O diretor-executivo do Serviço Nacional de Saúde (SNS), Fernando Araújo, deixou esta terça-feira o aviso de que, sem acordo entre o governo e os médicos, o mês de novembro, que se aproxima a passos largos, pode ser o “pior mês” da história dos 44 anos do SNS. O previsível aumento da afluência às urgências (provocado pela chegada do tempo frio e das infeções respiratórias) e o alargamento à zona de Lisboa da recusa dos médicos em fazerem mais horas extra podem levar ao encerramento de mais serviços de urgência, deixando dezenas de milhares de pessoas sem resposta, e prejudicar também a atividade assistencial programada, nomeadamente as cirurgias. Vários médicos (entre os quais um responsável sindical e o bastonário da Ordem dos Médicos) ouvidos pelo Observador prevêem uma “catástrofe” e apontam o dedo à falta de medidas preventivas por parte do Ministério da Saúde e da Direção Executiva do SNS.
“Chegados aos meses de novembro e de dezembro, e sem um acordo, a situação vai complicar-se. Com as infeções respiratórias e a dificuldade de acesso aos médicos de família, vai ser muito grave”, diz ao Observador o presidente do Sindicato Independente dos Médicos, Jorge Roque da Cunha. Já o ex-ministro da Saúde Fernando Leal da Costa realça que “o SNS está em degradação absoluta e continuada” e antecipa que “os problemas nas urgências serão maiores em novembro e em dezembro será ainda pior”.
Escusas a horas extra começam a atingir hospitais de Lisboa em novembro
A somar a isto, já a partir do início de novembro, as minutas de escusa à prestação de mais trabalho extraordinário entram em vigor em vários hospitais da Grande Lisboa. “Há uma espiral de deterioração que atinge o pico em novembro. A catástrofe que temos tido no Minho [onde a escusa dos médicos a mais horas extra se faz sentir com muita intensidade há semanas] e no norte do país está a chegar a Lisboa e vai atingir a região em pleno a partir de novembro, quando as minutas entrarem em vigor”, avisa o intensivista Carlos Meneses-Oliveira, em declarações ao Observador. “A conjugação do aumento das doenças respiratórias e o alastrar das escusas a Lisboa faz temer o pior”, sublinha o médico, que é também um dos porta-vozes do movimento Médicos em Luta.
Na região de Lisboa, e como o Observador já tinha avançado, as escusas já estão a efetivar-se em vários hospitais, sendo que, em novembro, a situação vai piorar. No Hospital de Santa Maria, 10 dos 14 cirurgiões já entregaram as minutas de escusa a mais trabalho extra, a que se juntaram todos os internos de Cirurgia.
No Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, pelo menos 10 cirurgiões estão indisponíveis para trabalharem para lá do horário normal, segundo fonte dos Médicos em Luta. Já no Garcia de Orta, em Almada, “as minutas entregues produzem efeitos a partir de 20 de outubro, no Serviço de Urgência Geral, e do mês de novembro, no caso da Cirurgia Geral, da Pediatria e da Neurologia”, segundo informação prestada ao Observador pelo hospital.
O efeito bola de neve dos pedidos de escusa
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Hospital de Santa Maria
- 10 dos 14 cirurgiões já entregaram as minutas de escusa;
- Todos os internos de Cirurgia entregaram as minutas.
Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental
- Pelo menos 10 cirurgiões indisponíveis para trabalharem para lá do horário normal.
Garcia de Orta
- “Minutas produzem efeitos a partir de 20 de outubro, no Serviço de Urgência Geral, e do mês de novembro, no caso da Cirurgia Geral, da Pediatria e da Neurologia”, refere o hospital.
Amadora-Sintra
- Número indefinido de médicos internistas entregaram as escusas;
- Constrangimentos esperados, na próximas semanas, também na Anestesiologia, Ginecologia e Obstetrícia e Cuidados Intensivos.
Hospital Beatriz Ângelo
- Todos os médicos do Serviço de Medicina Intensiva apresentaram escusa e não farão mais horas extra a partir de novembro.
Região Norte
- Várias urgências fechadas e outras condicionadas há pelo menos três semanas. Não estão previstas melhorias.
