Lauren Singer recicla, faz compostagem, usa roupas em segunda mão, fabrica os seus próprios produtos de beleza e não é hippie. Ao contrário disso: é uma nova-iorquina de 27 anos empreendedora, cuidada, bonita, que sai à noite, tem um apartamento inspirador em Brooklyn, gere uma loja (a Package Free Shop), lançou uma marca de detergente orgânico para a roupa e diariamente fala para milhares de seguidores através da página que começou para divulgar o seu estilo de vida, Trash is for Tossers. Defensora do movimento Desperdício Zero, assumida seguidora de Bea Johnson (mãe do Zero Waste) e formada em Ciências Ambientais, Lauren começou a viver de forma sustentável quando isso praticamente ainda não era um tema e nos últimos seis anos conseguiu a proeza de produzir apenas uma pequena quantidade de lixo — tão pequena que cabe num frasco de vidro.
Defende que qualquer pessoa pode seguir o mesmo estilo de vida se começar por implementar um novo hábito de cada vez. E adora quando olham para ela como se fosse esquisita: significa que há ali uma hipótese de passar a mensagem. Lauren veio a Lisboa conhecer a cidade e deu esta entrevista antes de uma visita à nova Maria Granel de Campo de Ourique, uma loja com a mesma filosofia de redução do desperdício, uma embalagem de cada vez.
Os sacos de pano da sua loja em Brooklyn têm uma mensagem bastante provocadora: #giveashit. Pode explicar?
Para mim tudo tem a ver com responsabilidade individual, assumir responsabilidade pelo estado do mundo. Sobretudo no contexto político dos Estados Unidos, acho que muitas pessoas estão a perceber que o mundo não vai mudar por nós — são as nossas ações, enquanto indivíduos, que têm esse poder. Se não gostamos do mundo tal como está, não podemos continuar a viver da mesma forma. “Give a shit” é dizer: assume a responsabilidade, preocupa-te com as tuas ações e vive em sintonia com o mundo que queres ter. Porque se não mudares, tudo irá ficar exatamente na mesma.
Quando é que começou a reparar em todo o lixo que fazia?
Provavelmente muito mais tarde do que devia. Comecei a interessar-me por questões ambientais no liceu e no último ano li um livro — o Silent Spring de Rachel Carson — que me abriu completamente os olhos para esta questão de que é o ser humano que tem o poder de mudar o mundo. E mudar para tudo o que aqui vive, e não apenas pessoas. Somos os únicos com capacidade para desencadear uma guerra nuclear, deitar abaixo uma floresta inteira ou matar animais em massa. Temos este poder imenso e com esse poder podemos fazer coisas positivas, mas muitas vezes acabamos por usá-lo de forma negativa. Isso inspirou-me para seguir Ciências Ambientais na faculdade e estudar não só o ambiente mas também a forma como ele se cruza com questões sociológicas e com as ações humanas. Comecei a envolver-me muito em protestos contra a indústria petrolífera e do gás, por ser uma das principais responsáveis pelo aquecimento global, mas foi só no último ano da faculdade que percebi que existe uma grande diferença entre gostar de uma coisa e viver de acordo com isso. Eu era tão apaixonada pelas questões ambientais, tão ativa em protestar contra a indústria petrolífera ou em ser vegetariana… Mas percebi que falar e fazer são duas coisas muito diferentes. Porque ao mesmo tempo que estava a protestar e a ler sobre o ambiente, continuava a consumir roupa de fast fashion, a usar todos os produtos embalados em plástico, a comer comida não orgânica, a usar produtos de beleza com micro-plásticos na sua composição. Estava a protestar contra uma indústria e ao mesmo tempo a apoiá-la através dos meus hábitos de consumo. Não fazia sentido. E isso fez-me começar a pensar nas consequências das minhas ações a longo prazo e perceber que se era tão apaixonada a defender a sustentabilidade, tinha de viver de uma forma sustentável.
E começou por onde?
Comecei por cortar com o plástico, essa foi a primeira forma de mostrar o quanto me desagradava a indústria petrolífera. Mas a partir daí rapidamente percebi que não conseguia encontrar tudo o que precisava livre de plástico e por isso comecei a fazer os meus próprios produtos. Isto foi há quase seis anos, praticamente ainda não se ouvia falar de Desperdício Zero, mas foi a minha forma de tomar contacto com esse estilo de vida e de me auto-responsabilizar pelo meu impacto no mundo. Porque a sociedade diz que temos de viver de uma determinada maneira, mas na verdade não tem de ser assim. Temos uma escolha. Eu escolhi o Desperdício Zero para poder viver de acordo com os meus valores.
É verdade que o lixo que fez nos últimos seis anos cabe num frasco? Não é marketing?
Não, é verdade.
O que é que tem dentro do frasco?
