790kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

i

Bettmann Archive

Bettmann Archive

Nixon foi à China, passou pelos Açores, mudou o Mundo

As relações diplomáticas e comerciais entre EUA e China remontam a 1784, pouco após a independência norte-americana. Mas Nixon foi o 1º presidente a visitar a China. Um ensaio de Bruno Cardoso Reis.

    Índice

    Índice

Há cinquenta anos encontravam-se em Pequim dois dos líderes políticos mais controversos do último século: o presidente norte-americano Richard Nixon (1913-1994) e o dirigente comunista chinês Mao Zedong (1893-1976). Esta foi também a primeira visita de um Presidente norte-americano à China. A viagem marcou uma viragem nas relações entre os dois países que marcou a fase final da Guerra Fria e influenciou a política internacional até hoje.

A semana que mudou o mundo?

Nixon não hesitou, no seu discurso de despedida, em qualificar os dias que passou na China, entre 21 e 28 de fevereiro de 1972, como “a semana que mudou o Mundo”. O encontro foi, realmente, um marco na política internacional, tornando pública para todos – graças a dois aviões cheios de jornalistas norte-americanos – uma extraordinária aproximação entre os EUA e a China comunista com um enorme impacto na política, na economia e na estratégica global durante as décadas seguintes. Nas minhas pesquisas ainda cheguei – em 2003 – a entrevistar um dos 13 membros da pequena equipa que acompanhou Nixon, o então recém-nomeado assessor militar do presidente, Brent Scowcroft. Embora a conversa tivesse por foco outros temas, acabou por recair acessoriamente nessa visita icónica. Scowcroft recordava um certo desapontamento presidencial com a falta de multidões a celebrar a visita. Ele tinha notado sobretudo a quase total ausência de carros. Era um China profundamente diferente da de hoje, muito pobre e isolada.

É verdade que este tipo de visitas raramente muda tudo. Efetivamente a plena normalização de relações diplomáticas entre os EUA e a China só se verificaria em 1979. Porém, o chamado Comunicado de Xangai, que foi o principal resultado das conversações desses dias, ainda hoje é citado como uma referência que marca os termos do relacionamento sino-americano, em particular, relativamente à questão espinhosa de Taiwan, que volta a estar no topo da agenda. E a aproximação, depois de décadas de hostilidade, entre os EUA, o estado com a maior economia global, e a China comunista, o estado com a maior população do Mundo, não podiam deixar de ter impacto significativo na política global. Curiosamente, o difícil e demorado caminho de Nixon para Pequim passou, ainda que tangencialmente, como iremos ver, pela Ilha Terceira, por uma primeira cimeira das Lajes.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Nixon Meets En-Lai In China

Chegada de Richard Nixon a Pequim, a 21 de fevereiro de 1972

Getty Images

Das costas voltadas até à diplomacia do Ping-Pong

As relações diplomáticas e comerciais entre os EUA e a China remontam a 1784, poucos anos depois da independência norte-americana. Elas foram formalizadas, pela primeira vez, em 1844, pelo Tratado de Wangxia, assinado num dos principais templos da Macau portuguesa, durante séculos o grande ponto de contacto entre o Ocidente e a China. Porém, apesar de duas centenas de anos de relações cada vez mais intensas, como já referimos, Nixon foi o primeiro presidente norte-americano a visitar a China.

Durante esse período três preocupações têm dominado a estratégia dos EUA nesta região do globo. A primeira é garantir o máximo de liberdade de acesso ao gigantesco mercado chinês, o que sempre se revelou um desafio complicado. A segunda é a oposição à fragmentação da China – ao contrário de várias potências europeias, da Rússia ou do Japão. A terceira, e principal, é a resistência à afirmação de qualquer potência hegemónica hostil na margem oposta aos EUA do Pacífico. Estas foram as principais razões da oposição dos EUA à expansão do Japão, o que levou ao ataque japonês à esquadra americana do Pacífico, ancorada em Pearl Harbour, em dezembro de 1941, e à entrada norte-americana na Segunda Guerra Mundial, um evento marcante da memória coletiva e da cultura estratégica, quer dos EUA, quer da China.

