Homilia de Rui Valério

O texto lido pelo novo patriarca de Lisboa na missa de entrada solene no Mosteiro dos Jerónimos

Iniciamos uma nova etapa do caminho pastoral e histórico da Igreja de Lisboa, enriquecidos com o incomensurável dom da esperança, da renovada força da vida nova, comunicada nos últimos tempos, seja pelo caminho sinodal diocesano, seja pelo marco indelével da Jornada Mundial da Juventude, seja pelo testemunho profético e de santidade de tantos sacerdotes, de muitos leigos, de mulheres e homens de boa vontade, ou ainda pela capacidade de efetiva cooperação com as Entidades do Estado, Civis, Militares e também pelo espírito ecuménico de diálogo com outras religiões.

A Jornada Mundial da Juventude é, de modo inegável, o tema do momento na Igreja Católica em Lisboa. O próprio Rui Valério surgiu este domingo no Mosteiro dos Jerónimos para a sua entrada solene envergando as vestes litúrgicas que o anterior patriarca, Manuel Clemente, tinha usado na missa de abertura da JMJ — um sinal dado à centralidade deste acontecimento para a Igreja Católica em Portugal. A JMJ não se esgotou na primeira semana de agosto, mas deve ser um ponto de partida que ajude a impulsionar uma nova vida para a Igreja Católica em Lisboa e no resto do país. Ao longo da sua homilia inaugural, o novo patriarca de Lisboa voltará várias vezes ao tema da JMJ, pedindo aos jovens católicos que, colhendo os frutos da Jornada, possam ser protagonistas de uma nova fase da Igreja. Nesta introdução, Rui Valério procurou sintetizar como a mudança de bispo numa diocese tem tanto de rutura como de continuidade: a Igreja em Lisboa entra numa nova fase, que é iluminada pelos acontecimentos do período anterior, protagonizado por Manuel Clemente. O novo patriarca de Lisboa dá também um enfoque especial ao diálogo ecuménico e inter-religioso: afinal de contas, é o bispo de uma das regiões mais multiculturais de um país maioritariamente católico. Em Lisboa, o bispo tem uma responsabilidade acrescida de contactar com os responsáveis das comunidades protestantes, muçulmanas, judaicas, hindus, budistas, entre outras.

Por isso, ao iniciar a missão que o Senhor me confiou, não posso deixar de expressar aqui um verbo de gratidão e de louvor — com Maria também eu digo: “A minha alma exulta no Senhor, o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador” — pelo dom de integrar uma Igreja que, desde sempre, se plasmou na entrega incondicional à missão de servir o santo Povo de Deus, e fê-lo com particular vigor com os últimos Pastores que tive a graça de conhecer e de ter como Bispos: os Patriarcas Ribeiro, Policarpo e Clemente. A este último, aqui manifesto um sentido agradecimento pelas perspetivas de abertura que soube incrementar na vivência da fé face à cultura e aos plurais dinamismos da sociedade, mas também um reconhecimento porque, desde a primeira hora do seu ministério patriarcal, imprimiu no ADN do Patriarcado, não só uma palavra, mas um movimento, uma ação de sair, de ir ao encontro. À grandeza da sua espiritualidade, devemos a eleição de Lisboa a posicionar-se, uma vez mais, como marco de um novo recomeço de vida cristã. A Jornada Mundial da Juventude não representou só um encontro de jovens do mundo inteiro. Foi essencialmente o desconfinamento espiritual da humanidade. E essa circunstância representa uma acrescida responsabilidade para não deixar esfriar a sua pujança, nem mutilar o ardor do seu dinamismo. (…)

Rui Valério torna-se patriarca de Lisboa após dez anos protagonizados pelo cardeal Manuel Clemente — que, de acordo com a tradição, não esteve presente na entrada solene do novo patriarca. Ainda assim, foi para o agora patriarca emérito que Valério reservou as primeiras palavras de agradecimento. No entender do novo patriarca, durante os últimos dez anos o cardeal Manuel Clemente — um historiador e um intelectual de reconhecida qualidade — teve não só o grande mérito de fomentar o diálogo entre a Igreja Católica e a cultura contemporânea, mas também o de imprimir à diocese de Lisboa uma característica mais missionária, em busca das periferias, combatendo a ideia do patriarca de Lisboa como “príncipe da Igreja”, rodeado de uma corte faustosa e encastelado no patriarcado. Além disso, Valério referiu a JMJ, a grande realização com que Manuel Clemente terminou o seu período como patriarca de Lisboa, classificando-a como o “desconfinamento espiritual da humanidade” — e que não deve ficar esquecida no passado, mas devem colher-se os seus frutos. Rui Valério, que nasceu nas redondezas de Fátima numa família especialmente devota de Maria, e que é ele próprio um devoto de Nossa Senhora, também incluiu no início da homilia uma referência mariana.

