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Já houve vários prenúncios da sua morte, nenhuma das tentativas é inteiramente nova, mas a livraria provou sempre ser a mais resistente forma de encontrar livros
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Já houve vários prenúncios da sua morte, nenhuma das tentativas é inteiramente nova, mas a livraria provou sempre ser a mais resistente forma de encontrar livros

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Já houve vários prenúncios da sua morte, nenhuma das tentativas é inteiramente nova, mas a livraria provou sempre ser a mais resistente forma de encontrar livros

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Para que servem as livrarias? (ou uma brevíssima história do comércio livreiro)

O papel de uma livraria é o de criar o gosto, de o orientar pelas escolhas e de garantir que há mundos que não morrem por não terem os seus órfãos onde encontrar guarida.

O ditado sobre a casa do ferreiro já o denuncia, mas há poucos livros sobre livrarias. Elas são o depósito das Histórias, não o alvo preferido da própria História. Haverá uma biblioteca inteira de livrarias idealizadas, o Mendel dos Livros, os apaixonados livreiros da Sombra do Vento, mas nas livrarias de verdade o pensamento costuma estar na mensagem, não no mensageiro.

É, obviamente, legítimo: os frequentadores de livrarias gostam de livros, não de livrarias; mesmo que os passeios pelas estantes e montras tragam surpresas agradáveis e livros desconhecidos, tornam-se incómodos feita a descoberta: a livraria é a barreira, o que nos impede de ler, o único travão entre o encontro e a leitura.

É certo que as livrarias são um bom poiso para os desocupados, um calmante para as curiosidades mais frenéticas, que satisfazem o apetite por um tema com o folhear de quatro ou cinco páginas, ou uma agradável reunião silenciosa de velhos mestres e novos discípulos; no entanto, são os livros que brilham, não as estantes em que esperam pelos leitores.

Este papel secundário da livraria na vida do livro já levou a vários prenúncios da sua morte. Uma boa rede de bibliotecas mataria o negócio, os vendedores porta-a-porta do Reader’s Digest e do Círculo de Leitores fariam da compra uma atividade muito mais confortável, a internet tornaria obsoletas as casas, de espaço limitado, com uma modesta talhada da biblioteca de Babel à venda, e as velhas livrarias poderiam ser dispensadas do espaço público. A verdade, porém, é que nenhuma das tentativas é inteiramente nova, mas a livraria provou sempre ser a mais resistente forma de encontrar livros.

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Prateleiras com livros na cave da livraria Moreira da Costa, que celebra no fim de semana os seus 70 anos no mesmo sítio e que esteve para ser despejada no âmbito das renovações do Hotel Infante Sagres, Porto, 25 de outubro de 2018.  (ACOMPANHA TEXTO 27 OUTUBRO 20018).   JOSÉ COELHO/LUSA

Não estarmos mergulhados numa torrente contínua de novidades que nos impede de respirar é aquilo que faz da livraria o modo mais natural e confortável de comprar livros

LUSA

O acesso aos livros já conheceu várias formas; algumas mais épicas, como a busca, relatada por Irene Vallejo em O Infinito num Junco, para a Biblioteca de Alexandria, outras mais prosaicas, como as que se encontram nos decretos medievais de Oxford, a tentar regular o comércio e com isso impedir livreiros aproveitadores de cobrar quantias exorbitantes aos pobres estudiosos, ou nas relações da vida do Padre Agostinho de Macedo, em que nunca falta a menção aos livros que ele roubava dos conventos e vendia nas livrarias da Calçada do Combro.

Os livreiros existem desde que existe livro, graças a Horacio conseguimos saber o nome de dois deles na Roma Antiga, os Sosii, provavelmente dois irmãos, e graças a Marcial conseguimos saber também que com cinco denários conseguiríamos comprar um dos seus livros; porém, a forma mais comum de acesso ao livro foi, durante toda a Antiguidade, ligeiramente diferente. No livro de Jeremias é-nos relatado o modo como o livro foi produzido; depois de ditado, o transcritor poderia copiá-lo e vendê-lo se quisesse; como não estava ainda desenvolvida a ideia de direitos de autor, o livro era de quem o escrevesse. Haveria, assim, copistas que fariam da sua habilidade um negócio, mas o modo mais vulgar de uso dos copistas é-nos mostrado por uma das mais famosas casas de Herculano, a Villa Papyri.

Nesta casa, em que aquando das primeiras escavações em Herculano foram descobertos quase dois mil rolos de papiro carbonizados, está uma das mais interessantes chaves para perceber o processo de obtenção de livros durante a Antiguidade. A casa pertenceu a Calpúrnio Piso, um Cônsul, que formou a biblioteca a partir do trabalho de um sábio, Filodemo de Gadara. Este seria uma espécie de biblioteca privada, encarregado de traduzir, recolher, copiar ou criar obras para proveito de Piso. Os copistas privados — trabalho a que provavelmente se dedicou também Epicteto, por exemplo — seriam uma das formas favoritas de se obter livros na Antiguidade. Todos os livros estariam à disposição de quem pudesse sustentar um copista que os pudesse escrever. Nem a atividade seria excessivamente cara para os possuidores tradicionais de livros — afinal, estes copistas poderiam ser escravos letrados — nem o limite de uma livraria se impunha: o copista poderia escrever ou copiar qualquer livro, bastava escolher.