O Império Chinês tinha-se fragmentado desde a queda da monarquia imperial manchu, em 1911-12, e só recuperou alguma unidade em outubro de 1949, quando Mao Zedong proclamou a República Popular da China em Tiananmen. Os EUA, porém, tinham apostado e apoiado fortemente o outro lado, o movimento nacionalista perdedor de Chiang Kai-shek. Quando Nixon vai à China, tinham passado duas décadas sem contactos diplomáticos diretos e normais entre os governos de Washington DC e de Pequim. A grande exceção a essa reunificação pela força levada a cabo pelo regime comunista chinês foi Taiwan. Aí se refugiou, sob proteção militar norte-americana, o governo derrotado de Chiang Kai-shek, que manteve em Taipei uma República da China competindo pelo reconhecimento internacional com a República Popular da China baseada em Pequim. Pouco depois, em outubro de 1951, 250.000 “voluntários” do exército chinês empurraram as tropas norte-americanas, à beira de vencer a Guerra da Coreia, para fora da Coreia do Norte. Este foi um marco importante do regresso da China ao estatuto de potência regional e global.

A denúncia do imperialismo norte-americano tornou-se um dos temas preferidos da propaganda da China comunista.

A denúncia do imperialismo norte-americano tornou-se um dos temas preferidos da propaganda da China comunista. Por sua vez, a denúncia da alegada “perda da China” para o comunismo pela Administração do Democrata Harry Truman foi uma das armas dos Republicanos nas eleições presidenciais de novembro de 1952, em que recuperaram a Casa Branca, com Dwight Eisenhower como Presidente e Richard Nixon como Vice-Presidente. Numa cimeira internacional, em Genebra, em 1954, o chefe da diplomacia norte-americana, John Foster Dulles, recusou-se, publicamente, a apertar a mão estendida do seu homólogo chinês, o sempre cortês mandarim comunista, sobrevivente de mil batalhas políticas e patriarca da diplomacia da nova China, Zhou Enlai. Foi, aliás, sobretudo com este, na qualidade de Primeiro-Ministro, que Henry Kissinger, o braço-direito de Nixon para a grande estratégia internacional, negociou os termos da viagem presidencial que apanhou o Mundo de surpresa há cinquenta anos.

Não foi fácil. Quando, em 1970, os diplomatas norte-americanos tentaram passar aos seus colegas chineses a mensagem da intenção da nova Administração Nixon de retomar contactos exploratórios, tiveram de recorrer a um dos poucos sítios do mundo onde se podiam encontrar informalmente: uma passagem de modelos na embaixada da Jugoslávia em Varsóvia. Tiveram de gritar a mensagem de Nixon aos diplomatas chineses que, quando viram os norte-americanos aproximar-se, fugiram deles!

A Polónia comunista até tinha sido palco, ao longo dessas décadas, de mais de uma centena de encontros secretos entre diplomatas chineses e norte-americanos. O que nos recorda que mesmo quando os Estados estão oficialmente de relações cortadas, raramente cortam todos os canais de diálogo. Porém, a China de Mao vivia os dias sangrentos da Revolução Cultural. O contacto não-autorizado com “imperialistas” estrangeiros tinha-se tornado mais arriscado do que nunca, até para diplomatas, muitos dos quais tinham sido chamados de regresso à China para reeducação nos campos.