Tudo o que lá está é de plástico, plástico que não é reciclável pelo sistema de reciclagem de Nova Iorque. Ao longo destes anos acabei por descobrir que na verdade existem empresas [fora de Nova Iorque] que conseguem reciclar todos o desperdício que tenho, mas continuo a guardá-lo como uma espécie de símbolo de que se um município tão grande não consegue fazê-lo, então esse desperdício provavelmente não deveria existir. Ao mesmo tempo também serve de alerta para algo que é um problema mas se calhar não tão grande que faça com que as pessoas reparem nele. Porque o que lá está dentro são aqueles bocadinhos de plástico que prendem as etiquetas à roupa, as meias que se calçam para experimentar sapatos nas sapatarias, é o papel celofane que usamos para embrulhar comida, são pensos rápidos… Coisas muito pequeninas que não veríamos como problemas de forma isolada mas que podem funcionar até como oportunidades de inovação. Basta pensar quantas roupas com uma etiqueta agarrada existem no mundo: milhares de milhões. Ou seja, eu olho para isto não como um frasco de coisas que podiam ser recicladas mas como um problema e até um desafio para empreendedores.
Foi assim que entrou no mundo dos negócios? Para resolver problemas?
Exatamente. A tentar encontrar soluções para problemas que ninguém estava a resolver. Para mim ninguém estava a tornar a sustentabilidade uma questão prática e conveniente. Ou sequer a falar para uma pessoa como eu, que não cai necessariamente nos estereótipos de uma ambientalista. O que tentei fazer foi mostrar que não importa quem és ou de onde vens, em quem votaste ou quanto ganhas — todos, todos nós podemos fazer parte disto. Esse foi desde logo um dos primeiros desafios do blogue: mostrar que reduzir o desperdício não nos transforma em hippies (risos). Eu comecei por pequenas coisas como levar a minha própria caneca quando ia buscar café, ou levar a compostagem que fazia em casa para o mercado de agricultores, e o Trash is for Tossers começou por ser uma zona segura para documentar isso. Porque algo que aprendi rapidamente foi que não valia a pena dizer às pessoas “tens de parar de beber leite não orgânico” ou “tens de parar de usar gás natural”, porque ninguém quer ouvir o que deve fazer ou que a forma como vive está errada. Eu mudei o meu discurso para algo como “isto é o que eu faço e deixa-me bastante feliz”, e isso revelou-se muito mais proveitoso. Falar dessa forma, através da minha própria experiência, permite que haja um diálogo e que as pessoas se sintam à vontade para serem inquisitivas e colocarem as suas dúvidas, por oposição a um discurso muito impositivo, que infelizmente acaba por ser o que está mais associado às questões ambientalistas. E o que aconteceu foi que de facto as pessoas se começaram a interessar pelo que eu fazia e começaram a escrever-me e a dizer que era tudo muito bonito mas não conseguiam encontrar aqueles produtos. Foi assim que acabei por fundar a minha empresa The Simply Co. e lancei um detergente orgânico para a roupa. Foi a minha primeira incursão no mundo dos negócios, numa lógica de “se queres mudar o mundo, começa por mudar-te a ti próprio, mas se queres uma mudança mais expressiva e queres facilitar a vida às outras pessoas, começa um negócio”. A loja Package Free foi uma espécie de segunda parte desse processo e surgiu para tornar mais acessíveis as ferramentas necessárias para reduzir o desperdício, ao mesmo tempo que procura empoderar os negócios que estão a desenvolvê-las, ao colocá-los todos juntos. É uma comunidade.
Os produtos da loja são escolhidos por si? E como? A partir de uma necessidade?
Comecei a loja com os produtos que já usava e as marcas que conhecia, mas o mundo é maior do que as minhas necessidades (risos) e por isso fui expandido a oferta para produtos de bebé, produtos masculinos, para cães… Soluções para quem tem estas necessidades e quer reduzir o desperdício. Digo sempre que nenhum dos produtos que temos à venda é perfeito mas é a melhor solução disponível neste momento. E se houver uma melhor solução para o desodorizante, ou para os preservativos, por favor venham ter connosco e apresentem-na.
Ainda há pessoas que ficam surpreendidas quando diz que não quer um saco numa loja, por exemplo?
Completamente. Mas essa é a melhor parte. A melhor coisa que pode acontecer é alguém olhar para nós como se fossemos esquisitos por estarmos a viver de uma forma sustentável. Porque isso significa que lhe estamos a mostrar uma coisa que não conhecia. Em vez de julgarmos alguém por nos estar a julgar a nós, temos uma oportunidade para a educar e dizer que preferimos não usar um saco de plástico porque o plástico contribui para as alterações climáticas e estamos a tentar ter um impacto positivo no planeta. Algo curto, gentil e que não seja ameaçador. Se estamos a fazer algo diferente de toda a gente é importante explicar porquê. Não é obrigatório mas ajuda a simplificar. Cada oportunidade de parecer esquisito é uma oportunidade de ensinar.