Só há verdadeiramente missão, ou seja, tal como foi com a entrada do Filho de Deus no mundo que o Verbo se fez Carne, também a missão da Igreja só vence os redutos limitadores da mera utopia e se torna acontecimento crístico se a Igreja empreender o caminho rumo à humanidade e com a humanidade. Com razão alguns teólogos consideram que o Concílio Vaticano II constituiu uma revolução coperniciana, porque abraçou a dinâmica de uma Igreja descentrada ou, na linguagem do Papa Francisco, abandonou a conceção de autorreferencialidade. Caros irmãos, sair e ir a Jerusalém foi gesto, foi movimento, foi ação de amor. Igreja de Lisboa, a cidade, as vilas, as aldeias, as famílias, as pessoas, cada pessoa será onde os nossos planos se farão acontecimento de vida e de salvação. (…)

O novo patriarca de Lisboa é conhecido pela sua grande capacidade intelectual e pela dedicação com que prepara os seus textos — e a densidade teológica da sua intervenção revela-se em algumas passagens da sua homilia inaugural. Mas Rui Valério não se fica pela complexidade da teologia e apresenta um programa pastoral em linha com o do Papa Francisco, que, aliás, cita neste parágrafo: a Igreja Católica tem de abandonar a autorreferencialidade, deixar de estar centrada em si própria e ser capaz de sair ao encontro das pessoas. Este abandono da autorreferencialidade é, por vezes, realmente físico: é preciso sair do conforto das igrejas e ir em busca das periferias humanas, já que é aí que, de acordo com o próprio Jesus Cristo, está a missão da Igreja. Lisboa é um território onde esta realidade é mais evidente — e Rui Valério, que como padre percorreu muitos dos caminhos dos bairros sociais mais degradados e empobrecidos dos subúrbios da capital, conhece bem o desafio. As palavras de Rui Valério são também um desafio para os perto de 500 padres do patriarcado de Lisboa: o lugar da ação da Igreja é em cada vila, cada aldeia, cada família, cada pessoa, e é preciso ir ao encontro de todos. A proposta da Igreja não pode resumir-se a ficar apenas à espera de que as pessoas se aproximem das igrejas para ir à missa — cabe à Igreja o “movimento” de ir ao encontro.

A grande esperança da Jornada Mundial da Juventude não residiu só, nem principalmente, na quantidade de jovens aqui reunidos, nem apenas no entusiasmo que, como auréola, iluminou aqueles dias, nem somente no elevado nível pastoral e evangelizador que todos nós tivemos a graça de testemunhar. Todos pudemos presenciar e testemunhar como também houve muito que morreu: morreu a vergonha de se ser Igreja, de viver enclausurado no medo de aparecer e de testemunhar a esperança que nos move, sim, é verdade, morreu a cultura do temor e ressurgiu uma Igreja de rosto erguido, sem medo de testemunhar que é na fé em Cristo que bebemos a fonte da nossa alegria e da nossa prontidão a servir, que é Ele que nos mobiliza a sair das inúmeras zonas de conforto para dar a cara pelas causas e pelo mesmo Cristo. (…)

A ideia de “recomeço” foi central na intervenção de Rui Valério, mas o novo patriarca de Lisboa não quis focar em si próprio esse recomeço. Antes, usou o acontecimento da Jornada Mundial da Juventude para afirmar que há um antes e um depois daquele momento para a Igreja Católica em Lisboa e em Portugal. Recorrendo à própria vida de Jesus para assinalar que não há ressurreição sem morte, Valério considera que a JMJ não foi apenas um momento de grande festa com 1,5 milhões de jovens: foi também um momento de “morte” para várias realidades que caracterizavam uma Igreja do passado, que permite agora um recomeço noutros moldes. Concretamente, o patriarca considera que morreu a “vergonha” de pertencer à Igreja, bem como a “cultura do temor” que marcava uma certa religiosidade do passado. O que permitiu que surgisse um novo rosto para a Igreja Católica, caracterizado pela alegria de dar testemunho da fé, sem complexos nem receios.

