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Quando se fala em browsers da Internet, os nomes mais conhecidos costumam ser três: o Chrome, que atualmente é o mais atualizado, o ‘falecido’ Internet Explorer e o Firefox. Dos três, este último é o único que, num mercado em que empresas como a Microsoft, Google ou Apple tendem a dominar, consegue manter-se relevante, mesmo sendo parte de uma organização sem fins lucrativos. Ao leme dos destinos deste navegador de Internet está, desde 1999, Mitchell Baker.
Baker está a cargo da Mozilla desde o tempo em que existia o Netscape, o browser que precedeu o Firefox e não conseguiu competir contra o Internet Explorer, porque a Microsoft estava a adotar táticas de abuso dominante, no final da década de 1990. Atualmente, Mitchell Baker é presidente do conselho de administração da Mozilla e afirma, em entrevista ao Observador, que o que a empresa passou com a Microsoft “é um espelho” daquilo que a Google está agora a fazer com o Chrome.
A líder tecnológica, formada em Direito pela universidade de Berkeley, esteve em Lisboa, por ocasião da Web Summit, para falar de como é importante estar na indústria que combate o fenómeno das fake news (notícias falsas). Referindo a contínua aposta na transparência do Firefox, falou na aposta que está a fazer no Pocket, um projeto que quer dar a conhecer “os artigos que são realmente lidos, mas não partilhados”. Além disso, fala de como um browser pode ser a salvação para os problemas da Internet e de como seria “uma coisa boa” para acabar com a discriminação na indústria tecnológica, se esta começasse por “lidar apenas com o assédio sexual” nas empresas.
A Mozilla não tem fins lucrativos. Como é que podem competir com empresas como a Microsoft, Google ou Apple, que têm browsers próprios e podem disponibilizá-los ao consumidor de forma mais agressiva?
A Mozilla compete com as maiores plataformas tecnológicas do mundo, começando pela Microsoft, desde o início da nossa história, e, atualmente com a Google. Não é um desafio fácil. O que fazemos é tentar criar um produto que é, ao mesmo tempo, muito bom nas áreas fundamentais, e diferente. Na maior parte da nossa história, focámo-nos mais na segurança, privacidade e em fazer coisas em prol do utilizador, mantendo-nos independentes. Até agora, tem sido um plano bem sucedido, na maior parte das vezes. Achamos que, agora, estamos num momento em que vamos voltar a crescer.
O projeto teve muito sucesso no início e, depois, quando a Google lançou o Chrome, foi menos bem sucedido. O Chrome era um produto novo e, até eu o admito, durante alguns anos foi o melhor produto. Isso já não é verdade agora. Fizemos um lançamento há um ano e é um facto em todo o Silicon Valley e no mundo tecnológico: o Firefox voltou a ser considerado o melhor. O mais rápido, o mais avançado tecnicamente. Isso é importante. Estamos constantemente a tentar ser mais claros sobre como somos mais rápidos e com o cuidado que temos com a privacidade. Não é fácil, porque os browsers são complexos. Se tens um e ele funciona, não vais mudar.
É a batalha entre o Firefox e o Google Chrome a mesma que o Internet Explorer travou contra o Netscape?
Sim. Ou até a batalha entre o Internet Explorer versus Mozilla, quando o lançámos. Digo que sim, mas entristece-me afirmá-lo. No início, a Google era muito diferente. A promessa inicial de pesquisa era levar-te onde querias ir o mais rapidamente possível. O objetivo não era levar toda a gente para o Google Chrome e mantê-los lá. Mas isso mudou. Infelizmente, a nossa experiência com a Google e com o Chrome é como um espelho daquilo que a Microsoft fez com o Internet Explorer.
Vamos ver mais batalhas legais as como vimos no passado [como no caso United States vs. Microsoft, em que a Microsoft perdeu]?
Não sei. Não depende de nós. É um facto que a União Europeia está a olhar com atenção. Acho que os Estados Unidos não estão. Não sei. Por isso, tentamo-nos focar nos utilizadores individuais e ver se conseguimos oferecer algo diferente. Nos últimos 7/8 anos, a Mozilla andava a falar de privacidade e segurança e isso pareceu muito alarmista porque não parecia realista para muitos consumidores. Agora, nos últimos dois anos, vimos que a consciencialização dos consumidores aumentou em relação à privacidade, segurança e riscos das grandes plataformas. Esperamos que, ao oferecer a velocidade e excelência técnica do Firefox, com as ferramentas de cibersegurança que inserimos desde o início, como o anti-tracking para as empresas não te seguirem, os consumidores possam ter um outro olhar e experimentem.