O que é que costuma responder a alguém que até gostava de seguir este estilo de vida mas diz que dá muito trabalho? Porque a verdade é que podemos dizer que não temos tempo para fazer os nossos próprios produtos de beleza, por exemplo.
Digo sempre que sou a pessoa mais preguiçosa à face da Terra e que se eu consigo, qualquer pessoa consegue. O que percebi foi que ao fazer isto, ao consumir menos comprando em segunda mão ou fazendo os meus próprios produtos, poupo bastante tempo e consigo fazer a maioria dessas coisas a partir de casa. Não tenho de ir ao supermercado comprar pasta de dentes ou desodorizante e posso-me sentar no conforto do meu apartamento, agarrar em bicarbonato de sódio e óleo de coco e fazê-lo em roupa interior, se quiser. Poupa-me tempo e energia, e em última análise poupa-me dinheiro. Acho que muita gente não tem isso em conta e tem uma ideia pré-concebida de que viver de forma sustentável é caro e é difícil. Não é assim tão difícil usar um saco reutilizável, basta pensar que tem de levar um antes de sair de casa. O mais difícil são as ideias preconcebidas e a mudança de hábitos. Porque nenhum dos passos é realmente difícil.
Como começar então?
Com uma coisa de cada vez. Não vale a pena fazer 48 coisas ao mesmo tempo e passar para o Desperdício Zero de um dia para o outro. Comece por usar um saco reutilizável e quando isso estiver implementado experimente fazer pasta de dentes, se quiser. Não gostou? Tudo bem, tente outra coisa. Integre uma coisa de cada vez na sua rotina e assim que ela se tornar confortável, fácil e segura, experimente fazer outra coisa. Creio que as pessoas esbarram com problemas quando tentam mudar demasiadas coisas de uma vez. É como querer mudar abruptamente de dieta de um dia para o outro — está condenado ao fracasso. No meu caso tentei transformar isto numa espécie de jogo, uma coisa divertida. “Fiz o meu próprio desodorizante, boa, não cheiro mal e não estou a colocar químicos no meu corpo, se calhar posso experimentar começar a comprar coisas em segunda mão. Comprei coisas em segunda mão? Espectacular, e ainda por cima esta roupa é tão barata. O que mais posso fazer?” E não faz mal se não gostar de alguma destas coisas, até pode encontrar uma alternativa. Não gosta de andar a vasculhar nas lojas vintage? Que tal procurar online? É uma oportunidade para ser inovador e pensar fora da caixa.
Vive na cidade que nunca dorme e num mundo consumista que está constantemente a ser inundado de novidades. Nunca sente vontade de ir ver montras e de comprar roupa nova, por exemplo?
Eu compro roupa nova, simplesmente compro-a em lojas de segunda mão — é nova para mim mas estou a reutilizar uma coisa que já existe. Há uma boa rede dessas lojas em Brooklyn mas na Europa ela é ainda melhor. Por outro lado, há marcas sustentáveis a fazerem coisas novas e interessantes a partir de stocks antigos. Ou seja, é vintage mas é novo, é sustentável e ao mesmo tempo está a empoderar jovens empreendedores que estão a querer resolver um problema de forma inovadora.
Começamos a ouvir as novas gerações dizerem que preferem experiências em vez de coisas, se calhar porque já têm demasiadas ou porque têm casas pequenas e não sabem onde guardá-las. Acredita que isto é uma tendência, e uma tendência que pode ajudar o planeta?
Completamente. Eu escolheria comida em vez de coisas todos os dias. É importante experimentar o que há para experimentar no mundo, em vez de consumir e consumir e consumir. Eu sinto-me melhor ao ter menos coisas e sinto-me melhor quando viajo e tudo o que preciso cabe dentro de uma mala. É mais fácil. E mostra-nos que quanto menos coisas temos, mais livres somos para explorar.
Acredita que daqui a cinco anos vai continuar a ter apenas um frasco de lixo?
Sem dúvida. Como é que se diz? Só precisamos de 14 dias para criar um novo hábito. Esta é a forma como eu vivo agora e já o faço há quase seis anos. Não percebo como é que pude viver de outra forma. Dito isto, talvez possa viver melhor. Posso ter ainda menos ou o meu impacto pode passar de Zero Waste para Net Positive, isto é, em vez de não fazer algo negativo, fazer algo de positivo e contribuir com alguma coisa. Plantar mais árvores ou fornecer energia renovável investindo em painéis solares, por exemplo. Poder espalhar a mensagem já é ótimo, mas há sempre espaço para fazer mais e melhor.