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John Cassavetes: o homem que ousou ser independente

O ciclo "O Verdadeiro Rebelde" coloca John Cassavetes de novo nas salas, no ecrã grande, para poder mudar as nossas vidas através de personagens desafiantes. Mas de onde vem este cinema arrebatador?

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Falar hoje em cinema independente tem um significado extremamente diferente do período de cerca de trinta anos em que John Cassavetes filmou. Títulos como “pai do cinema independente norte-americano” são comuns, em parte porque criou ferramentas e soluções para levar as suas ideias avante e trabalhá-las fora do sistema, sistema que não envolve só toda a produção dos filmes, mas também a sua exibição. Por outro lado – e mais importante – trouxe linguagem, temas e influências para o cinema. Tinha uma visão muito pessoal de que os filmes deveriam ser uma exploração da sua procura por um significado da vida. Não de um sentido filosófico, mas o sentido da vida das suas personagens, retratos próximos da sua existência. Daí serem tão intensos, verdadeiros.

Hoje há festivais de cinema independente. Retrospetivas, antologias. O passar do tempo foi encontrando e criando os seus heróis. Pessoas que foram influenciadas por Cassavetes também se tornaram figuras nucleares do cinema independente. Desde “Sombras” (1959), a sua primeira obra, que muito mudou. As lutas de Cassavetes desde finais da década de 1950 existiam com um desejo de fazer vencer as suas ideias, já que o sistema não acreditava nelas. Contudo, sabia que sem esse sistema não conseguiria fazer os seus filmes: o dinheiro que fazia como ator e como realizador de Hollywood ajudaram-no a ter independência. E depois há formas de usar essa independência. Cassavetes usou-a para contar histórias do seu presente com temas e representações que ainda hoje estão intactas, atuais e ainda são alguns dos melhores estudos comportamentais de personagens – e do que vai contra elas – que se podem encontrar no cinema. A isso não é indiferente Gena Rowlands, mulher de Cassavetes e protagonista de boa parte dos seus filmes.

Um ciclo sobre Cassavetes arranca agora a 21 de julho com o nome “O Verdadeiro Rebelde”. Um ciclo destes não é coisa que aconteça com frequência e, desta vez, espalha-se por todo o país: no Medeia Nimas (Lisboa), Teatro Campo Alegre e Cinema Trindade (Porto) e, posteriormente, no Auditório Charlot (Setúbal), TAGV (Coimbra), Theatro Circo (Braga) e no CAE (Figueira da Foz). No prato estão cinco obras restauradas: “Sombras” (1959), “Rostos” (1968), “Uma Mulher Sob Influência” (1974), “A Morte de um Apostador Chinês” (1976) e “Noite de Estreia” (1977). Qualquer um deles é uma excelente porta de entrada para o cinema de Cassavetes, os cinco são obras emblemáticas das ideias basilares do cinema do americano. Para complementar a mão cheia de filmes restaurados, o Medeia Nimas exibirá também outros filmes de John Cassavetes, todos eles também bastante recomendáveis: “Gloria”, de 1979 (28 julho – 21h30), “Maridos”, de 1970 (29 de julho – 21h30), “Love Streams – Amantes”, de 1983 (31 de julho – 19h00) e “Minnie And Moskowitz — Tempo de Amar”, de 1971 (1 de agosto – 18h).

John Cassavetes

Há formas de usar a independência. Cassavetes usou-a para contar histórias do seu presente com temas e representações que ainda hoje estão intactas, atuais

Getty Images

Onde começa e acaba a realidade

A escrita sobre gente morta ou em retrospetiva tende ao exagero. A importância sobre uma nova forma de criar com o cinema de John Cassavetes é factual e a ideia de verdade, não no sentido de filmar a verdade – impossível —, mas de mostrar a verdade das suas personagens, tem uma presença tão forte na maioria dos seus filmes que se torna impossível de a exagerar. É aquilo que realmente é. Nascido em Nova Iorque em 1929, Cassavetes faleceu em 1989 devido a problemas de fígado, causados pelo alcoolismo de décadas. Problemas esses que existem nos seus filmes e, sem ele – o álcool –, isto não seria a mesma coisa.

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A dado momento abandona a escola. Entra mais tarde na American Academy of Dramatic Arts onde se forma. É aí que conhece, uns anos mais tarde, Gena Rowlads, com quem se casa em 1954. A década de 1950 é preenchida com papeis na televisão e no cinema, grande parte deles participações menores em obras sem grande significado. O seu primeiro papel principal é em “Um Homem Tem Três Metros de Altura” (1957), de Martin Ritt, ao lado de Sidney Poitier.

