhar.
Acredito que consiga gerir. Prezo muito a sobrevivência e o acompanhamento do atelier. Tenho uma equipa extraordinária e hipermotivada. A faixa etária mais representada na Ordem está entre 25 e 45 anos e a minha equipa está neste setor.

Diz-se que a Ordem tem perdido intervenção e voz no espaço público.
Não é só a Ordem, é também a arquitetura.

As condições de trabalho dos arquitetos têm-se degradado bastante.
Muito, muito. Um dos nosso objetivos é tentar inverter esta erosão da presença da arquitetura, particularmente gravosa nos últimos anos, o que tem muito a ver com a crise de 2008 e tudo o que ela gerou. Por exemplo, em termos de contratação de serviços de projeto pelo Estado, o que também afeta as engenharias e outras profissões. Teve um efeito muito negativo no próprio encomendador privado. Se o Estado privilegia uma adjudicação ao custo mais baixo, como se estivesse a comprar batatas, há muitos pequenos ateliers, sobretudo de gente nova, a trabalhar em dumping, claramente abaixo dos custos de produção, o que está a produzir fenómenos de precariedade inacreditáveis e está na origem da diáspora que veio com a crise. Essa diáspora não regressa a Portugal, está bem lá fora. E depois há outros que não podem exercer. Encontrei um que era vendedor numa casa de sapatos. As mais-valias que a arquitetura cria são absorvidas pelos promotores, mas não podem sê-lo a ponto de esmagar a profissão. O promotor tem direito ao usufruto das mais-valias, mas não em detrimento das condições de trabalho do arquiteto.

As ordens profissionais são organismos para auto-regulação e muitas vezes atuam como grupo de pressão. Qual será a sua tendência?
Vamos ter uma estratégia de “e”, não de “ou”. Não é isto ou aquilo, é isto e aquilo. A nossa estratégia é abrir portas, criar canais de diálogo com quem for útil, governantes e políticos democraticamente eleitos, as várias tutelas, os promotores, as outras ordens profissionais. E há outra coisa: é preciso criar canais de diálogo com a própria sociedade. Há iniciativas que vêm de mandatos anteriores e que vamos acentuar, é preciso reforçar a comunicação, fazer um gabinete de comunicação que possa estabelecer maior transparência sobre o que é o trabalho do arquiteto e a utilidade social do arquiteto.

Isso está mal entendido?
Acho que sim. A imagem do arquiteto elitista e de luxo apagou muito a função primordial do arquiteto, que é a habitação social, coletiva, o espaço público, o que é partilhado pela sociedade. O arquiteto trabalha com toda a gente e tem de estar próximo.

É mau sinal apenas 27% dos arquitetos terem participado nas eleições para a Ordem?
É um sinal negativo. A Ordem tem que se afirmar. Um dos desígnios das ordens profissionais é o de zelarem perante o Estado pela qualidade dos serviços que os seus membros prestam e pelas condições de trabalho. É uma obrigação. Como digo, a arquitetura é uma arte, mas é uma arte social, tem implicações com a sociedade, com a cidade, com os utilizadores. Não é uma pintura, uma escultura, um poema. É uma arte útil, para habitar, com uma componente de tecnologia muito forte.

O mandato é de três anos. E depois?
Sabe-se lá. Se me pergunta se em três anos a nossa equipa vai conseguir fazer tudo, sinceramente que não temos essa ilusão. Três anos é pouco. Nunca prometi mais do que uma dinâmica e uma dedicação o melhor que soubermos, para criar vetores de direção e abrir portas para tentar recolocar a centralidade da arquitetura na construção e reabilitação da cidade e do território. Cada vez mais estamos a falar na Europa de adaptação e reabilitação e menos de construção nova. As cidades não têm crescimento demográfico, não há necessidade de expandir, a não ser nas infraestruturas e na mobilidade. Cada vez mais a demolição vai ser penalizada apelos Acordos de Paris, aposta-se agora num aumento do ciclo de vida dos edifícios.

Um segundo mandato será necessário?
Não faço ideia. Os homens passam, o importante é o lastro que fica.

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