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Os silêncios de Maria Bentes são agora as canções de Silly

"Miguela" é o disco de estreia de Silly, a editar a 9 de fevereiro. No estúdio que foi casa durante um ano e meio, ouvimos em primeira mão esta pop tão urbana quanto sonhadora.

Era uma segunda-feira fria de inverno, de sol gordo no céu claro. Tínhamos marcado o encontro para as 10h30, no dizplay soundlab, em Lisboa, para ouvir um álbum. Não era uma entrevista, nem uma reportagem, apenas um ato conjunto de escuta, uma mudez atenta que implica estarmos quietos mas disponíveis.

Acomodei-me no sofá, no sítio onde eles me esperavam pontuais. Ele de um lado, quedo, ela do outro, expectante. Eu entre os dois e entre as minhas mãos uma chávena de chá, dizendo AMOR. Sorvi um trago de colibri. “O amor veio servido numa chávena de chá”, pensei. Ele então fez “play” e a música começou a tocar. O disco, que era dela, demorou um ano e meio a desabrochar. Que ninguém apresse a primavera, que ela nunca tarda.

Ele é Fred Pinto Ferreira, músico de projetos como os Orelha Negra, Banda do Mar, produtor de tantas coisas belas e invulgares, como Mãos de Fogo (2022), trabalho de parceria com a poeta Regina Guimarães; ela é Silly, cantautora de 25 anos que se anunciou num murmúrio em 2021, com o EP Viver Sensivelmente, e que agora se propõe a deixar de lado a timidez para apresentar o seu primeira longa duração, Miguela.

Os dois conheceram-se em outubro de 2022. Silly foi ter com Fred para gravar apenas um tema, Água Doce, mas as águas alastraram-se para outros territórios. Tamanha cumplicidade não se podia ficar numa só canção. Começava assim a saga de Miguela, disco de 15 faixas que sai a 9 de fevereiro e é apresentado a 10, no pequeno auditório do CCB, em Lisboa (21h).

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[“Água Doce”:]

Miguela foi desenhado à beira Tejo, mas tem os sons do mar de São Miguel, ilha onde Maria Bentes nasceu e cresceu até aos 5 anos, e o cheiro quente de Serpa, terra firme alentejana para onde se mudou com os pais e os seus cinco irmãos mais novos. “Temos todos uma diferença de dois anos entre nós”, saltos bem medidos na árvore genealógica de uma família onde a música e o amor nunca faltaram. “Olha O Que O Amor Dá / Nunca se Acaba / Infinito é tudo o que há cá”, cantam juntos em Interlúdio Família, lembrando Ras Baraka a conversar com uma classe de crianças sobre a natureza do amor em The Miseducation of Lauryn Hill (1998).

O interlúdio traz consigo Herança e um arranjo de cordas e sopros de Marcelo Camelo, que nos sussurra, na memória, uma bonita alvorada de Emicida cantando “Tudo, tudo, tudo que nóiz tem é nóiz”. Mas ao contrário do tom politizado de Principia, tema do rapper de São Paulo que abre o sublime AmarElo (2019), Herança é um canto de colo, de um serão em família com o pai a tocar guitarra, a mãe a mandar beijinhos para a câmara, os cinco irmãos encavalitados “Braço com braço em nó e força do regaço”. O amor, diz Maria, é fácil e é um bom sítio para se morar.

“Estamos a finalizar o videoclip”, aponta Fred para o monitor, onde se veem sucessões de momentos registados em VHS, memórias íntimas daquelas que se põem a passar na noite de Natal. “Fizemos um vídeo low cost”, explica, até porque Água Doce e Cavalo à Solta já tinham sido lançados com investimento na produção. Havia que poupar uns trocos e, cá entre nós, artesanalmente é como Herança fica melhor.

“A Sara Tavares esteve aqui no estúdio quando gravei Fora do Meu Quarto”, revela Silly. Sara não cantou no tema, nem precisou de o fazer. “Há muito dela neste disco”, diz. Se fecharmos os olhos, ouvimos a sua voz amparar Maria no seu despontar para o mundo e a ajudá-la a encontrar-se a si nessa imensidão.

Das velhas cassetes de VHS que Silly reviu durante todo o processo de Miguela, resgatou não só imagens, como também sons. Em Fora do Meu Quarto ouvimos uma pequena Maria, com um ligeiro sotaque micaelense, a trautear ai se eu morrer. “Maria, isso não tem jeito nenhum”, repreende a mãe e então a miúda, de cabelos encaracolados, gozando da sua própria tontice, lá corrige, “Ai se eu morrer / isso não tem jeito nenhum”.

