Pode parecer uma ironia histórica, mas tudo indica que será o PCP a salvar o PS a 25 de novembro. É nesse dia — com carga simbólica na relação entre os dois partidos — que o Orçamento do Estado para 2022, entregue já esta segunda-feira, terá a sua votação final global. Antes disso há um primeiro round, a votação na generalidade, já a 27 de outubro. No atual contexto político há assim um cenário mais provável que todos os outros: que PCP, o seu irmão mais novo PEV e o PAN viabilizem mais um orçamento do Governo PS, numa conta que ainda deverá ser reforçada com as deputadas não-inscritas. A juntar a isto, o Bloco de Esquerda está sentado à mesa de negociações, mas a querer sair da sala. A direita não foi sequer convidada a entrar. Nem queria.

Além das probabilidades, a matemática parlamentar oferece muitas variáveis. Há cenários com um elevado grau de probabilidade outros que são praticamente impossíveis de se concretizarem neste momento. O primeiro-ministro, que tem esta geometria variável na cabeça, está confiante da aprovação do Orçamento. E o nível de confiança foi mesmo ao ponto de dizer que “tem a certeza” que o PCP não vai falhar enquanto debatia com Jerónimo de Sousa (que não o contrariou). António Costa trabalha mais para o primeiro cenário abaixo apresentado, mas todos os outros são (pelo menos, matematicamente) possíveis. Mesmo o mais improvável dos cenários (ser o PSD a viabilizar) já aconteceu várias vezes no passado.

Após o momento da entrega, esta segunda-feira, dia 11, o Governo ainda tem mais 16 dias para negociar apoios. Sendo certo que não pode alterar o documento neste período, pode sempre assumir compromissos para a fase da especialidade que ajudem a conquistar o apoio dos outros partidos até ao momento da votação. Eis os vários cenários possíveis.

PS a favor, BE contra e abstenção de PCP, PEV e PAN: OE aprovado

Na véspera da entrega do Orçamento do Estado para 2022 o cenário que garantiu a aprovação há um ano continua a ser o mais provável: um dos principais parceiros da geringonça dentro (o PCP), outro fora (o BE) A versão oficial é que as duas partes se sentam à mesma mesa, mas, nem do lado dos bloquistas, nem no lado do Governo, houve grandes esperanças que o partido liderado por Catarina Martins viesse a viabilizar o Orçamento.

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No debate bimestral, Catarina Martins aproveitou a presença do primeiro-ministro para impor várias exigências (muitas delas que transitam da lista de pedidos do Orçamento para 2021), mas António Costa foi lembrando as limitações que o país tem e até invocou a pandemia. Se no caso de mexer nas carreiras dos profissionais do SNS para os fixar, Costa lembrou à líder bloquista que teriam “oportunidade de falar” nas “próximas horas”, em outros casos — como o regresso à legislação laboral pré-troika — continua a ser evidente a indisponibilidade do Governo em ceder às exigências do Bloco. O que acontece em outras matérias como o fim do fator de sustentabilidade para quem tem 40 anos de descontos, defendido pelo BE, mas que o Governo diz ser impossível.

As reuniões que ocorreram já depois disso então não foram, até agora, como noticiou o Observador, suficientes para o Bloco de Esquerda mudar de posição. O partido está inclinado a votar contra, o que obriga o Governo a jogar com o PCP, PEVe PAN, sem descurar um eventual papel das não-inscritas, que, de certa forma, coloca pressão acrescida no partido animalista.

Costa não convenceu Catarina Martins. Bloco inclinado a votar contra Orçamento

Mesmo sem o Bloco de Esquerda, António Costa continua a conseguir a viabilização o Orçamento com a abstenção de PCP, PEV e precisa de a abstenção de mais dois deputados (o PAN tem três). Assim, com o voto favorável de 108 deputados do PS e a abstenção de 10 deputados do PCP, 2 do PEV e 3 do PAN, o OE seria aprovado.

