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Machado de Assis: muito mais do que realismo, uma literatura inteira

Está publicado entre nós o primeiro número da coleção integral de contos do autor brasileiro, um gigante da produção literária em português e do brilhantismo da ficção breve.

É a primeira edição portuguesa a recolher os contos completos de Machado de Assis (1839-1908). São 752 páginas, que correspondem a um quarto do que será publicado. Sairá um livro por ano, cada um correspondente a um período de escrita. No primeiro volume, saem os contos escritos entre 1884 e 1907.

Machado de Assis é o melhor escritor de ficção curta em língua portuguesa. Espanta, por isso, que ainda vá sendo pouco conhecido em Portugal, ainda que tal se possa dever ao lugar que Eça de Queiroz foi ocupando, e à rivalidade estabelecida entre os dois autores, contemporâneos. No Brasil, claro, Machado de Assis reina em todo o seu esplendor, figurando ainda como um dos mais proeminentes romancistas. Aliás, não foi sem querer que deixou milhões de leitores obcecados com Capitu, estrela de Dom Casmurro.

No volume de contos que aqui trazemos, temos um autor que é já uma enciclopédia de uma sociedade. Pouca falta farão os jornais a quem pode ver o reflexo de um tempo em forma literária – forma essa que inclui mais do que a mera radiografia de um tempo, de uma atmosfera, de umas circunstâncias. Em vez de temas como fim per se, aqui temos os temas como veículo para as histórias, o que culmina em riqueza cultural e social.

A capa de "Último Capítulo", que reúne os contos completos de Machado de Assis, entre 1884 e 1907 (E-Primatur)

No total, o autor teve uma produção impressionante, tendo escrito mais de duzentos contos, publicados em revistas, jornais e almanaques, e isto para lá de dez romances. É difícil resumir ou esquematizar uma obra tão vasta, mas lá se vai notando um apego à classe média brasileira da segunda metade do século XIX. Umas vezes irónico, outras a puxar para o sentimental – no sentido de densidade emocional –, ao ler Machado de Assis, é fácil ver-se a vida a acontecer.

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Em termos de estrutura, a ficção breve de Machado de Assis impressiona. Ao nascer, nasceu também uma forma de escrever em língua portuguesa, que hoje assumimos como a estrutura da ficção curta moderna. À época da escrita, as questões estilísticas inovavam e mesmo hoje conseguem surpreender, em parte pela amplitude e pela multiplicidade de recursos em jogo. É difícil olhar para este volume – quanto mais para os duzentos e tal contos – e tentar criar uma folha de Excel que sirva para os encaixar numa fórmula. Nota-se que há uma acção que norteia toda a narrativa, mas a forma de a veicular vai diferindo em permanência.

A ficção de Machado de Assis vai além da descrição das acções, ainda que centrada, como foi anteriormente referida, num acontecimento. É que, além disso, o autor conta as personagens a partir de dentro, mostrando, sem usar peneiras, os seus fluxos de consciência. Com isto, o mundo interior existe em contraste com o exterior, preto no branco, e as contradições humanas, com o que têm de aparentemente insondável, ganham lugar de destaque na narrativa.

A arte dos seus contos implica ainda a arte de um engodo bem feito — e isto sem abdicar de um certo quê sentimental de vez em quando. É que, mesmo quando não se espera, há ali uma angústia, um certo sentido de ridículo, uma vontade de agradar, uma falha, uma quebra.

De resto, os contos podem ter tendência para serem mais explicativos, da mesma forma que podem ser veiculados maioritariamente pelo discurso directo. E aqui convém sublinhar o que nem todos os lusófonos sabem fazer: é criada uma voz que não contrasta com a do discurso indirecto e que, em simultâneo, não deixa de ser literária, não cria solavancos ao ritmo ou à prosódia. Pode parecer coisa pouca, mas para quem escrutina as estruturas internas dos textos fica claro que a técnica de Assis é impressionante também pela forma como o incorpora e cria as linguagens.

