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A garantia foi dada pelo próprio Ministério Público: “Serão investigados todos os factos que vieram a público nos últimos dias”. Mas o que são “todos os factos”? É que as ameaças feitas a um grupo de deputadas e ativistas são apenas uma parte da história. No passado fim de semana, a fachada da associação SOS Racismo já tinha sido vandalizada. Mais: ao longo do mês de junho vários locais na Área Metropolitana de Lisboa tinham sido alvo de ataques com mensagens racistas e xenófobas.
Afinal, o que se está a passar? Quem são as pessoas detrás destes alegados ataques? Haverá dois grupos envolvidos: a Nova Ordem de Avis — Resistência Social é um e o Resistência Social é outro. O nome parcialmente igual é uma coincidência ou serão um só? O que está a ser feito para se chegar à identidade dos envolvidos? Nove perguntas e respostas para perceber a polémica e por que razão se está a falar de racismo.
1 Que ameaças são estas e quem ameaçou quem?
Um email com ameaças chegou na noite da passada terça-feira, 11 de agosto, à caixa de correio eletrónico de uma dezena de pessoas: entre elas as deputadas do Bloco de Esquerda Mariana Mortágua e Beatriz Gomes Dias, a deputada não inscrita Joacine Katar Moreira e o dirigente da associação SOS Racismo, Mamadou Ba. A ameaça era clara. Tinham 48 horas para rescindir das suas funções políticas e abandonar o país ou ficavam em perigo bem como os seus familiares.
“Informamos que foi atribuído um prazo de 48 horas para os dirigentes antifascistas e antirracistas incluídos nesta lista para rescindirem das suas funções políticas e deixarem o território português. Sendo o prazo ultrapassado, medidas serão tomadas contras estes dirigentes e os seus familiares, de forma a garantir a segurança do povo português. O mês de agosto será mês da luta contra os traidores da nação e seus apoiantes. O mês de agosto será o mês do reerguer nacionalista”
No final do email constavam as iniciais “NOA-RN”, de Nova Ordem de Avis-Resistência Nacional. Na lista de destinatários, além dos nomes das deputadas e o de Mamadou Ba, consta ainda o de Danilo Moreira (presidente do Sindicato dos Trabalhadores dos Call Centers), Jonathan Costa e Rita Osório (que integram a Frente Unitária Antifascista), Vasco Santos (dirigente do partido Movimento Alternativa Socialista), Luís Lisboa (membro do Núcleo Antifascista de Guimarães) e Melissa Rodrigues (membro do Núcleo Anti-Racista do Porto).
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2 Foi a primeira vez que este movimento realizou ameaças deste género?
Não. Já no início de agosto a SOS Racismo e a Frente Unitária Antifascista tinham recebido um email com ameaças, como escreve o jornal Público. Esse email era assinado pela Nova Ordem de Avis que avisava que não ia mais “aceitar a degeneração dos homossexuais e transexuais na nossa sociedade”, nem “tolerar a presença dos terroristas antifascistas nas nossas ruas e o perigo que representam para cada pessoa de bem deste país”. No final do email, deixavam a ameaça de que “a partir de hoje o medo” iria “mudar de lado”: “Para cada nacionalista preso, um antifacista será enterrado. Para cada cidadão morto, dez estrangeiros serão eliminados”.
O Público detalha ainda que ambos os emails foram enviados por meio de um serviço de correio eletrónico que não deixa registo já que o endereço a partir do qual o email é enviado tem a duração de 60 minutos até se destruir.
Entretanto, o ativista Jonathan da Costa Ferreira, da Frente Unitária Antifascista, voltou esta quinta-feira a receber ameaças, avança também o jornal Público, que adianta que o suspeito que alegadamente fez as ameaças é conhecido da PJ: um ex-comando, com conexões à extrema-direita, tendo já estado ligado aos Portugal Hammer Skins e a Mário Machado. “Sabemos onde dormes. Vamos iluminar-te o cérebro”, lê-se na ameaça.