Reunião entre Richard Nixon e Henry Kissinger, em trânsito

HUM Images/Universal Images Grou

Foi preciso um ano para Mao decidir que os sinais de abertura negocial norte-americana – transmitidos por várias vias – eram sérios e se decidir a mudar de agulha e esboçar, por sua vez, um gesto de abertura aos EUA. Tratou-se do mediático convite para a seleção de ping-pong dos EUA se deslocar à China, em abril de 1971, onde os jogadores, espantados, foram recebidos com honras de Estado. Na sequência desse passo, Kissinger deslocou-se secretamente a Pequim, por duas vezes: em julho – a coberto de supostos problemas gástricos numa visita ao Paquistão – e, novamente, em outubro de 1971, sendo então acordada e, logo a seguir, anunciada publicamente a visita de Nixon à China. A bola estava lançada. A jogada era arriscada, mas quer em Pequim, quer em Washington DC mandavam dois líderes com carreiras construídas com base em apostas políticas de alto risco.

Dois marginais no topo

Quando Nixon se encontrou com Mao, em Pequim, em fevereiro de 1972, este último aproveitou para dizer, de forma provocadora, que “um velho amigo comum”, Chiang Kai- shek, “não gostava deste encontro” e até o apelidava de “bandido”. Nixon não se deixou desconcertar e perguntou como é que a propaganda maoista designava Chang-Kai Shek? Mao e Zhou Enlai riram-se, e este último confessou que devolviam a acusação e rematou: “Insultamo-nos mutuamente!” Na verdade, as biografias de Mao referem a sua admiração, desde criança, pelo anti-herói, o bandido honrado, muito presente na cultura e literatura chinesa.

Nixon, neste encontro em 1972, tentou criar um laço pessoal com Mao, sublinhando que ambos vinham de um meio popular, pobre, e que ambos tinham “chegado ao topo” de dois grandes países. E é verdade que, sem serem verdadeiramente pobres, Nixon e Mao, por razões de classe, de geografia, de educação, eram figuras relativamente marginais, certamente não faziam parte da elite tradicional norte-americana ou chinesa.

Um traço que marcou muito a personalidade política de Mao e Nixon foi este poderoso sentimento de marginalização e a convicção de que só podiam conquistar e manter o poder contra elites poderosas. Ambos foram, em certo sentido, precursores dos nacionalistas populistas de hoje em dia, apresentando-se como a voz do americano ou do chinês comum

Mao Zedong provinha de uma família de proprietários rurais, remediados, do Sul, de Hunan, uma região afastada da capital e não pertencia ao meio de intelectuais-aristocratas que tinham dominado a China durante sucessivos regimes imperiais. Fez os seus estudos em escolas de província, e mesmo aí terá sido ridicularizado pelas suas origens e modos rústicos e nunca concluiu um curso universitário. Mesmo no seio do Partido Comunista Chinês, fundado em 1921, o seu percurso até à liderança esteve longe de ser fácil. Já o pai de Nixon geriu pequenos negócios com pouco capital e sucesso variável. Há anos estive em Yorba Linda, a uns 30 quilómetros a sul de Los Angeles, próximo do parque Disney World, em Aneheim. Aí pude visitar a modesta moradia em que cresceu Nixon e que este transformou numa casa-museu anexa ao seu arquivo e museu presidencial.

Um traço que marcou muito a personalidade política de Mao e Nixon foi este poderoso sentimento de marginalização e a convicção de que só podiam conquistar e manter o poder contra elites poderosas. Ambos foram, em certo sentido, precursores dos nacionalistas populistas de hoje em dia, apresentando-se como a voz do americano ou do chinês comum, únicos capazes de voltar a tornar grandes os seus países, enfrentando burocracias acomodadas.