Sim, caminhamos todos com o Papa Francisco na laboriosa fadiga de encontrar a forma justa de dizer ao mundo de hoje que a Igreja é para todos, mas também do homem e da mulher no seu todo, na totalidade da sua identidade e condição. Morreu ainda uma forma de ser Igreja, que o Papa Francisco apelida de clericalismo e renovou-se a consciência da comunidade cristã ser a totalidade do povo de Deus. A sinodalidade, que emergiu em cada onda, mostrou que, a partir da centralidade de Cristo, todos são chamados a participar da alegria da vida nova, e do amor aos irmãos. Na Igreja todos têm lugar e devem ser acolhidos, ouvidos e respeitados. E a Igreja está aberta a essa participação. (…)

O “todos, todos, todos” de Francisco tornou-se uma espécie de slogan da Jornada Mundial da Juventude e Rui Valério evocou-o para ilustrar duas realidades. A primeira é a da premente necessidade de combater, dentro da Igreja, o problema do clericalismo — uma perversão das lógicas de autoridade e poder dentro da Igreja que, ao longo dos séculos, a foram transformando numa instituição excessivamente centrada no clero e nos poderes dos sacerdotes, ao ponto de, para muitos, o conceito de “Igreja” ter deixado de querer dizer o conjunto dos fiéis para passar a significar uma instituição composta por clérigos. O próprio Papa já apontou o clericalismo como a principal razão por trás da crise dos abusos sexuais de menores. Rui Valério procurou recentrar as coisas: a Igreja não é um conjunto de padres, mas “a totalidade do povo de Deus”. A segunda realidade que Valério quis destacar foi a de que a Igreja deve ter lugar para todos, sem usar as suas regras e ideias para excluir ninguém.

Faremos do serviço um estilo, mas também uma identidade, reafirmando-nos e apresentando-nos, como comunidade, “eis a Serva do Senhor”! Sem a disponibilidade da entrega incondicional, para servir a Deus e aos outros, não há salvação possível, nem para o mundo, nem para a mulher, que se sentirá sempre diminuída na sua condição de mulher, nem para o homem, que se sentirá sob os reptos de uma cultura consumista e concorrencial que lhe exige sempre mais a rentabilidade produtiva de uma máquina tecnologicamente avançada, nem para os vulneráveis e frágeis que sofrerão o atropelo dos poderosos. Caros irmãos e caras irmãs, acreditem-me, a esperança do mundo, e também da Igreja, não reside na expansão proselitista dos seus crentes, mas na sua capacidade de ser, ela própria, uma existência abnegada e totalmente dedicada ao serviço dos outros

Rui Valério aponta alguns dos problemas da sociedade contemporânea, como a “cultura consumista e concorrencial” que coloca a “rentabilidade produtiva” à frente da dignidade humana, e as desigualdades sociais representadas no “atropelo” dos “vulneráveis e frágeis” pelos “poderosos” — e inclui, neste lote de problemas, também as desigualdades de género. Para Rui Valério, estes problemas radicam, pelo menos em parte, na indisponibilidade humana para o “serviço” e para a “entrega incondicional”, ou seja, para colocar a dignidade humana e o cuidado do outro em primeiro lugar. O novo patriarca de Lisboa quer fazer “do serviço um estilo” e “uma identidade”. Fica apresentado, nesta frase, o seu programa pastoral para a diocese: começando por si, incentivar a comunidade cristã a entregar-se incondicionalmente aos outros. E é só assim que a Igreja deve exercer a sua missão no mundo — não através do proselistismo, mas do exemplo. Valério evoca palavras tanto de Bento XVI como de Francisco, que sublinharam, em diferentes momentos dos seus pontificados, que a Igreja não cresce por proselitismo, mas por atração.

A guerra na Ucrânia, como tantos outros conflitos mundiais já constituem, como diz o Papa Francisco, uma terceira guerra mundial aos pedaços, sintonizam-nos com a urgência da paz, uma vez que nos coloca perante a realidade de um contexto cultural atual altamente propenso para a conflitualidade. A Igreja de Lisboa tem tido, ao longo da sua história, um compromisso sério com a paz, onde se encontram não só enunciados de princípio, mas também gestos e profecia. Assim, em harmoniosa cooperação e estreita colaboração com as Autoridades do Estado, as Autarquias, Instituições civis, com as Forças Armadas as Forças de Segurança e num verdadeiro espírito ecuménico, vamos implementar no coração dos irmãos, na cidade, na relação das pessoas, no convívio das instituições, um autêntico ambiente de paz e de serenidade, pela promoção da justiça, pelo amor à verdade, e pelo empenho na solidariedade. (…)