3 Estas ameaças estão relacionadas com a manifestação na sede da SOS Racismo? E com a vandalização da fachada?
Não se sabe, o nome do grupo só coincide numa parte, chamar-se Resistência Nacional, e diz não ter nada a ver com a Nova Ordem de Avis — Resistência Social. Na noite do último sábado — três dias antes de serem enviadas estas ameaças mais recentes — uma dezena de pessoas manifestaram-se junto à sede do SOS Racismo: usavam casacos com capuz, máscaras brancas a tapar o rosto e tochas.
Na sua página do Resistência Nacional, o grupo publicou imagens da ação e explicou que o objetivo era “protestar o racismo antinacional” e fazer uma “homenagem aos polícias mortos em serviço”. “A sede do SOS Racismo recebeu hoje uma visita nossa”, podia ler-se noutra publicação.
Já no mês passado, na noite de 11 para 12 de julho, a fachada da sede da SOS Racismo tinha sido vandalizada. Com tinta, foi escrita na parede a seguinte frase: “Guerra aos inimigos da minha terra”. O dirigente da associação, Mamadou Ba, apontou o dedo à “extrema direita”, mas não é conhecida a autoria destes atos. A Resistência Nacional não os reivindicou, ao contrário do que aconteceu na manifestação de final de julho.
https://www.facebook.com/MBB1974/posts/10222965651158148
Há também que ter em conta que já durante o mês de junho vários locais na Área Metropolitana de Lisboa tinham sido alvo de ataques com mensagens racistas e xenófobas. Aconteceu na fachada Conselho Português para os Refugiados, com as mensagens “a Europa aos europeus” e “morte aos refugiados” e no mural de homenagem ao antifascista José Carvalho, assassinado por skinheads, com a frase “guerra aos inimigos da minha pátria”.
4 Não há garantias de que o grupo que enviou as ameaças seja o mesmo da manifestação? Ou que esteja ligado aos ataques do mês de junho?
Exato. Desde logo, não se conhece a autoria da vandalização da fachada da SOS Racismo no início de julho, nem das mensagens racistas e xenófobas que foram feitas em junho. Sabe-se apenas que foi a Resistência Nacional a fazer a manifestação em frente à SOS Racismo no passado fim de semana — já que o próprio grupo o confirmou e publicou imagens nas redes sociais. E também que os dois emails enviados com ameaças estavam assinados pela Nova Ordem de Avis – Resistência Nacional. Agora, não se sabe se estes dois movimentos são o mesmo.
O movimento Resistência Nacional diz que não: já veio descartar qualquer envolvimento nas ameaças e garantir que não tem qualquer ligação o grupo Nova Ordem de Avis – Resistência Nacional, apesar da coincidência parcial do nome. À RTP, a Resistência Nacional explicou que o comportamento da organização ocorre “sempre dentro da legalidade”. “Entendemos que o uso da violência em nada contribui para a nossa causa e defesa do nosso povo. Repudiamos qualquer tipo de intimidação física ou psicológica a quem quer que seja. Não são os valores que defendemos nem o caminho que entendemos ser o correto”, disseram.
5 E o que se sabe acerca destes dois grupos?
Pouco. Aliás, sobre o grupo que assina os emails com as ameaças praticamente nada. Já sobre a Resistência Nacional, sabe-se que foi criada em julho e que, segundo o jornal Público é composta por antigos elementos da Nova Ordem Social — entretanto suspensa por Mário Machado — do Partido Nacional Renovador e por membros dos Portugal Hammer Skins.
Na sua página do Facebook, o movimento explica que “pretende agregar e servir de ponte de entendimento entre todos os nacionalistas portugueses”. “O que nos move não é ódio por outros, mas o amor pelos nossos”, lê-se. O grupo detalha ainda que defende “o combate ao multiculturalismo apenas como forma de prevenir o atrito social e perda de identidade nacional” e a “ilegalização de grupos violentos de extrema-esquerda”.
6Estes acontecimentos já estão a ser investigados?
Sim. O Ministério Público anunciou esta quinta-feira que abriu um inquérito e que “serão investigados todos os factos que vieram a público nos últimos dias”, lê-se numa resposta por escrito enviada ao Observador. Esta resposta pode significar que as autoridades podem estar a investigar não só as ameaças mais recentes feitas pela Nova Ordem de Avis — Resistência Social, mas também a manifestação em frente à SOS Racismo do grupo Resistência Social no passado fim de semana. Assim, os investigadores podem estar a seguir as movimentações dos dois grupos — que podem ou não ser o mesmo.