Claro que a comparação dos dois percursos – que o próprio Nixon fez – tem sérios limites. Este sentimento de marginalização certamente ajuda a explicar, sem justificar, a aposta de Nixon em políticas duvidosas e até ilegais. Ao nível externo, por exemplo, a cumplicidade com o golpe militar que derrubou o Presidente Salvador Allende do Chile, ou o apoio ao regime altamente repressivo da Indonésia, um parceiro anticomunista considerado vital no Sudeste Asiático depois da queda do Vietname do Sul. A nível interno, por exemplo, mandando espiar a campanha presidencial do Partido Democrático no respetivo quartel-general no edifício Watergate, em Washington DC. Apesar de tudo isso, Nixon foi um líder livremente eleito de uma democracia, forçado a demitir-se por meios igualmente legais. Já Mao Zedong foi um líder guerrilheiro de grandes qualidades e um político carismático, principal responsável pela reunificação da China, em 1949, depois de um século de humilhações, derrotas externas e guerras civis internas. Porém, Mao também presidiu a um regime totalitário, responsável, direta ou indiretamente, pela morte de dezenas de milhões de pessoas, seja pela repressão política da Revolução Cultural, seja pela fome provocada por desastrosas opções económicas estatistas durante o dito Grande Salto em Frente.

Chou En-Lai And Nixon Shake Hands Goodbye

Aperto de mãos no fim da viagem

Bettmann Archive

Estamos, em todo o caso, face a jogadores políticos que gostavam de desafiar convenções. Perante este dado, as diferenças ideológicas radicais entre ambos perdem alguma relevância. Mao fez questão, no seu estilo sardónico, de afirmar a Nixon que “votei em si” e “gosto de líderes [ocidentais] direitistas”, por serem mais previsíveis. Nixon pegou na deixa para sublinhar que, realmente, tinha as condições ideias para levar a cabo a reaproximação à China. De facto, depois de uma carreira política de décadas na direita anticomunista, seria difícil alguém acusar Nixon de ir a Pequim por simpatia com o Maoismo.

Da Terceira a Pequim, ou realismo versus ideologia

O encontro histórico entre Nixon e Mao em 1972 é o exemplo perfeito de que as duras realidades do poder e da ameaça, assim como os fatores geoestratégicos pesam mais na política internacional do que a retórica ideológica. Mao no seu encontro com Nixon manifestou espanto que alguém levasse a sério os seus slogans anti-imperialistas. Sobreviventes de muitas batalhas, tinham adotado uma visão fortemente pragmática e realista, atenta às mudanças na distribuição do poder e a potenciais ameaças ou aliados. Não por acaso Mao, no final do encontro, lamentou-se de saber pouco dos EUA e afirmou que seria útil que, como resultado desta reaproximação, fosse possível enviarem professores “sobretudo de história e de geografia”.

Nas palavras de Nixon, a pergunta fundamental era: “qual é o maior perigo para vocês [China]: a União Soviética ou os EUA?” E prosseguiu: “devemos perguntar-nos porque é que a União Soviética tem mais tropas na fronteira convosco do que na Europa Ocidental”.

Nixon, por sua vez, insistiu nesse encontro com Mao que o fundamental era concordarem “numa visão de conjunto do Mundo e das grandes forças que o condicionam”. E em face disso perceber os interesses vitais dos respetivos países e procurar convergências entre eles. De acordo com Nixon essa convergência realista de interesses e ameaças tinha um nome: a União Soviética e o seu crescente poderio militar. Mao, genericamente, concordou. Em face dessa convergência fundamental de ameaças e interesses, os detalhes seriam depois tratados por negociadores experientes: Kissinger e Zhou Enlai.

As implicações da rutura e da crescente tensão entre a União Soviética pós-Estaline e a China comunista são, efetivamente, a chave para perceber esta surpreendente inversão de alinhamentos. Nas palavras de Nixon, a pergunta fundamental era: “qual é o maior perigo para vocês [China]: a União Soviética ou os EUA?” E prosseguiu: “devemos perguntar-nos porque é que a União Soviética tem mais tropas na fronteira convosco do que na Europa Ocidental”. Mao, sem dar parte fraca, basicamente anuiu. Aliás, o estudo que o líder chinês tinha encomendado a um grupo de marechais veteranos, na sequência do conflito fronteiriço com a União Soviética, para legitimar a sua opção de conversar com Nixon, apontava no mesmo sentido.