O novo patriarca de Lisboa foi, nos últimos cinco anos, bispo das Forças Armadas e de Segurança. Nessas funções, foi o capelão-chefe das Forças Armadas portuguesas e acompanhou os militares portugueses em vários lugares do mundo, incluindo a República Centro-Africana, o Mali, a Roménia e a Lituânia. Já revelou, várias vezes, que nessas viagens encontrou a miséria dos povos em guerra. As suas viagens mais recentes (Roménia e Lituânia) aconteceram já no contexto da guerra na Ucrânia, mas a sua visão do mundo vai mais além desse conflito: Valério lembra a expressão que o Papa Francisco tem usado para descrever a existência de múltiplos conflitos armados por todo o mundo, a “terceira guerra mundial aos pedaços”, e sublinha que a Igreja tem de se sentir mobilizada pela “urgência da paz”, começando por promover um “ambiente de paz e de serenidade” nos contextos quotidianos em que a Igreja se movimenta.

Também em relação a nós, se realmente ambicionamos paróquias e comunidades cristãs que não sejam apenas estabelecimentos de serviço, tipo loja do cidadão com oferta do religioso, mas sim que sejam fontes de vida e esperança, de afetos e proximidade, então muito de tudo isso depende do modo como o sacerdote interpreta e realiza a sua existência, a sua pregação e a sua ação. Ser o que se diz e se faz. Fazer o que se é e se diz, e dizer quem se é e o que se faz – bem na esteira de Jesus Cristo – é promessa para comunidades que dão vida, enquanto se dão a si mesmas.

Neste momento, Rui Valério dirigiu o seu discurso essencialmente para as quase cinco centenas de padres da diocese de Lisboa, presentes em grande número no Mosteiro dos Jerónimos. No dia anterior, na sua tomada de posse formal na Sé de Lisboa, o novo patriarca já tinha sublinhado que um dos grandes desafios da Igreja Católica no século XXI passa por saber propor respostas a um mundo marcado pela “espiritualidade buffet” e pela “fé self-service“, em que cada um constrói a sua fé colhendo apenas os elementos que lhe convêm de diferentes propostas espirituais. A resposta a esse desafio, disse Valério, centra-se na relação pessoal e na dimensão humana da proposta cristã. Na homilia inaugural, o novo patriarca retomou o tema, afirmando que as paróquias católicas, que são a primeira linha de ação da Igreja, não podem cair na tentação de se tornarem “lojas do cidadão” da vida religiosa, limitando-se a tratar de burocracias de casamentos, batizados, funerais, catequeses, primeiras comunhões e profissões de fé. Devem, pelo contrário, ser “fontes de vida e esperança, de afetos e proximidade” para os fiéis. E isso depende, essencialmente, do próprio padre, que tem de ser mais do que um mero burocrata religioso, mas, à imagem do próprio Jesus Cristo, devem ser pastores e animadores da fé e esperança da comunidade.

Aos caríssimos jovens, seminaristas e irmãos leigos, para quem o encontro de Lisboa foi um verdadeiro kairós do Espírito, solicito, interpelo para que testemunhem, aliás, que gritem a todos nós que fogo e sopro foi esse que vós recebestes, que mensagem o Espírito Santo vos comunicou. (…) Caros jovens e leigos, hoje novamente, a Igreja necessita da vossa autenticidade, da vossa reta e pura intenção, por isso vos rogo, dizei-nos que recebestes vós nesse Cenáculo da JMJ e dizei-nos para onde quer Cristo que caminhe a sua Igreja de Lisboa. Suplico-vos, não podeis guardar para vós somente o que e o quanto recebestes no profético Pentecostes de há um mês. Reuni-vos novamente, promovei encontros entre vós e partilhai, como os apóstolos no Cenáculo, quando sobre cada um deles poisou o Santo Espírito de Cristo Ressuscitado, e dizei-nos a mensagem, partilhai a inspiração que foi derramada.