Segundo a RTP, a PJ irá ouvir as três deputadas ameaçadas e já terá ouvido Mamadou Ba, dirigente da SOS Racismo. Todas as contas em redes sociais e páginas do movimento na internet estão a sob o escrutínio dos inspetores da PJ.
7 Que crime pode estar em causa e quais as penas que podem ser aplicadas?
A investigação ainda está numa fase muito embrionária, mas tudo indica que estará em causa pelo menos o crime de ameaça, punido com prisão até um ano ou multa até 120 dias. O Código Penal prevê que “quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias“.
8Marcelo não quer radicalização do tema, mas ele radicalizou nas reações
“Tolerância zero” — foi o pedido do Presidente da República, ao mesmo tempo que pediu também “sensatez” na resposta. Marcelo Rebelo de Sousa considerou que é “fundamental ser firme na afirmação dos princípios do estado de direito democrático”, mas igualmente “saber responder com inteligência”, não fazendo “aquilo que quem promove esse tipo de escalada quer que seja feito”.
“Não há nada melhor para quem quer radicalizar e criar clima emotivo do que a radicalização desses temas”, frisou Marcelo.
Ameaça neonazi. Marcelo pede “firmeza” e “sensatez” para evitar “radicalização” no país
Mas quando o Presidente falou, já o tema tinha há muito radicalizado e viralizado. Ferro Rodrigues foi o primeiro a repudiar as ameaças e lembrou, numa nota enviada à Lusa, que “a tentativa de intimidar deputados e ativistas políticos reveste-se de gravidade suficiente para que, enquanto Presidente da Assembleia da República, não possa — nem queira — deixar de a condenar, manifestando também todo o meu apoio aos visados”.
A ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva, também lamentou que se tenha assistido nos últimos tempos a um “agravamento dos discursos de ódio, de coação e ameaças” e lembrou que a“ameaça a estas deputadas e dirigentes é uma ameaça à própria democracia.”
A vice-presidente da bancada parlamentar do PS, Constança Urbano de Sousa, considerou as ameaças “intoleráveis na sociedade portuguesa” e pediu que as leis existentes sejam aplicadas “com determinação.
O presidente da concelhia de Lisboa do PSD, Luís Newton, defendeu que o seu partido “jamais, em momento algum, poderá alimentar sequer a ideia de normalizar discursos extremistas”.
O PAN pediu uma punição “exemplar” para “crimes de ódio.
O PCP defendeu uma “intervenção determinada e firme de combate à intolerância e às ações de confronto com valores e princípios democráticos e com a própria Constituição da República”.
O líder do CDS disse que “grupelhos de extrema-direita não podem ser tolerados em Portugal”.
Em sentido contrário, só o presidente do Chega desvalorizou as ameaças e lamentou que ninguém fique “alarmado” com as ameaças que ele e o seu partido recebem.
9 Mas por que razão estamos a falar de racismo?
Recuar à última segunda-feira de maio pode ajudar a perceber por que razão chegámos até aqui. Foi nesse dia que o norte-americano George Floyd morreu sufocado depois de oito minutos com o joelho de um polícia de Minneapolis, nos Estados Unidos, sobre o seu pescoço. Este polémico caso e a onda de contestação a ele associado levou a manifestações conta o racismo em todo o mundo — incluindo em Portugal. Em resposta às milhares de pessoas que se juntaram contra o racismo em várias cidades portuguesas, o Chega convocou também uma manifestação para defender que “Portugal não é racista”.
Os ânimos voltaram a exaltar-se no final de julho quando o ator Bruno Candé foi assassinado a tiro, na rua, em plena luz do dia por um homem que terá proferido insultos racistas antes de disparar — e com quem manteria discussões e até agressões (não se sabe se mútuas) dias antes do crime.
As ameaças desta semana farão com que o tema do racismo permaneça na ordem do dia.