Estima-se, efetivamente, que a União Soviética chegou a ter perto de um milhão de homens na sua fronteira terrestre com a China na Ásia Central e na Sibéria. Em 1969, os dois países tinham-se envolvido em várias escaramuças sangrentas em territórios disputados. E a União Soviética terá mesmo considerado uma ofensiva militar mais séria, até, potencialmente, visando o incipiente arsenal nuclear chinês (inaugurado em 1964), tendo sondado os EUA a esse respeito. Mao terá levado tão a sério a ameaça militar soviética que chegou a ordenar à maioria dos membros do governo e aos principais líderes comunistas que abandonassem Pequim e preparassem a resistência pela guerrilha por todo o território chinês. Para Nixon, a aproximação com a China tinha a vantagem de atemorizar a União Soviética, o principal rival dos EUA na disputa global que se arrastava desde 1945 e ficou conhecida como a Guerra Fria.

12 de dezembro de 1971. Na primeira foto, Nixon surge acompanhado do General Vernon Walters, com Marcelo Caetano (à esquerda). Na segunda, a saída do Air Force One nas Lajes © Mario Pereira da Silva

É esta questão que nos leva à Ilha Terceira, mais concretamente a uma hoje quase esquecida cimeira, em 13 de dezembro de 1971, entre o Presidente Nixon e o  Presidente francês Georges Pompidou. Marcelo Caetano, como chefe do governo português, serviu de anfitrião. Mas Nixon e Pompidou quiseram, sobretudo, aproveitar a localização mediana dos Açores para reunirem em terreno neutro, mais concretamente, no Palácio da Junta de Governo, no coração da bela Angra do Heroísmo. Ali, no meio do Atlântico, um dos seus principais temas da conversa foi a distante China. Nixon referiu que o antecessor de Pompidou, o general de Gaulle, por quem tinha grande admiração, lhe tinha aconselhado a reaproximação com a China como a melhor opção externa para os EUA. Pompidou concordou e afirmou que a ação externa da Rússia tinha duas características: “Tal como um rio, só pára quando encontra um obstáculo” e “está constantemente obcecada com a China”. Nixon afirmou que era uma análise muito pertinente que teria em conta, provavelmente, porque já correspondia à sua própria. Um dos canais exploratórios usados nesta reaproximação passou precisamente por Paris, pelo embaixador da China comunista em França e membro do Comité Central, Huang Chen, contactado por Kissinger através do amigo comum, Jean Santenay, veterano da Resistência e de outros contactos secretos com o Vietname do Norte.

Nixon na China contém lições úteis para hoje?

Que balanço se pode fazer passadas cinco décadas, desta viagem história de Nixon? Não há dúvida de que a reaproximação entre a China e os EUA foi um fator muito importante de pressão sobre o Kremlin, que ajuda a explicar o desfecho da Guerra Fria, com o colapso final da União Soviética. No entanto, hoje, surgem algumas questões: será que os EUA pagaram ganhos de curto prazo – a derrota da União Soviética e a promessa sempre adiada do pleno acesso ao gigantesco mercado chinês – com um preço demasiado alto no longo prazo – com a consolidação da China como a grande potência, capaz de suplantar os EUA?

O protegido de Zhou Enlai e sucessor de Mao, Deng Xiaoping, usou de forma hábil e muito deliberada a aproximação aos EUA para conseguir os fundos e o conhecimento para modernizar a economia e a tecnologia chinesas como forma de concretizar o grande sonho da sua geração: tornar a China novamente uma grande potência.

Há dez anos havia muitas vozes no Ocidente que consideravam que um segundo elemento fundamental desta reaproximação – a abertura e modernização da economia chinesa – tinha trazido enormes benefícios para a economia global, e encerrava a promessa de uma crescente liberalização não apenas económica, mas, também, política da China comunista. A repressão em Tianamnen, em 1989, teria sido um recuo trágico, mas temporário, nesse caminho para a convergência inevitável entre a China comunista e o Ocidente liberal, em linha com o que tinha acontecido com o antigo bloco soviético na Europa. Em suma, todo o processo iniciado por Nixon e Mao teria sido claramente controlado pelos EUA, que mais teria beneficiado dele. Hoje essa avaliação tem, no mínimo, de ser questionada.