Não tem jeito nenhum algumas pessoas morrerem, mas, como ensinou o mestre Wilson das Neves, só morre quem não presta. “A Sara Tavares esteve aqui no estúdio quando gravei Fora do Meu Quarto”, revela Silly. Sara não cantou no tema, nem precisou de o fazer. “Há muito dela neste disco”, diz. Se fecharmos os olhos, ouvimos a sua voz amparar Maria no seu despontar para o mundo e a ajudá-la a encontrar-se a si nessa imensidão. “Fora do meu quarto um mundo / Dentro desse mundo, eu”. As coisas grandes resumem-se com simplicidade. Tal como as pessoas.

[“Cavalo à Solta”:]

Desse encontro entre Silly e Sara ficou uma polaroid, lições de como pisar leve na vida, uma planta para crescer e se multiplicar e uns paus de incenso violeta, aquele que Sara Tavares punha a queimar antes de soprar o seu canto. “Foi o encontro de uma vida. Não pela admiração ou fanatismo, mas pelo encontro de almas”, leio posteriormente num bloquinho de capa azul-oceano que Maria me ofereceria nesse dia. Ela prossegue: “A Sara é um mundo. Um mundo de coisas boas. E, sem saber, mudou e marcou a minha vida para sempre. Foi arrebatador esse encontro, emocionalmente muito intenso. Mas foi a vida a acontecer no seu melhor”. Olha o que o amor dá.

No silêncio, ela virou guia

Retrocedendo umas canções na história, deixemo-nos pousar em Nunca e novamente numa conversa de uma infância feliz. Neste tema, onde Silly confessa que nunca se sentiu à altura do destino (mas que também nunca se conformou em ficar sentada na bancada a ver o mundo passar), ouvimo-la brincar com o pai uma brincadeira de eternos manuais afetivos de pais e filhas:

— Maria, posso ir à tua casa? 
— Podes. (Pausa). Quem é? Quem é? 
— Sou eu.

Depois disto, entra a voz confessional de uma Maria crescida, balançando numa cadência clássica de hip hop e acompanhada por acordes leves ao piano. Doçura e vulnerabilidade traçadas a pincel, com alguns cortes de papel. “Tantos ‘acho’ para matar que me impede de decidir / De ser firme no que eu creio e só bloqueiam o meu ir”. O confronto de Silly não é com a rua, nem com o que está lá fora, é consigo mesma. “Eu fiz do medo sangue em mim / não sei se fique ou fuja daqui / cá dentro a dança é só comigo / O trilho em mim é labirinto”, canta em Água Doce, rio que corre cheio de sal nas veias.

Com David Jacinto e com o Gospel Collective: Silly durante os dias de gravação de "Miguela"

As músicas sucedem-se, o chá já vai a meio e os olhos de Maria vão rodando para a frente, para o chão, para as recordações afixadas nas paredes do estúdio ou para o teto, onde uma trepadeira abraça uma trave branca de madeira. Ela pouco fala, muito menos faz gestos bruscos. Rapidamente compreendo que é no silêncio que Silly se faz ouvir melhor. “No silêncio que aprendi a trilhar caminho eu virei guia”, canta precisamente em Silêncio, a terceira do disco.

Para lá da voz, soam uns arpejos que podiam ter sido tocados por Steve Lacy, umas cordas repuxadas junto ao cavalete e uma batida afro-house que pede dança sem recato. A batida entra no refrão, no exato momento em que a palavra “silêncio” estala, explicando, antes mesmo de Silly continuar o verso (quantas canções dentro), que o seu peito é um rebuliço, até quando a boca se cala.

É bonito ver como, ao longo do álbum, Silly e Fred jogam com os detalhes: seja a samplar uma caixa de madeira na entrada de Coisas Fracas, que intuitivamente me faz bater com a língua no palato; na eletrónica espacial de Fora do Meu Quarto, que me dilui entre o eu-pessoa e o eu-humanidade (não é a explosão de um parto igual à explosão de uma supernova?); ou na entrada do coro Gospell Collective repetindo o último verso de Nunca — “Nem dá para fugir mesmo que eu queira não”, fragilidade fazendo-se grande, fazendo-se forte.

“Fator Aldina Duarte”

Miguela, embora pessoalíssimo e confidencial, é um álbum coletivo. Não só Marcelo Camelo ofereceu as suas orquestrações a Herança e Vento Forte – um barco à vela nas ondas tranquilas de Rodrigo Amarante e Banda do Mar – como David Jacinto se abeirou de Silly para a embalar em Disforma. “Os TV Rural são uma das minhas influências”, diz Maria sobre a mítica banda de rock nascida em Oeiras na mesma altura em que ela nascia em São Miguel. Fred, nesse início de milénio, andava a curtir o punk-funk-hip-hop dos Yellow W Van, assumindo as baquetas de um projeto que bebia das cuspidelas dos Rage Against the Machine. Entre tantas outras coisas que se fartou de ouvir na aparelhagem, TV Rural era banda sonora sempre presente.