PS e não-inscritas a favor, BE e PAN contra e abstenção de PCP, PEV: OE aprovado

Não há nada que indique que o PAN opte por votar contra o Orçamento. Mais do que isso: o último Congresso do partido posicionou o partido como sendo de oposição, mas simultaneamente definiu como estratégia que o partido continua a influenciar a governação. Isso significa que o PAN, ainda para mais com uma nova líder sem o peso de André Silva, dificilmente arriscará ficar fora do cenário de viabilização. Perderia força no debate da especialidade e, além disso, o Governo teria sempre a possibilidade de as duas deputadas não-inscritas votarem a favor e fazer passar o documento sem o apoio do PAN. Para o partido seria uma espécie de humilhação não fazer parte de uma negociação enquanto a sua dissidente Cristina Rodrigues manteria essa influência.

Apesar do Governo preferir negociar com o PAN (pela privisibilidade das negociações), no último ano tem valorizado o diálogo permanente com as deputadas não inscritas. Isto é, precisamente, porque é uma opção real. Caso o Bloco de Esquerda vote contra e o PAN também, António Costa tinha ainda mais uma saída: negociar com as deputadas não-inscritas, Joacine Katar Moreira (que saiu do Livre) e Cristina Rodrigues (que saiu do PAN). Não bastaria a abstenção de ambas, mas se as duas votassem a favor ou, em alternativa, uma delas votasse a favor e a outra se abstivesse, qualquer uma destas fórmulas seria suficiente para o Orçamento ser aprovado em conjunto com a abstenção de PCP e PEV.

Aliás, no Orçamento para 2021, o PEV fez o Governo suar (e esperar) atirando uma decisão para dia 26 de outubro, um dia antes da votação na generalidade (a 27), mas nos dias anteriores Cristina Rodrigues e Joacine Katar Moreira descansaram o Governo: mesmo sem PEV, o orçamento passaria porque não votariam contra.

PS e um dos maiores parceiros (BE ou PCP) votam a favor: OE aprovado

Se o objetivo do país é voltar a 2019 em trajetória de crescimento, será mais difícil voltar às condições políticas de 2019. A geringonça já não funciona como antes porque deixou de ser necessário aos parceiros estarem todos no mesmo barco. Só a abstenção do PCP não chega para o orçamento ser aprovado, mas a abstenção do Bloco de Esquerda com os votos favoráveis seria suficiente (embora, mais uma vez, não seja provável). Por outro lado, bastaria ao PS — ninguém o quer, a menos que seja estritamente necessário, como foi entre entre o OE2016 e o OE2019 — convencer um dos dois maiores partidos que tem como parceiros a votar a favor do documento. Em caso de voto a favor, tanto o PCP como o BE bastariam, sozinhos com o PS, para viabilizar o Orçamento do próximo ano. Quando foi preciso foi isso que fizeram, com um cimento muito forte: evitar instabilidade e o regresso da direita ao poder.

Sub-cenário 1: PS+BE a favor: aprovado

Sub-cenário 2: PS+PCP a favor: aprovado

PS vota a favor com abstenção da esquerda: OE aprovado

Este seria o cenário mais provável quando se iniciou a atual legislatura (e o que aconteceu no primeiro orçamento pós-legislativas de 2019), mas a prática veio-se alterando. Desde 2015 os parceiros da chamada “geringonça” entenderam-se sempre que necessário — temendo a repetição do chumbo PEC IV, que conduziu Pedro Passos Coelho ao poder — para que a estabilidade governativa não fosse colocada em causa.

Nos orçamentos do Estado de 2016, 2017, 2018 e 2019 — todos da ‘era Costa’ na anterior legislatura — só o PSD sozinho tinha mais deputados do que o PS, o que tornava necessário os parceiros de esquerda votarem a favor do documento. E foi isso que fizeram: o OE de 2016 foi aprovado com os votos favoráveis de BE, PCP e PEV e nos três anos seguintes o PAN juntou-se. Com as novas combinações aritméticas que saíram das legislativas de setembro de 2019, deixou de ser necessário os partidos à esquerda do PS votarem a favor. Bastava absterem-se para o documento passar. E foi isso que aconteceu no Orçamento para 2020. No suplementar, o PCP ainda votou a contra, mas aí não queria estar no mesmo rol do PSD (que viabilizou com o BE o documento, por via da abstenção). Quando chegou a outubro, foi a vez do Bloco se colocar fora. A disputa foi tão feia — inclusivamente pública, com troca de acusações — que deixou feridas de ambos os lados. O mais provável dos cenários até fevereiro de 2020 (o Orçamento para 2020 foi aprovado com BE e PCP) é agora um cenário menos provável. Embora não totalmente impossível.

