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PEDRO JORGE CASTRO/OBSERVADOR

PEDRO JORGE CASTRO/OBSERVADOR

Os alunos que têm aulas na rua para fugirem mais depressa. O medo e a luta em Namaua, a terra onde nasceu o presidente moçambicano

Ao primeiro sinal suspeito, os miúdos fogem da aula ao ar livre. O chefe da polícia foi abater insurgentes a 10 km. E um sobrinho de Filipe Nyusi pede remédios para a malária. O Observador em Namaua.

“Expressões para manifestar alegria e satisfação” é o tema da aula de português da 3ª classe, apresentado a giz no quadro através desta composição:

“O Mamudo, a Salima, o Cafú e a Zita vão ao piquenique. A Zita leva bolo, a Salima leva batata, o Cafú leva banana e o Mamudo leva sumo. No piquenique, cada menino dá ao amigo o que leva. A Zita come logo a batata da Salima.
— Salima, como é boa a tua batata!”

Alegria, satisfação e, para a maioria dos alunos, tantos alimentos diferentes só mesmo no quadro.

O quadro está pendurado numa árvore. Duas dezenas de miúdos com 8, 9 anos sentam-se no chão. Há apenas duas carteiras de madeira. Estão a ter a aula ao ar livre, a 50 metros do edifício da escola, de propósito para poderem escapar mais depressa no caso de um ataque súbito dos insurgentes a Namaua, a aldeia onde nasceu o presidente moçambicano, Filipe Nyusi, no distrito de Mueda, em Cabo Delgado.

Aliás, nem é preciso ser um ataque, basta aperceberem-se de um barulho estranho, de um movimento suspeito ou do aparecimento de uma carrinha Mahindra, a viatura usada pelos militares moçambicanos — mas também por isso frequentemente roubada e usada pelos insurgentes.

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“Os encarregados de educação não permitem que as crianças venham à escola, ficam com medo: ‘Se acontecer, o meu filho não vai à escola, se não vou perder o meu filho’. Nesses dias vem um número reduzido. Os outros ficam em casa, atentos à situação, e os pais só os deixam voltar à escola dois ou três dias depois”

“Os encarregados de educação não permitem que as crianças venham à escola, ficam com medo: ‘Se acontecer, o meu filho não vai à escola, se não vou perder o meu filho’. Nesses dias vem um número reduzido. Os outros ficam em casa, atentos à situação, e os pais só os deixam voltar à escola dois ou três dias depois”.

Apesar de estar a dar a aula no exterior, o professor primário, Raimundo Matala, 29 anos, apresenta-se de gravata por baixo da bata branca. Não há frase em que não use as palavras medo ou fugir: “Estamos aqui na escola, mas com medo, porque a situação está a decorrer muito perto em Mocimboa da Praia. Quando há movimentos estranhos, as crianças e os outros colegas ficamos com medo. Quando percebemos que em Palma ou em Nangade estão a perturbar o ambiente, ficamos com aquele medo. Quando aparecem aqui perto carros Mahindra, as crianças costumam fugir da sala de aula”.

Como é que Raimundo Matala ajuda as crianças a lidar com este pavor de um ataque? “O professor fica atento a tudo e diz aos alunos: ‘Vocês devem ficar atentos. Se houver um movimento estranho em qualquer lado, é melhor alertarem para o professor ver se são os homens armados ou a nossa força local’.”

Por baixo do quadro, encaixada na árvore, está uma caixa de máscaras para proteger os alunos da Covid-19

PEDRO JORGE CASTRO/OBSERVADOR

Ainda são muito pequenos para se notar o medo nas composições, mas têm consciência de tudo o que está a acontecer: “Os meninos chamam-lhes AlShabaab, já sabem que são os inimigos e conseguem ver vídeos com as imagens dos ataques”.

Há 1.700 alunos inscritos, mas o número dos que efetivamente aparece nas aulas tem sido inconstante. De cada vez que há ataques ali perto, ou mesmo boatos sobre a iminência de ataques, os pais jogam pelo seguro, explica o professor. “Os encarregados de educação não permitem que as crianças venham à escola, ficam com medo: ‘Se acontecer, o meu filho não vai à escola, se não vou perder o meu filho’. Nesses dias vem um número reduzido. Os outros ficam em casa, atentos à situação, e os pais só os deixam voltar à escola dois ou três dias depois.”

O chefe da força local foi ajudar na batalha e diz que abateram 18 inimigos

O ex-combatente Maurício João Mpakalyamba, 72 anos, é o chefe da força local, não só de Namaua, mas de toda a área nascente do distrito de Mueda. Foi eleito pelos chefes das outras localidades, o que mostra pelo menos o reconhecimento dos pares.

Quando houve ataques a dez quilómetros de Namaua, no distrito vizinho de Muidumbe, João Mpakalyamba correu para lá. “Vou assistir de perto a qualquer movimento que exista. [Nessa aldeia], os homens entraram de manhã e começaram a atacar. Eram muitos. Nós, os da força local, juntámo-nos aos militares da Unidade de Intervenção Rápida, dividimos tarefas de acordo com o plano e enfrentámo-los.”