John Cassavetes: um ciclo para recordar o feroz realizador americano

Avesso a ideias convencionais de interpretação – sobretudo contra a ideia do Método –, Cassavetes tenta implementar a ideia de improvisação no cinema. Vai com o sabor dos tempos, desde a escrita beat até à importância que a improvisação começa a ganhar no jazz nova iorquino. Cassavetes alia-se a amigos para desenvolver uma ideia de improvisação que possa existir e acontecer no cinema. Assim nasce o belo sonho que é “Sombras”. Originalmente filmado em 1957, nasce de uma troca de ideias com alunos em workshops que Cassavetes estava a dar sobre novas formas de interpretação no cinema e teatro. Filmou várias horas dos atores a improvisar, entre as paredes da sua casa e as ruas de Nova Iorque. A versão, finalizada em 1958, teve uma receção pouco carinhosa do público nas poucas vezes que foi mostrada e isso levou o realizador a refazer o filme em 1959. Aí a improvisação deu lugar a cenas ensaiadas, havia um argumento, e mais de metade do filme é novo. Contudo, a ensaiada liberdade parece real, ao ponto que Cassavetes mentiu durante anos a jornalistas sobre a improvisação no final da obra. “Shadows” era um exercício de realidade e mostrava a contemporaneidade como poucos filmes na altura o faziam. Venceu o prémio da crítica no Festival de Veneza no ano seguinte.

A forma como a história, as personagens, entram pelos nossos olhos adentro fazem com que os filmes pareçam estar a decorrer em tempo real. É um efeito recorrente em algumas das melhores obras de Cassavetes, “Sombras”, “Uma Mulher sob Influência”, “Noite de Estreia” ou “Maridos”. Mais do que urgência, há uma sensação de atropelo constante.

Um contrato com a Paramount no início da década de 1960 serve para mostrar o que John Cassavetes quer e não quer fazer. O dinheiro facilita a mudança – com Gena Rownloads – para Los Angeles e rapidamente tem duas experiências enquanto realizador que lhe dão razões para não querer estar dentro. “Prisioneiros da Noite” (1961) e “Uma Criança à Espera” (1963), com Burt Lancaster, estão longe de embaraçar a carreira de Cassavetes, mas além de estarem condicionados às ideias do estúdio, não refletem as ideias narrativas do realizador. Foram experiências que o fizeram afastar-se dos estúdios de Hollywood para criar os seus filmes (voltaria a eles para os últimos filmes da carreira) e, daí, o largo interregno até “Rostos”, de 1968, filmes que também dá nome à “Faces International”, a companhia de distribuição que fundou e que ainda hoje detém direitos de grande parte dos seus filmes.

Rostos

Acredite, leitor, é um subtítulo menos preguiçoso do que parece. Usar como subtítulo de um texto o título de um filme – sobretudo aquele do qual se irá falar já a seguir – parece coisa em que se pensou pouco. É exatamente o contrário. Até porque “Rostos” manifesta uma ideia de filmar. Os rostos são os protagonistas de “Rostos”, onde Cassavetes procura a sua própria versão do cinéma vérité. É um filme de conversas, que tem como catalisador a discussão de um casal e a perceção de que estão a chegar ao momento de rutura, o divórcio.

Impressiona de imediato em “Rostos” a ideia de verdade de que se falou ali em cima, a forma como a história, as personagens, entram pelos nossos olhos adentro e o filme parece estar a decorrer em tempo real. É um efeito recorrente em algumas das melhores obras de Cassavetes, desde o já mencionado “Sombras”, “Uma Mulher sob Influência”, “Noite de Estreia” ou “Maridos”. Mais do que urgência, há uma sensação de atropelo constante, em pouco mais de duas horas, a realidade é “Rostos” e essa verdade transforma-se numa experiência que nos conquista e convence do cinema de Cassavetes. Ainda hoje, quando se vê “Rostos” pela primeira vez, ele cheira a novo. Porque ainda é novo, ainda é a revolução a acontecer.

Gena Rowlands and John Cassavetes

Cassavetes com Gena Rowlands, a atriz com quem casou em 1954 e que foi protagonista, musa, essencial em muitos dos filmes do realizador americano

Getty Images

É uma revolução que continua nos filmes seguintes, sobretudo em “Maridos”, “Uma Mulher Sob Influência” e “Noite de Estreia”, e onde esse rostos começam a ganhar nomes, como Ben Gazzara, Peter Falk, Seymour Cassel e, claro, Gena Rowlands. A constância na escolha dos atores cria uma proximidade única com o cinema de Cassavetes. Sentimos, com recorrência, de que se está a seguir uma ideia criada num outro filme: não necessariamente uma personagem ou um ator, mas algo que foi deixado por resolver e que segue uma outra vida, ou vida própria, numa outra história. Isso é muito evidente com o Ben Gazzara de “Maridos” e o de “A Morte de um Apostador Chinês”. E inevitável com todas as personagens de Gena Rowlands nos filmes de Cassavetes.