A Internet precisa de ser salva, como pediu Tim Berners-Lee? Como pode um browser ser a salvação?
A Internet precisa de mudar drasticamente. Os browsers podem fazer algumas coisas para que isso aconteça. A razão porque continuamos a focar-nos em web browsers é porque há centenas de milhões de pessoas que continuam a utilizá-los. A arquitetura dos browsers permite que o software te represente. É como um representante que se senta entre ti e o serviço ou quem disponibiliza as apps. Imagina o teu telefone e fazes o download de uma app. Essa aplicação conecta-se ao site ou à base de dados ou ao que for. A app e o site são feitos pela mesma empresa. Essa empresa faz o que quiser. Enquanto que, na Web, ao utilizarmos um site, esse é processado pelo browser. E nós, porque somos o browser, podemos-te representar.
O “pai da Internet” apresentou em Lisboa uma nova solução para a Web
O browser pode fazer coisas que o site ou a empresa não querem, como parar anúncios. Ou o que fazemos no Firefox, paramos o tracking. Imagina que site te quer seguir e pôr cookies para te seguir: o browser pode representar-te, porque não é feito por essa empresa. O que estamos a fazer no Firefox é a tornar o antitracking mais forte. Uma das coisas que se pode utilizar é o Facebook container, mas o que isso faz é limitar a forma como o Facebook te segue. Se puseres a informação no Facebook, não conseguimos fazer nada, mas isto limita como o Facebook pode seguir-te pela web. Se for uma app, não há maneira de o software te proteger. Até em coisas pequenas, os browsers ajudam, como teres um texto maior.
Num smartphone funciona da mesma forma?
Num smartphone não se utiliza tanto um browser. Se utilizarmos o browser podemos dar alguma proteção, mas a Apple e a Google normalmente dizem ‘não’ e limitam o que podemos fazer no browser. É possível pôr o Firefox num smartphone, mas não nos deixam proteger-te tanto quanto queríamos. Há imensos limites e a Apple é muito pior do que a Google. No sistema do smartphone é difícil dar proteção, porque a Apple e a Google controlam muito. Na Mozilla ainda estamos a tentar perceber como podemos dar mais controlo no telefone.
“Mozilla é um caso pouco comum na indústria tecnológica”
No verão, a Mozilla optou por ser mais transparente e passou a mostrar os números de utilização. Que outras medidas têm feito em prol da transparência?
A Mozilla é um caso pouco comum na indústria tecnológica. Somos uma organização sem fins lucrativos. Não tentamos ter lucros para os acionistas. O lucro que tentamos obter é uma Internet melhor para as pessoas. Isto porque somos uma organização sem fins lucrativos. O objetivo é construir a Internet como um recurso público. Parte disso tem sido dando controlo aos indivíduos sobre a privacidade, segurança, transparência. Temos isso escrito num documento que especifica o que é ser parte da Mozilla. Advogamos a transparência desde o início da nossa existência.
Firefox dá passo pela transparência e revela dados de utilização
Quando começámos, a ideia de software de código aberto [programas que não eram protegido por direitos de autor] radical. Não era confortável para muitas pessoas a ideia de que o código base fosse público ou visível. Foi surpreendente. Mas isto foi no início da primeira fase de transparência. Uma coisa que continuamos a fazer por duas razões. Primeiro, as pessoas podem aprender. Segundo, as pessoas podem participar. Terceiro, pela transparência e segurança para as pessoas poderem ver o que estamos a fazer. Por exemplo, dizemos que não há possibilidade de termos sistemas maliciosos a entrarem no nosso software e que não disponibilizamos o software como uma forma fácil de o governo ter controlo. E isso é algo credível, porque as pessoas que percebem de programação podem ir ver.