A aposta estratégica de longo prazo, atualmente, aparece como tendo sido muito mais favorável à China comunista, que está à beira de se tornar a primeira economia mundial, é o segundo maior investidor em capacidades militares a nível global, e compete pela liderança tecnológica em áreas chave como a inteligência artificial. O protegido de Zhou Enlai e sucessor de Mao, Deng Xiaoping, usou de forma hábil e muito deliberada a aproximação aos EUA para conseguir os fundos e o conhecimento para modernizar a economia e a tecnologia chinesas como forma de concretizar o grande sonho da sua geração: tornar a China novamente uma grande potência.

Mesmo o famoso Comunicado de Xangai está hoje em crise. Pode ser visto como uma forma de a China comunista ganhar tempo para modernizar as suas Forças Armadas de tal forma que, hoje, tem alguma credibilidade a ideia de uma tentativa de a China continental tomar Taiwan pela força num futuro próximo. Desse ponto de vista, a concessão feita nesse documento de retirada gradual de forças militares norte-americanas de Taiwan enfraqueceu a capacidade dos EUA de dissuadir um eventual ataque contra a ilha, que se transformou num oásis de democracia à chinesa.

Nixon and Chou-En-Lai

Bettmann Archive

Porém, num dos paradoxos em que a estratégia abunda, a solução para o problema criado por Nixon pode ser o próprio exemplo de Nixon. Kissinger ainda está ativo, quase com 100 anos, e defende a aposta pelos EUA numa nova diplomacia triangular entre Pequim e Moscovo. Qual é atualmente a principal ameaça aos interesses dos EUA? Se a resposta é a próspera e inovadora China, e já não, como era o caso em 1972, a Rússia, territorialmente diminuída pelo colapso da União Soviética, estagnada e em quebra demográfica acelerada, então os EUA deviam dar prioridade a separar a Rússia da China, privilegiando as relações com Moscovo como forma de pressionar Pequim, independentemente de maiores ou menores simpatias ideológicas.

O que é claro é que a passagem de Nixon pela política norte-americana e global foi suficientemente marcante para deixar dois legados no nosso vocabulário político. O primeiro é o do escândalo por excelência – Watergate – que acabou por destruir a sua presidência. De tal forma se tornou sinónimo de escândalo que qualquer evento político polémico passou a utilizar o sufixo “gate”, veja-se o exemplo atual do dito “Party-gate” do primeiro-ministro britânico Boris Johnson. O segundo é a expressão “Nixon goes to China”, que entrou no vocabulário diplomático global, como sinónimo de uma iniciativa surpreendente, arriscada, mas brilhante, de uma inversão de alianças inesperada ajustada às exigências de uma boa leitura das dinâmicas da estratégia global.

Se em 1970 a China, apesar da sua enorme população, era a 11ª economia mundial, hoje essa posição é ocupada pela Rússia…  O que parece evidente é que os EUA, hoje como em 1972, precisam de novos parceiros e de maior flexibilidade na sua ação externa, para compensar uma relativa perda de poder num mundo onde abundam rivais e desafios. Até onde estarão os norte-americanos dispostos a levar o pragmatismo que seria necessário para isso?

Assine por 19,74€

Não é só para chegar ao fim deste artigo:

  • Leitura sem limites, em qualquer dispositivo
  • Menos publicidade
  • Desconto na Academia Observador
  • Desconto na revista best-of
  • Newsletter exclusiva
  • Conversas com jornalistas exclusivas
  • Oferta de artigos
  • Participação nos comentários

Apoie agora o jornalismo independente

Ver planos

Oferta limitada

Apoio ao cliente | Já é assinante? Faça logout e inicie sessão na conta com a qual tem uma assinatura

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.

Assine por 19,74€

Apoie o jornalismo independente

Assinar agora