Só PS vota a favor e todos contra: OE chumbado

Não se preveem cisões nos 108 eleitos pela bancada do PS, uma vez que não há ruturas de não-inscritos nem conflitos abertos com os eleitos pelas ilhas. Os deputados socialistas estão todos comprometidos com a aprovação de um documento fundamental para o país, mas esta unidade interna não é suficiente. António Costa lidera um Governo minoritário, tendo ficado a oito votos de obter essa maior. Caso houvesse uma “coligação negativa” em que toda a esquerda e toda a direita se juntavam para votar contra o documento, o Orçamento do Estado para 2021 seria chumbado. O fantasma do PEC IV, que levou a direita ao poder, ainda assombra demasiado PCP e BE para que este cenário seja visto como provável.

PS a favor, esquerda contra e abstenção do PSD: OE aprovado

O cenário já era improvável, mas, num clima de disputa interna no PSD torna-se praticamente impossível. É certo que Rui Rio não disse ainda que vai votar contra o Orçamento porque não gosta de se pronunciar sobre documentos que não conhece. Mas é apenas por isso. Isto porque o PSD entende que o próprio primeiro-ministro se colocou de fora de qualquer entendimento ao centro quando disse em agosto de 2020 ao Expresso a seguinte frase: “No dia em que a sua subsistência depender do PSD, este Governo acabou”.

Tudo se encaminha em sentido contrário. De um lado, o PS faz tudo para que as negociações com PCP, PEV e não-inscritas corram bem; do outro, o PSD diz que está fora desta equação. Rui Rio teria muita dificuldade em justificar internamente (e até perante o eleitorado) um voto que viabilizasse um orçamento de um Governo de António Costa, algo que o PSD apenas fez por uma vez desde que é líder do partido e numa circunstância muito particular em plena pandemia: em julho de 2020 quando o PSD se absteve no Orçamento Suplementar. Os dois maiores partidos continuam a entenderem-se em questões como a escolha dos juízes para o Tribunal Constitucional ou mesmo em leis importantes (como a da reforma das Forças Armadas), mas é uma colaboração que exclui documentos estratégicas.

Em 2020, quando as negociações pareciam vacilar à esquerda, o próprio Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, fez questão de lembrar que teria de ser o PSD de Rui Rio a viabilizar o Orçamento. No entendimento do chefe de Estado — que este ano não fez a mesma sugestão por estar confiante que o PCP dá a mão ao Governo — o PSD teria de ser o último reduto da estabilidade do país. No período pré-geringonça até era normal o PSD viabilizar orçamentos em governos minoritários do PS, mesmo em momentos de grande crispação. O PSD de Manuela Ferreira Leite (OE 2010) e o PSD de Passos Coelho (OE 2011) viabilizaram orçamentos do governo de José Sócrates por via da abstenção. Neste último, o líder da oposição até chamou um negociador externo (Eduardo Catroga) a negociar com Teixeira dos Santos, então ministro das Finanças.

Os tempos são outros e, se há um ano este era um cenário provável, agora é quase impossível. Os restantes partidos à direita do hemiciclo (CDS, Chega e IL) também devem votar contra o documento. Na mesma linha, não se espera, para já, que os deputados madeirenses votem diferente da bancada do PSD, como fizeram em janeiro de 2020 e ameaçaram fazer em outubro do mesmo ano. Ainda assim, a postura de Miguel Albuquerque, presidente do Governo regional e líder do PSD/Madeira, é sempre a mesma: os deputados representam, em primeiro lugar, os madeirenses e só depois o PSD. Isso dá margem a Costa para não se ficar pela foice e, em caso de necessidade, colher em em seara alheia.