A influência de uma mulher

Apesar de estar fora do sistema, “Rostos” foi aceite pelo sistema. Foi nomeado para vários prémios, inclusive para o Oscar de “Melhor Argumento Original” na edição de 1968. A Academia voltaria a olhar para Cassavetes-realizador, com a nomeação para Melhor Realizador a propósito de “Uma Mulher Sob Influência”, em 1974. À volta de ambos, Gena Rowlands. Uma atriz sempre com o mesmo papel nos filmes de John Cassavetes? É uma visão. Uma em que nada a derrota.

“Rostos” lança essa posição, mas “Uma Mulher Sob influência” reforça-a para um extremo. A mulher e, neste caso, a própria mulher-esposa de Cassavetes, tem várias faces, várias camadas que vão sendo tiradas e apresentadas ao longo de cada obra: ou, se se pensar nisto como um todo, todas as suas participações nos filmes do seu marido, “apresentadas ao longo de uma obra”. Em “Um Mulher Sob Influência”, por exemplo, pode-se senti-la como vítima, de uma relação abusiva, de gente manipuladora à sua volta, que a leva a um ligeiro estado de loucura. O espectador percebe a fragilidade de Mabel pelo modo muito presente com que Cassavetes filma os atores, tal como em “Rostos”, tudo parece estar a desenrolar-se à nossa frente. E, talvez por isso, há um momento em que se faz um clique e percebe-se que Mabel não é a louca ali. É o mundo à volta dela que está descontrolado, doido, que causa avarias e a coloca fora do lugar.

Há várias lições a tirar da vida e da obra de John Cassavetes. Aprende-se muito só a ver os seus filmes, sobretudo se os virmos no momento certo, têm o bom dom de provocar a mudança. Não à procura de uma qualquer grandiosidade épica e filosófica, trata-se do dom da verdade.

Ou seja, Mabel tem mais força do que é sugerido na narrativa. Ela não é a força frágil ali, são os outros. O mesmo acontece em “Noite de Estreia”, um belo filme sobre teatro e sobre como filmar teatro, em que a dado momento John Cassavetes e Gena Rowlands sobem ao palco e fazem uma cena de improviso, visivelmente alcoolizados (ou a disfarçar muito bem), criando uma discussão memorável. Em “Noite de Estreia”, Gena é uma atriz que não consegue ultrapassar a morte de uma fã, pela qual se sente responsável. Aquele momento em palco, com o seu marido, é o tal momento de emancipação da sua personagem, em que mais uma vez destrói o estereótipo da personagem feminina do cinema daquela contemporaneidade. Ainda hoje isso isso – tal como em “Uma Mulher Sob Influência” e noutros filmes – isso é revolucionário.

A revolução foi filmada

Arrepia pensar que em nove dos seus doze filmes, John Cassavetes foi responsável pelo planeamento, escrita, ensaios, filmagens e montagem. Alguns deles foram montados na sua casa em Los Angeles. E ainda tinha tempo para ser ator, com alguns papéis assinaláveis fora dos seus filmes, como “Contrato Para Matar” (1964), de Don Siegel, “Doze Indomáveis Patifes” (1967), de Robert Aldrich, que lhe valeu a nomeação para o Óscar de Melhor Actor Secundário, “Anjos do Diabo” (1967), de Daniel Haller, “A Semente do Diabo” (1968), de Roman Polanski, ou “Jogo Mortal” (1976), de Elaine May, onde contracena com Peter Falk, provavelmente o seu melhor papel. O ênfase na carreira de ator durante a década de 1960 deve-se ao contrato com a Paramount, foi o período de maior ligação de Cassavetes com Hollywood, daí o interregno entre “Sombras” (1959) e “Rostos” (1968). Esses anos permitiram-lhe construir as bases financeiras para levar avante os seus projetos.

Há várias lições a tirar da vida e da obra de John Cassavetes. Aprende-se muito só a ver os seus filmes, sobretudo se os virmos no momento certo, têm o bom dom de provocar a mudança. Não à procura de uma qualquer grandiosidade épica e filosófica, trata-se do dom da verdade. As personagens entram nas nossas vidas, a forma como berram, argumentam, cambaleiam entre o álcool e o peso de existir, dizem-nos tudo o que precisamos de saber. Ver os filmes de John Cassavetes a acontecer à nossa frente, sobretudo no cinema, é coisa que transforma. Sejamos adolescentes, adultos ou velhos rezingões. Esse será sempre o seu maior legado.

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