O grande atrativo da livraria está, então, nesta espantosa descoberta de que, embora não haja um número preciso, há um intervalo que satisfaz ao mesmo tempo a nossa curiosidade e não nos esmaga com as possibilidades infinitas.

É claro que, hoje em dia, nos parece uma logística demasiado pesada; no entanto, a verdade é que o processo de transformação do livro num bem acessível e barato foi bastante longo. As grandes bibliotecas da Europa, já no século XVI, tinham poucos milhares de livros, como se vê no caso da biblioteca de Dom Teodósio de Bragança. Se a invenção dos tipos móveis tornou baratos alguns livros, que poderiam ser vendidos pelos colporteurs de livres por todas as cidades, a verdade é que só no século XVIII é que se vulgarizaram alguns livros que não os devocionários. Basta vermos a qualidade do papel de um incunábulo para perceber como o livro era vista como um objeto de luxo.

Só a imprensa, associada ao começo da leitura privada, começou a trazer uma certa disseminação do livro.

Ora, mesmo esta disseminação não foi feita em exclusivo pelas livrarias. O direito do copista ao livro copiado transferiu-se, de uma forma mais ou menos natural, para o seu impressor. Embora ainda vejamos, nas últimas páginas de alguns livros setecentistas, o anúncio da livraria em que o livro era vendido, a maior parte do comércio era feito pelos próprios impressores.

Ora, quer o sistema Antigo quer o novo traziam consigo defeitos fáceis de perceber. Se no caso do escravo-escritor o maior problema é o da imensidão de possibilidades, no caso dos impressores surge o problema contrário. A ideia de uma escolha infinita é atraente, mas o problema é que, quando a escolha nos surge assim, com todas as possibilidades em aberto, a única medida que temos é a nossa. Não podemos escolher nada que não conheçamos já, pelo que a biblioteca não nos traz um alargamento, apenas uma volta mais ou menos óbvia sobre nós próprios. Escolher aquilo que queremos que nos copiem pode ser agradável, mas reduz-nos ao nosso próprio conhecimento. O facto de nos vermos reduzidos àquilo que o impressor tem, por outro lado, é mais redutor do que aquilo que podemos desejar.

As livrarias, além de depósitos de livros, são bandeiras de culturas vencidas e lembretes de que aqueles mundos ainda existem

© Sara Otto Coelho / Observador

O grande atrativo da livraria está, então, nesta espantosa descoberta de que, embora não haja um número preciso, há um intervalo que satisfaz ao mesmo tempo a nossa curiosidade e não nos esmaga com as possibilidades infinitas. Não estarmos reduzidos aos poucos livros que um feirante é capaz de trazer, nem mergulhados numa torrente contínua de novidades que nos impede de respirar é aquilo que faz da livraria o modo mais natural e confortável de comprar livros.

Em Portugal, o estabelecimento de uma rede livreira mais sistemática começa no século XVIII, quando um grupo de pequenos comerciantes oriundos de Monestier de Briançon se estabelece em Lisboa. Entre estes, haveria uns tais Bertrand que foram resistindo ao tempo e acompanharam o mercado livreiro em todas as suas transformações. Das livrarias oitocentistas em nome individual, como a Férin, ao tempo das cadeias, seja a Castil ou a Bulhosa, a Bertrand transformou-se no grande símbolo livreiro em Portugal.

É importante notar, no entanto, que se pelo número a Bertrand representa a comodidade mais óbvia da existência das livrarias, outras trazem vantagens mais discretas, mas ainda assim relevantes para a História da cultura.

A existência de livrarias temáticas, de pequenos recantos para colecionadores de poesia do século XX ou de livros de viagens são a única garantia de que as pequenas culturas não morrem num mundo indiferenciado.

Não falamos apenas das livrarias independentes, mais ou menos inspiradas no modelo da Shakespeare & Co., com um grande foco na literatura, que dão atenção aos autores mais marginais e às editoras mais pequenas e em que se vê nos donos (que geralmente são também os trabalhadores) a paixão pela leitura de cada vez que sugerem um livro ou repõe livros nas estantes; nem falamos das livrarias bonitas, como a Lello, a Férin ou a Ler Devagar; não será tão conhecida hoje em dia a História de Manuel Ferreira, o alfarrabista que durante a sua vida animou a Antiquária do Calhariz; mas a verdade é que se a Camiliana é hoje em dia um ramo vivo da bibliografia portuguesa, em muito o deve aos catálogos de Manuel Ferreira, que sempre valorizou tudo o que se relacionava com Camilo e criou um verdadeiro culto bibliófilo à volta do novelista de S. Miguel de Seide.

O papel de uma livraria é também o de criar o gosto, de o orientar pelas escolhas e de garantir que há mundos que não morrem por não terem os seus órfãos onde encontrar guarida. A existência de livrarias temáticas, de pequenos recantos para colecionadores de poesia do século XX ou de livros de viagens são a única garantia de que as pequenas culturas não morrem num mundo indiferenciado. As livrarias, além de depósitos de livros, são bandeiras de culturas vencidas e lembretes de que aqueles mundos ainda existem.

É claro que é possível encomendar livros, procurá-los no gigante mundo da internet, ou mandá-los vir de outros lugares; mas a surpresa de nos encontrarmos no livro desconhecido não pode vir daí. O livro pode existir sem livrarias; mas, como mostra a Antiguidade, o leitor acaba por se cansar do seu escravo e voltará sempre a entrar nesses lugares cheios de estantes onde poderá encontrar o desconhecido.

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