No caso do Amadora-Sintra, um número indefinido de médicos internistas já entregaram as escusas e, segundo o movimento Médicos em Luta, esperam-se constrangimentos, na próximas semanas, também na Anestesiologia, Ginecologia e Obstetrícia e Cuidados Intensivos. No Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, todos os médicos do Serviço de Medicina Intensiva já apresentaram escusa e não farão mais horas extra a partir de novembro, confirma Carlos Meneses-Oliveira.
“O que a administração do hospital está a fazer é reduzir o número de camas, o que terá um impacto nas cirurgias programadas. Muitas precisam de camas de Cuidados Intensivos”, diz o intensivista, que estima que vá existir “falta de resposta em várias urgências, serviços de cuidados intensivos, e serviços de prevenção (como radiologia, gastroenterologia)”.
“Os serviços de Medicina Intensiva são de uma grande sensibilidade e muito importantes para o doente crítico, não há outra alternativa. Se começam a encerrar camas em UCI, será uma situação grave”, alerta o bastonário dos Médicos.
“Sabemos que a Pediatria do Santa Maria vai começar a colapsar no início de dezembro, na Estefânia duas semanas depois. As urgências de cirurgia dos hospitais centrais já estão a entrar em rutura, porque sem as horas extra não se conseguem compor as equipas”, sublinha o especialista.
A norte, onde a situação é mais grave e onde há várias urgências fechadas e outras condicionadas há pelo três semanas, não se preveem melhorias.
Médicos desviados das consultas para as urgências. “É um círculo vicioso”
Temendo a falta de médicos para completar as escalas dos serviços de urgências, várias administrações hospitalares estão a desviar os médicos da atividade programada para os serviços de urgência, alerta o bastonário da Ordem dos Médicos, naquilo que classifica como um “círculo vicioso, absolutamente destruidor”. “Muitos dos médicos que trabalham nos serviços estão a ser deslocados para as urgências. Está a acontecer em vários hospitais. Deixa de haver consultas, cirurgias programadas e visitas às enfermarias”, diz ao Observador Carlos Cortes.
As listas de espera para consultas e cirurgias vão aumentar, avisam os médicos, porque muitos clínicos estão já a ser desviados para os serviços de urgência. E, inevitavelmente, os adiamentos da atividade programada vão repercutir-se na saúde das populações, levando a um aumento do recurso à urgência — o tal círculo vicioso. “O adiamento da atividade assistencial vai fazer com que as pessoas chegam aos serviços de urgência com mais problemas — por exemplo, não havendo uma cirurgia a uma vesícula, é expectável que o problema se complique e tenha necessidade de um tratamento emergente”, antecipa Jorge Roque da Cunha.
“Muitos hospitais na periferia de Lisboa estão já em pré-colapso e isso faz com que haja uma referenciação para os hospitais centrais — Santa Maria já está em ficar sem capacidade. Quando as ambulâncias fizerem fila à porta do Santa Maria, o governo vai perceber que há um problema”, alerta Carlos Meneses-Oliveira.
Os médicos ouvidos pelo Observador afirmam que a situação atual do SNS era expectável e que, apesar dos avisos, o Ministério da Saúde (mas também a Direção Executiva do SNS) não tomaram medidas para evitar o panorama atual. “Isto era previsível. Muitos médicos estão a sair do SNS, há anos, alguns vão para o privado e outros emigram“, lembra o intensivista Carlos Meneses-Oliveira.
O presidente do Sindicato Independente dos Médicos recorda que aquela estrutura sindical tem vindo a alertar, há pelo menos dois anos, para a degradação do SNS. Os problemas, que antecipavam um cenário de colapso (como aquele com que o país está agora confrontado) foram-se sucedendo, diz Roque da Cunha. “Tivemos problemas com os serviços de Obstetrícia em Lisboa, depois com a entrega de centenas de escusas de responsabilidade por parte dos médicos, depois com a demissão dos chefes das equipas de urgência dos hospitais Fernando da Fonseca, Beatriz Ângelo, Garcia de Orta, São Francisco Xavier e as intermitências das urgências um pouco por todo o país”, lembra o responsável.
Contratação de médicos poderia ter evitado rutura das urgências
“Com as reformas dos médicos e com a incapacidade de contratar mais clínicos, era previsível que a situação se complicasse”, sublinha, acusando o governo de não ter apresentado “nenhuma medida para mitigar a situação”. A principal teria sido a contratação de novos médicos, que compensassem as saídas do SNS (mais de duas mil nos últimos dois anos) e que reforçassem a capacidade de resposta.