Tal como tinha feito no dia anterior, Rui Valério voltou a apontar para a Jornada Mundial da Juventude como o momento que deve impulsionar o futuro da Igreja Católica em Lisboa e em Portugal. Mas, ao contrário do que poderia esperar-se, Valério inverte os papéis: não é ele que diz aos jovens como devem viver a sua fé na sequência da JMJ. Pelo contrário, o patriarca de Lisboa exorta os jovens que participaram na JMJ a partilharem com ele próprio e com a comunidade cristã aquilo que trazem no espírito depois da Jornada Mundial da Juventude. Podem ser os jovens e os leigos os protagonistas; podem ser eles a, com base na experiência transformadora que viveram, apontar novos caminhos à Igreja. Valério compara a JMJ com o episódio do Pentecostes — em que, já depois da morte e ressurreição de Jesus, o Espírito Santo desce sobre os discípulos e, a partir daí, eles são enviados em missão. É muitas vezes considerado esse o mundo fundador da Igreja. Também a JMJ, na visão do novo patriarca, poderá ter sido um novo Pentecostes — um momento em que muitos jovens católicos poderão ter descoberto novos caminhos, recebido nova inspiração. É essa experiência que Rui Valério quer que os jovens partilhem com a comunidade, colocando-os à frente dos novos caminhos para a Igreja em Lisboa.

Que cada um de vós, se sinta como um novo Daniel, como ele tomai sempre, caros jovens, o partido de Susana, figura da Igreja. A sua é uma pureza como a pureza da Igreja que, por vezes – muitas quiçá — alguns dos próprios filhos da Igreja lamentavelmente mancharam, fazendo exatamente o contrário, o oposto de quanto fez e determinou Cristo quando disse ‘deixai vir a mim as criancinhas, pois delas é o reino dos Céus!’. E quantas vezes o reino que essas inocentes vítimas conheceram não foi o dos céus, mas do abismo, do sufoco, da destruição, do trauma. A todos prometo proximidade e empenho na esperança da cura total.

Rui Valério guardou para a reta final da homilia uma referência às vítimas dos abusos sexuais de menores no contexto da Igreja. No sábado, em declarações aos jornalistas à saída da Sé, tinha já colocado o contacto com as vítimas e um acompanhamento “sem limites” como uma das prioridades iniciais do seu mandato, mas tinha também dito, na sua intervenção, que não pretendia alongar-se com palavras que, pelo uso, já tinham perdido a força e já não tinham valor junto das vítimas. Para Rui Valério, o foco é a centralidade das vítimas e a “proximidade” da Igreja junto delas. Nesta homilia, porém, o patriarca aponta também o dedo aos abusadores, que “mancharam” a pureza da Igreja ao fazer exatamente o contrário do que Jesus quis, colocando as crianças (e, por extensão, os mais vulneráveis) no centro da mensagem cristã. Valério admite também que foram “muitas” as vezes em que houve quem tenha manchado a pureza da Igreja, apresentando às vítimas, em vez do Reino de Deus, um reino do “abismo, do sufoco, da destruição, do trauma”. Nos próximos dias será de esperar, segundo tinha já prometido Rui Valério, um encontro do novo patriarca de Lisboa com as vítimas de abusos.

Aos pobres, aos sem voz, aos excluídos, não ofereço apenas solidariedade, mas a certeza de que vós sois sempre, para a Igreja, um sinal, como ela, da presença de Cristo no meio de nós. (…) Por isso, caras e queridas irmãs e queridos irmãos, a vossa presença na diocese não nos mobilizará somente à caridade, mas a vossa presença em Lisboa é e será sempre dom e desafio aos que deambulam perdidos nas tempestades da abundância, do tédio, e sereis vós os faróis para reencontrarem, na essencialidade e pobreza da vossa vida, aquele que é Caminho, Verdade e Vida. Se outrora as inesgotáveis inquietações acerca da existência de Deus, sobre o sentido da fé, sobre o valor da Igreja eram, por norma, discutidas em areópagos mais ou menos académicos, ou de tendência intelectual, hoje, há uma dádiva incomensurável oferecida à cidade que são os pobres, imigrantes desamparados, os sem-teto, os vulneráveis, eles são rostos humanos, mas vivos de Cristo, e por isso possuidores de um alcance e profundidade que levam qualquer um a contemplar o rosto do próprio Deus.

O patriarca de Lisboa terminou a sua homilia inaugural com um apelo aos católicos para que consigam ver nos “rostos humanos” dos mais pobres o rosto do próprio Jesus Cristo. A própria mensagem do Evangelho aponta no sentido de que é no encontro com os pobres, marginalizados e excluídos que se encontra o cerne da mensagem cristã — que é a própria pessoa de Jesus Cristo. Rui Valério deixa aos diocesanos de Lisboa o desafio de o fazerem numa cidade em que abundam os problemas da pobreza, dos sem-abrigo e dos imigrantes.