Maurício João Mpakalyamba, ex-combatente e chefe da força local: "Não se pode deixá-los entrar e sair de qualquer maneira"

PEDRO JORGE CASTRO/OBSERVADOR

A batalha foi rápida, assegura: “Já estávamos cara a cara. Estive a dez metros deles. Pouco depois de termos entrado, ouvimos um barulho de carros, eram eles a recuar e a retirar o material que tinham. Como a situação foi quente, veio um helicóptero ajudar-nos e bombardeá-los quando já estavam a voltar para onde vivem em Mocímboa. Os carros que levavam já iam danificados. Conseguimos atingir o objetivo”.

O chefe diz que contabilizaram 18 insurgentes abatidos nessa batalha, mas não conseguiram prender nenhum inimigo vivo, nem recolher os cadáveres. “Eles levam os corpos para os enterrar”, justifica. Também houve baixas do lado das tropas moçambicanas. “Um da força local, que estava lá [quando chegaram os insurgentes], foi atingido duas vezes e perdeu a vida. Era veterano como eu. Mataram civis, morreram duas ou três pessoas. E fizeram dois feridos nas forças de segurança, que foram levados para o hospital de Mueda e já estão bem de saúde.”

— Que armas é que os elementos da força local usam quando se juntam aos combates?
— Temos armas ligeiras. Mas não são as armas indicadas. Devíamos ter bazucas e metralhadoras.

— Se os insurgentes entrarem em Namaua, é logo avisado?
— Vamos tentar que sim. Estou firme. Não se pode deixá-los entrar e sair de qualquer maneira.

— Dá medo estar à frente deles?
— (Gargalhada) Medo eu tenho… Mas como a situação está nas minhas mãos, tenho de enfrentar.

— Quando o presidente Filipe Nyusi visita Namaua, fala com ele?
— Sim. Quando chega aqui, convoca-nos e fazemos conversas com ele. Pergunta como estamos e nós informamos sobre a nossa situação.

Socorrista e sobrinho do presidente: “Posso fugir para o mato, mas hei-de regressar”

Filipe Nyusi nunca entrou, nem como cliente nem como presidente, na Cabelaria Entra Sujo Sai Limpo, à beira da estrada principal que atravessa Namaua. O dono do estabelecimento, Duarte Cristiano, 26 anos, tem pena. Até porque já se nota uma diminuição do movimento, desde que algumas pessoas saíram da aldeia. Ele não fugiu, para já, mas não tem vergonha de assumir que teve medo quando os ataques se aproximaram — e que não terá condições para fazer frente aos insurgentes: “Não vou conseguir lutar com eles”.

Quem pára frente à Cabelaria, de mota, é Zacarias Martins, 48 anos, que se identifica como “agente polivalente de saúde” ou socorrista. Diz que não foi ajudar a socorrer os feridos do combate na aldeia vizinha, porque não tinha medicamentos. Namaua acolheu entretanto 710 deslocados que fugiram dos distritos invadidos e Zacarias também não lhes consegue prestar a assistência desejável. “Temos muitos doentes com malária e diarreias, mas não temos medicamento para os tratar. Recebemos de três em três meses o medicamento para a malária, são 85 medicamentos, não chega para nada. Precisava de mais dois ou três kits por mês”.

Zacarias Martins, sobrinho do presidente, na sua mota, junto à Cabelaria Entra Sujo Sai Limpo, onde Duarte nota uma quebra de clientes

PEDRO JORGE CASTRO/OBSERVADOR

O socorrista também tem medo, mas não tenciona deixar a aldeia, pelo menos a título definitivo: “Posso fugir para o mato, mas hei-de regressar. Em Namaua temos o grupo da força dos nossos velhos, veteranos combatentes, e eles vão defender-nos”.

A conversa com  Zacarias teve depois uma evolução inesperada:

— Conhece pessoalmente o presidente, Filipe Nyusi?
— Sim, conheço. Nasceu aqui, viveu aqui, não ficou muito tempo depois de criança. É daqui.

— Continuou a vir cá depois de ser ministro da Defesa e Presidente?
— Sim, vem cá e fala com as pessoas.

— Quando foi a última conversa que teve com ele?
— Foi quando ele veio visitar a campa do tio mais velho.

— Já depois dos ataques?
— Não, foi antes dos ataques. Depois dos ataques ainda não veio.

— Quando vem cá fica numa casa dele?
— Ele tem a agenda muito preenchida para ficar aqui. Passa só a visitar e depois vai embora.

"Aqui falta muita coisa. Estamos a ver apoio para uma escola em reconstrução. Mas não temos hospital, não temos infra-estruturas."
Zacarias Martins, sobrinho do presidente moçambicano, sobre a terra onde ambos nasceram

— Ainda há em Namaua pessoas que tenham mesmo sido amigas dele?
— Sim, os familiares estão aqui. Eu sou um deles.