Ora, recusar modelos e criar coisas novas significa, na prática, criar literatura e formas de dizer. Machado de Assis mostra o mundo, é bem verdade, e isso por si só já é quase tudo para um escritor. Mas, em simultâneo, faz de cada pequeno texto uma experiência estética que transforma o quase tudo em tudo. Ao inovar de cada vez, garante o interesse do leitor e a leitura em ritmo de galope. É nisto que Machado de Assis foge à síntese, apresentando um compêndio de textos que sabem a uma literatura inteira. Lá dentro, estão personagens compactas e surpreendentes – principalmente por serem as que o leitor vê nas banalidades dos dias, e que o engatam mesmo assim –, atmosferas e ideias que dão ao leitor coevo de Assis o que dão ao leitor de agora: uma janela para um mundo que, aparecendo ali cristalizado, deixa à flor da pele o seu movimento visível.

A técnica de Assis é impressionante também pela forma como o incorpora e cria as linguagens

Não surpreende, por isso, que Machado de Assis seja frequentemente posto na gaveta do realismo, mas também não será certeiro olhar para o que faz como realista e mais nada, uma vez que a sua estética extrapola essa escola. No que escreve, há ambiguidade e uma ironia fina, que não raras vezes passa despercebida ao leitor mais desatento. Neste aspecto, o realismo parece ficar para trás com o autor a fazer uma incursão num passado ainda mais longínquo, usando com frequência esse traço tão típico da literatura da Grécia Antiga. Para mais, nos pequenos enredos, ao invés de um arco fechado, à matemática, o último ponto final deixa uma dúvida.

A arte dos seus contos implica ainda a arte de um engodo bem feito — e isto sem abdicar de um certo quê sentimental de vez em quando. É que, mesmo quando não se espera, há ali uma angústia, um certo sentido de ridículo, uma vontade de agradar, uma falha, uma quebra. Ora, essa falha, essa quebra, existe da personagem para consigo ao mesmo tempo que existe em relação à expectativa social.

O cenário é um a cada texto, mas o autor brasileiro consegue mexer com tudo, fazendo retratos sociais que são também psicológicos, ou psicológicos que são também sociais, não se entende bem. Ora, isto faz com que os retratos machadianos não sejam chapas da realidade, fotografias inócuas que não vêem além. Em vez disso, são retratos críticos, mesmo que a crítica não tenha de lá estar explicada, como papa feita para o leitor. É por isso que ao leitor cabe a atenção de participar na leitura, de ir desfiando a voz que narra, entendendo o que é dito e o que é sugerido. Ou intuindo, simplesmente.

Com esta vida inteira dentro da literatura e com tanto da sociedade à vista em meia dúzia de pinceladas, é natural que Machado de Assis seja um gigante na produção literária em português e esta uma publicação importante em Portugal, onde o autor ainda não se meteu em pleno voo.

Nos contos de Machado de Assis, ninguém se safa. Não há santos nem vítimas – e muito menos heróis. Não caindo em figuras estereotipadas, à medida que se lê – e lê-se muito –, lá se vai percebendo que os homens vão sendo apresentados como uma espécie de escumalha moral, mesquinhos nos seus objectivos, patetas nos seus raciocínios; e as mulheres, ainda perto das figuras dos românticos, vão sendo umas Circes que dão cabo da cabeça – do coração – aos homens –, entre actos e frases de egoísmo e vaidade que culminam em seduções perigosas.

Com tudo isto, com esta vida inteira dentro da literatura e com tanto da sociedade à vista em meia dúzia de pinceladas – regra geral, menos de meia dúzia de páginas –, é natural que Machado de Assis seja um gigante na produção literária em português. Último capítulo é, por isso, uma publicação importante em Portugal, onde o autor ainda não se meteu em pleno voo. Os restantes três volumes também terão muito a acrescentar às prateleiras deste lado do Atlântico. É que, há que reconhecê-lo, nenhum lusófono excepto Nelson Rodrigues chegou aos calcanhares de Machado de Assis no que toca à produção de ficção breve. Mesmo antes da publicação dos três volumes em falta, parece que se dá por terminada a discussão sobre a rivalidade com Eça de Queiroz: Machado de Assis foi muito mais do que realismo, foi uma literatura inteira.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

 
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