Índice
Índice
A audição de Daniela Luzado Martins era uma das mais relevantes para os deputados da comissão de inquérito em que se investiga o tratamento das duas crianças luso-brasileiras com um medicamento para a atrofia muscular espinal — à data, um dos mais caros do mundo. A mãe das duas menores, que viajou propositadamente do Brasil para Portugal, era uma peça fundamental. Desde logo, para explicar como é que o filho de Marcelo Rebelo de Sousa se envolveu no processo — mas também que intervenção Nuno Rebelo de Sousa teve (e por que motivos) num caso em que se suspeita ter havido favorecimento para o acompanhamento das gémeas no Hospital de Santa Maria.
Durante mais de quatro horas e meia, a mãe das crianças foi questionada sobre eventuais contactos com responsáveis políticos em Portugal; sobre quem conhecia os dados clínicos das crianças e os dados pessoais da família; quem tinha acesso ao email de onde partiram as mensagens com esses mesmo dados e que foram dirigidas diretamente à companheira de Nuno Rebelo de Sousa; como era possível que a secretária do então secretário de Estado da Saúde, António Lacerda Sales, soubesse quando as crianças iam estar em Portugal (e transmitisse essa informação a responsáveis clínicos do Santa Maria); por que razão o email enviado para a nora do Presidente da República, e assinado com o seu nome, agradecia “toda a atenção dada” por Lacerda Sales ao caso das gémeas. Todas as perguntas possíveis sobre o processo que já levou a que o ex-secretário de Estado e Nuno Rebelo de Sousa fossem constituídos arguidos.
No final, Daniela Luzado Martins saiu do Parlamento sob a acusação de estar a participar no “encobrimento” de algum ou alguns dos intervenientes. E muitas dúvidas que persistem depois da audição da mãe das gémeas.
O email a Lacerda Sales a agradecer “toda a ajuda”
“‘Bom dia Dr. Lacerda Sales, gostaria de agradecer toda a atenção que vem sendo dada às minhas filhas’.” É desta forma que começa uma mensagem de correio eletrónico, enviado do email da mãe das gémeas luso-brasileiras, a Juliana Drummond, mulher de Nuno Rebelo de Sousa. O email, datado de 17 de dezembro de 2019, foi revelado esta sexta-feira, na longa audição a Daniela Martins na Comissão Parlamentar de Inquérito ao caso do tratamento das gémeas.
Os deputados confrontaram Daniela Martins com o email de agradecimento ao ex-secretário de Estado da Saúde, Lacerda Sales, sendo que a mãe das gémeas afirmou não ter “conhecimento” de ter enviado tal comunicação a Juliana Drummond, nora do Presidente da República. Daniela Martins explicou que, durante a fase em que as filhas, Maîte e Lorena, estiveram internadas nos cuidados intensivos num hospital do Brasil, vários familiares (como os irmãos e as cunhadas) tinham acesso à caixa de email e que, por isso, qualquer um deles poderia ter enviado o email — apesar deste estar assinado por ela própria.
[Já saiu o sexto e último episódio de “Matar o Papa”, o novo podcast Plus do Observador que recua a 1982 para contar a história da tentativa de assassinato de João Paulo II em Fátima por um padre conservador espanhol. Ouça aqui o primeiro episódio, aqui o segundo, aqui o terceiro, aqui o quarto episódio e aqui o quinto episódio.]
Apesar das várias insistências ao longo da audição, Daniela Martins nunca revelou quem escreveu e enviou o dito email a Juliana Drummond e reafirmou que a caixa de correio era acedida por vários elementos do seu círculo próximo. “É o meu email. Alguém deve ter enviado. Não lhe posso garantir que fui eu que escrevi. Várias pessoas tinham acesso à minha caixa de email”, sublinhou.
A mãe das gémeas luso-brasileiras não esclareceu nunca quem eram as pessoas que tinham acesso ao seu correio eletrónico e em nenhum momento disse quem enviou aquele email com referência ao ex-secretário de Estado da Saúde, nem afirmou que o tinha feito. Por maioria de razão, não explicou também por que razão era feito um agradecimento a Lacerda Sales, ou seja, que diligências encetou o à época governante no sentido de facilitar o acesso das crianças ao Zolgensma. Daniela Martins disse que tinha a expectativa de que fosse aplicado o princípio da equidade, “uma vez que outras crianças portuguesas já tinham recebido o medicamento”. Já quanto a Juliana Drummond, ex-mulher do filho de Marcelo Rebelo de Sousa, garantiu que a conheceu num evento anos depois da administração do tratamento às filhas, no Natal de 2022.