Continuamos a impulsionar as fronteiras da transparência e das oportunidades individuais desde que a Mozilla existe. Os dados de utilização de utilizadores são uma área em que é muito complicado inovar, mas não se esperava que fosse assim. Quantas pessoas utilizam o Chrome? Quantas páginas web são acedidas por utilizadores no Chrome em relação ao Firefox? É complicado ter essa informação, porque é um sistema distribuído e os números são muito complicados de se saber. Achamos que os números que têm sido divulgados ao longo dos anos são imprecisos. Não correspondem a nada do que possamos encontrar. Por isso, fizemos um grande trabalho para divulgar os dados que temos, de forma a poderem estar públicos. Para a transparência e para a participação cívica, o que se quer é que os dados sejam públicos, mas muitas vezes há dados pessoais neles e é preciso ter muito cuidado. Isto tem a ver com o Firefox, mas achámos que pode ser útil porque mostra como medimos os dados (normalmente amostras pouco fiáveis e dependem dos websites).
O clickbait continua a ser muito comum na Internet e para alguns projetos de media. Como é que o Pocket pode mudar isso e a forma como consumimos informação jornalística?
Uma coisa é o título e outra coisa é o conteúdo. Pode-se ter um título cativante e mesmo assim ter um artigo muito bem informado. O Pocket é direcionado para as pessoas que querem ler conteúdos que levam a uma maior reflexão. O que é slow journalism [jornalismo para se ler devagar] pode mudar, o que era percebido em 15 minutos, agora é visto em 5 minutos. O Pocket é um sistema muito focado na privacidade. Encontra sinais de conteúdos interessantes de coisas que as pessoas leem mesmo. Quando se está a viajar, exemplo, encontra-se alguma coisa interessante, mas às vezes não é o momento certo para o ler. O Pocket permite guardar para se ler depois. É uma maneira de as pessoas guardarem conteúdos e realmente lerem. Não é para só partilhar, retwetar ou ficarem fulos nas redes sociais.
“Precisamos de um novo curriculum. Não é pegar num filósofo e largá-lo numa empresa”
Podemos considerar que o Brad Smith é a Mitchell Baker da Microsoft? Ambos têm papeis bastantes proeminentes em grandes empresas tecnológicas e têm formação em Direito. O mundo precisa de mais juristas em empresas tecnológicas?
[risos] Acho que é a primeira vez que oiço essa comparação. Diria que o mundo precisa de tecnólogos com uma educação mais ampla do que apenas tecnologia ou ciências exatas, seja Direito, ou Humanidades ou Antropologia. A educação em ciências exatas está a criar novos tecnólogos, matemáticos, cientistas e programadores que não têm bases, conhecimentos nem maneiras de pensar no impacto da tecnologia na sociedade.
Precisamos de um novo curriculum. Não é pegar num filósofo e largá-lo numa empresa. É a educação da Filosofia que a indústria da tecnologia e os nossos cientistas têm de compreender. Têm de ter ferramentas para perceber como é que as suas invenções estão a impactar a sociedade.
Sente que a formação que teve foi uma vantagem ou desvantagem para chegar onde chegou?
Acho que foi ambos. Se pudesse ser tudo o que sou mais ser uma tecnóloga era o ideal. Mas, por outro lado, tem sido muito benéfico ter uma perspetiva diferente. Era difícil ser uma grande tecnóloga e não partilhar esta perspetiva contigo. Nunca se chega ao cenário ideal. Não consigo imaginar ter começado a construir a Mozilla em 1991 sem ter tido esta perspetiva que tenho. Quando a Web apareceu era claramente uma coisa poderosa. Quem é que lhe podia resistir?
Num evento como a Web Summit, no qual se apelou a que mais mulheres entrassem na indústria tecnológica como é que se pode ter mais mulheres líderes como a Mitchell?
Primeiro, é preciso investir nas mulheres, que é o que não está a acontecer nas empresas nem nos conselhos de administração. Segundo, sabemos que há discriminação e assédio flagrante. Lidar apenas com o assédio sexual já era uma coisa boa. Terceiro, temos de ter maneiras eficientes para lidar com a discriminação sexual flagrante e também com a não tão flagrante. Acho que temos de olhar para as empresas que não têm representação [de ambos os géneros] como ilegítimas. Isso é algo que nós, os cidadãos e os consumidores, conseguimos fazer no mercado.