— É familiar dele? Qual é o seu parentesco?
— É o meu tio.

— Quantos familiares tem aqui o presidente?
— Tem muitos, os irmãos e os primos moram aqui mesmo.

— Quantos irmãos tem aqui?
— São muitos, não posso precisar. Tem irmãos, primos e tios aqui mesmo.

— O que fazem os irmãos do presidente?
— São camponeses e trabalham na machamba.

— No Natal ou noutras cerimónias encontram-se com o presidente? Passa o Natal convosco?
— No Natal do ano passado, ele mandou o governador da província de Cabo Delgado passar connosco.

— Ele não veio?
— Não.

— O que falta mais aqui em Namaua?
— Aqui falta muita coisa. Estamos a ver apoio para uma escola em reconstrução. Mas não temos hospital, não temos infra-estruturas.

— Já comentou com o seu tio que precisa de mais medicamentos para a malária?
— Ele não é para mim, é para todos os moçambicanos. É do povo moçambicano. Eu não posso pedir-lhe para vir fazer isso aqui.

“Esses malfeitores não têm nada a ver se esta é a terra do presidente”, diz a chefe

Albertina Moisés, a chefe de localidade, diz que as visitas do Presidente à terra são frequentes. “Chega aqui para se poder inteirar da situação, particularmente das zonas atacadas: ‘Tudo bem aqui?’. Conversa comigo e com o governo do distrito, mas não sobre assuntos de guerra. Sobre isso fala com os coronéis, porque são questões militares.”

O chefe de localidade equivale a uma espécie de presidente da junta, mas não é eleito, é nomeado pelo governo. Albertina era professora, antes de tomar posse deste cargo há cinco anos.

Albertina Moisés, chefe de Namaua: "Pessoas de má-fé nas redes sociais querem agitar a população. O inimigo tem várias formas de agir"

PEDRO JORGE CASTRO/OBSERVADOR

O facto de Namaua ser a terra onde nasceu o presidente pode torná-la um alvo mais simbólico para o inimigo? “Esses insurgentes ou malfeitores não têm nada a ver se Namaua é terra do presidente ou não é. Um ataque em Muidumbe ou Mocímboa também afeta o presidente, o sentimento é o mesmo”, assegura.

Albertina Moisés está muito irritada com os posts nas redes sociais (depois desmentidos com pedidos de desculpas) que avançaram que Mueda tinha sido atacada. “Houve boatos de terrorismo em Mueda e Namaua, mas não é verdade. A situação na aldeia de Namaua está controlada. Ainda não assistimos a isto”, frisa. O uso deste “ainda” mostra que pode ser só uma questão de tempo.

“Foram pessoas de má fé que meteram essa notícia nas redes sociais, querem agitar a população. O inimigo tem várias formas de agir. Fizemos palestras com a população para ficarem seguros e se manterem vigilantes: usei os meus chefes de bairro, que são os líderes comunitários”, explica.

Vivem 18 mil habitantes em Namaua e a chefe garante que ninguém fugiu: “A população de Namaua manteve-se, não houve saídas”. Parece improvável, tendo em conta a debandada verificada na vila de Mueda, capital de distrito, a 20 km de Namaua, de onde saiu muita gente, com medo dos ataques.

Padre Bento Celiano: “Queremos mais do presidente”

O padre Bento Celiano, da igreja que fica frente à administração do distrito de Mueda, só tem celebrado missas privadas com outro sacerdote (as celebrações não estão abertas ao público, por causa da pandemia), mas já distribuiu comida a mais de duas mil famílias que passaram por Mueda, ou que estão a viver nos arredores e vêm à igreja pedir. Nestes casos, vai registando as crianças, para depois tentar apoiar a compra de material escolar.

Também a família e os amigos do sacerdote ficaram preocupados na semana passada quando foi noticiado erradamente que Mueda estava sob ataque e não havia rede para confirmar a situação. “As nossas famílias ficaram sem fazer nada à espera de uma notícia não muito boa, a achar que ou fugimos e fomos para o mato; ou morremos.”

Em caso de ataque, o sacerdote acha que a Igreja não será um local de refúgio apropriado para a população: “É uma zona alvo, porque a administração, o quartel e o hospital estão perto de nós, são locais que eles atacam sempre”. O padre não se sente muito seguro em Mueda, mas não vai abandonar os crentes, a menos que não tenha alternativa. “Não tenho nenhum plano. Quando entrarem, vou tentar não me precipitar, perceber de onde vêm os tiros e ver se dá para fugir”.

Antes da pandemia, quando ainda havia missas, além de muitos militares, chegou a ter entre os fiéis da sua igreja o presidente Filipe Nyusi. Mas apesar de serem as suas origens, não sente nenhuma intervenção especial do Chefe de Estado aqui: “Como Jesus disse, mesmo que faça coisas boas pode não se notar na sua própria casa. Pode ser que ele faça alguma coisa, mas, como queremos ver mais, é difícil dizer que se note, apesar de ser o distrito do presidente. Não digo que ele não faça, mas nós queremos mais.”

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