“O governo devia ter apostado nos profissionais e dignificado a sua carreira. Não é fazendo isso agora que se vai resolver o problema, mas seria uma mensagem importante para que os médicos do SNS percebam que o objetivo é contratar mais médicos e não aumentar o número de horas extra — há médicos a trabalhar 80 horas por semana, é um esforço desumano”, sublinha o bastonário, Carlos Cortes, lembrando que “todas as soluções estão do lado do governo para que a situação não seja tão grave como está previsto”. “Os nossos governantes têm esquecido os médicos”, completa.
“Se o problema tivesse sido resolvido há um ano, as condições não se tinham degradado. O governo não soube avaliar o problema, houve uma grande incompetência. Não fizeram nada”, diz Fernando Leal da Costa, acrescentando que “os médicos estão irritados e percebem que, da parte do governo, nada tem sido feito para melhorar as suas condições”.
O médico hematologista, que foi ministro da Saúde no segundo governo de Pedro Passos Coelho, garante que “há uma rutura emocional”. “Os médicos sempre fizeram muitas horas extra e suportavam. Agora deixaram de suportar porque há uma relação com o patronato que é de profunda repulsa e de incompatibilidade com quem os governa”, realça Leal da Costa. “Todos os gritos de alerta foram manifestados por quem está no terreno”, reforça a internista Carla Araújo.
“Estou muito preocupado não só por causa das urgências, mas porque a cada dia é mais complicado trabalhar no SNS, há cada vez menos médicos. As pessoas estão a ir para o privado e não temos capacidade de renovar os quadros. A situação é muito preocupante. Não é possível trabalhar assim com qualidade e segurança”, diz Leal da Costa.
Tanto o Sindicato Independente dos Médicos como a própria Ordem dos Médicos atribuem uma parte da responsabilidade à Direção Executiva do SNS. “Quem está no governo há oito anos devia ter tomado medidas preventivas. E a Direção Executiva poderia também ter antecipado esta situação, forçando o governo a chegar a acordo com os sindicatos”, diz o dirigente sindical, lembrando que os médicos do SNS fizeram 5,2 milhões de horas extra o ano passado, “o que é insustentável”.
“A Direção Executiva não resolveu nenhum dos problemas do SNS”, diz bastonário dos médicos
“A Direção Executiva não resolveu nenhum dos problemas do SNS. Os problemas mantêm-se e até se agravam. Não podemos fazer um balanço positivo”, diz Carlos Cortes, acusando a entidade liderada por Fernando Araújo de “ser incompetente na resolução dos problemas”. “A Direção Executiva estava morta ainda antes de nascer. Não é uma solução, é um problema que o governo arranjou e do qual não sabe sair e que vai contribuir para agravar o afundamento do SNS”, defende Fernando Leal da Costa.
Segundo Fernando Araújo, uma das próximas medidas a serem tomadas é a concentração das urgências na região de Lisboa, nomeadamente da urgência pediátrica, à semelhança do que já é feito no Grande Porto (com a resposta concentrada no Hospital de São João) desde 2008.
Na entrevista que concedeu ao jornal Público, Fernando Araújo que afirmou que os médicos têm de reclamar direitos, “mas de uma forma que seja eticamente irrepreensível”. Carlos Cortes critica as palavras do diretor do SNS. “Não tem havido ética da parte de quem dirige nem preocupação com os médicos e com os doentes”, diz. “Há uma certa teimosia por parte do ministro da Saúde e há quem tenha a ideia de nos atar na nossa própria ética, como que dizendo ‘vocês são tão importantes que não têm importância nenhuma, porque não podem fazer nada’”, critica também o intensivista Carlos Meneses-Oliveira.
Na sexta-feira, há nova reunião entre sindicatos e Ministério da Saúde, naquela que pode ser a última oportunidade de evitar a rutura dos serviços do SNS já a partir de novembro. “Está nas mãos do governo agora. Temos algum ceticismo em relação à reunião de sexta-feira, mas penso que o desenrolar dos acontecimentos pode fazer com que o governo possa aceitar a nossa proposta”, diz o presidente do Sindicato Independente dos Médicos, revelando que, pela primeira vez, os dois sindicatos (o SIM e a Federação Nacional dos Médicos) vão apresentar uma proposta conjunta a Manuel Pizarro. “Todas as soluções estão do lado do governo, para que a situação não seja tão grave como está previsto”, realça Carlos Cortes.