Às vezes é preciso bater nas costas para desengasgar a liberdade e nem sempre isso é fácil. No caso de Maria, foram precisas algumas pancadas fortes que Aldina Duarte se prontificou a dar. “Chamámos a Aldina para ajudar a Maria na dicção e na projeção de voz”, conta Fred.

Quando os dois perceberam que tinham esse amor em comum, chamaram David Jacinto para estúdio e baralharam as cartas do tempo. Em Disforma, espécie de arranjo metafísico pedido de empréstimo a Ryoji Ikeda, David dobra a voz de Silly, com candura, em versos como “Deixa que eu me perca, que eu não veja / deixa fingir que eu ainda não sei / eu olho para trás”. Um espelha o outro: em Maria, ouvimos o eco da meninice de Jacinto, em Jacinto a projeção de uma Maria amadurecida pelos anos. Outra singela beleza do disco.

Estas subtilezas não são mais do que o fiel retrato de Silly. Há uma timidez nos seus gestos que se manifesta no seu timbre. Isso dá-lhe a tal doçura no sussurrar das palavras e em todas as pequenas imperfeições da vida que afloram no seu cantar e que Fred, sensível, não apagou. Se há uma tosse que interrompe um verso, ela fica lá:

“Larguei palavras como… [ligeira tosse] Larguei palavras como pombas em direção à liberdade”

Às vezes é preciso bater nas costas para desengasgar a liberdade e nem sempre isso é fácil. No caso de Maria, foram precisas algumas pancadas fortes que Aldina Duarte se prontificou a dar. “Chamámos a Aldina para ajudar a Maria na dicção e na projeção de voz”, conta Fred. Aldina, furacão do fado, puxou do amor maternal que se faz duro quando é preciso ensinar a cria a voar. “Tens noção de que ninguém da tua idade escreve assim?”, atirou para Maria da primeira vez que se encontraram, um elogio-provocação ao qual ainda acrescentou: “É melhor dares estas letras a outra pessoa para as cantar, com essa voz elas não se vão ouvir”.

Entre batalhas de afirmação pessoal, ternuras e desabafos singelos se escreve "Miguela" enquanto aula

De facto, ao escutar o EP Viver Sensivelmente, nota-se uma Silly mais débil, sem fôlego para sair do ninho. O encantamento estava lá, mas muito contido. Em Miguela, Aldina Duarte soltou o pássaro e fê-lo águia em corpo de tentilhão. Fred chamou a este milagre “Fator Aldina Duarte”. A evolução é clara: a Silly que agora se apresenta domina as acentuações, dando robustez e amplitude a versos como “É que não foi fácil fingir-me ágil fico frágil nessa confusão”. Numa outra Silly, os mesmos versos sairiam achatados, tudo em minúscula e sem vigor.

Hoje, a miúda que escreve que nem sempre é calmo o balanço no mar, não tem mais medo de o enfrentar. Assume entradas a solo, como em Solitude, bombeando cada palavra com Little Simz na cabeça, antes de a batida e o coro se juntarem. Sometimes I Might Be Introvert, há uma guerra lá dentro, mas o silêncio de Silly não mais é esconderijo. É fratura exposta com o olhar bem levantado:

“Só queria olhar para mim e tentar-me um tanto mais firme
Ser mais terra no mar, ser alguém que se afirme
Sem medos do que venha, apertar rosas com espinhos
Sem medos desse tango que se dança sozinha”

[“Herança”:]

Entre batalhas de afirmação pessoal, ternuras e desabafos singelos se escreve Miguela, disco que na derradeira canção se evapora. Vento Fraco é uma melodia simples e tocante, tão tocante que inspirou Fred a fazer algo que nunca tinha feito: a cantar. “É uma participação inédita”, releva o produtor, rindo timidamente.

Ele, à guitarra, dobra a voz de Silly, algodão macio, e, nessa ousadia, entrega-nos o coração nas mãos. “É um disco que vem de um lugar de verdade”, dizem os dois, visivelmente emocionados, já depois de escutarmos os últimos versos de Miguela: “Segue em frente diante o vento forte”. Dizem-no, nem se dando conta de que naquele momento tal confirmação seria absolutamente desnecessária. Como se o sol precisasse de licença para se anunciar numa manhã de inverno ou a palavra AMOR tivesse de ser escrita numa chávena de chá para eu saber que estaria prestes a prová-la naquele sofá. Fui-me embora, dando-me ao vento. Atrás de mim, um persistente rasto violeta.

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