Daniela Martins garantiu ainda que nunca se dirigiu a nenhum órgão do Governo, da Presidência portuguesa, nem falou com Nuno Rebelo de Sousa, o filho do Presidente da República. Por isso, disse não saber como o empresário pode ter tido conhecimento do caso das suas filhas gémeas, ainda que admita que, indiretamente, a informação lhe possa ter chegado. “Acredito que indiretamente [Nuno Rebelo de Sousa] tenha sido contactado, porque teve acesso ao meu ‘mail’ padrão”, disse Daniela Martins.
Daniela Martins disse e reafirmou não conhecer também o secretário de Estado da Saúde, Lacerda Sales. Assim, ficou igualmente por explicar o email enviado pela secretária pessoal do governante, Carla Silva, à diretora do Departamento de Pediatria do Hospital de Santa Maria, em que eram enviados dados pessoais das crianças.
A misteriosa consulta desmarcada nos Lusíadas (depois de marcada com ajuda de empresário próximo do filho de Marcelo)
Uma das pontas soltas que ainda permanece por esclarecer, e que pode ser importante para deslindar os detalhes do caso, é a desmarcação de uma consulta no Hospital dos Lusíadas no mesmo dia (22 de novembro de 2019) em que foi marcada a consulta para o Hospital de Santa Maria.
Daniela Martins garantiu que a consulta não foi desmarcada por si. “Não sabia que consulta tinha sido desmarcada nos Lusíadas, só soube depois da investigação. Não tenho nenhum email de demarcação. Não sei quem desmarcou nos Lusíadas e quem marcou no Santa Maria”, afirmou Daniela Martins, acrescentando que se as filhas tivessem sido vistas nos Lusíadas, “também seriam sido encaminhada para o público”, ou seja, para o SNS.
Recorde-se que, esta semana, o ex-secretário de Estado Lacerda Sales deixou várias dúvidas sobre a misteriosa desmarcação da consulta nos Lusíadas, o mesmo hospital onde trabalha a neuropediatra do Santa Maria Teresa Moreno, a médica que acabou por acompanhar as crianças em Santa Maria. “A 22 novembro de 2019, a consulta do Hospital dos Lusíadas foi desmarcada. Coincidência ou não? Quem desmarcou a consulta? Por que se esgotou esta via de acesso quando não havia ainda consulta marcada num hospital EPE? [do SNS]”, questionou Lacerda Sales na mesma comissão, onde foi ouvido na última segunda-feira.
E aqui surge um protagonista secundário desta história que ainda não tinha tido destaque: José Magro. Um empresário, alegadamente próximo de Nuno Rebelo de Sousa, e que surge em “CC” no email [ou seja, recebeu igualmente a comunicação, não sendo o destinatário principal] enviado pelo Hospital dos Lusíadas a confirmar a marcação da consulta para as gémeas. Para a deputada do Bloco de Esquerda Joana Mortágua, Magro serviu como facilitador do processo. Mas Daniela Martins garantiu não conhecer o empresário.
Numa audição em que Daniela Martins se emocionou várias vezes (numa delas, quando questionada pelo deputado do Livre, Paulo Muacho, sobre o estado de saúde atual das filhas, obrigando o presidente da CPI, Rui Paulo Sousa, a suspender os trabalhos, que só seriam retomados meia hora depois), a mãe das crianças negou que tenha dito à neuropediatra Teresa Moreno que tinha “todas as assinaturas garantidas até à ministra da Saúde” para que o SNS pudesse proceder à administração do medicamento.
Esta sexta-feira, o Correio da Manhã avançava que, à Inspeção Geral das Atividades em Saúde, Teresa Moreno terá dito que Daniela Martins lhe transmitira que “a família dispunha de garantias de que todo o processo administrativo [do medicamento] teria as aprovações necessárias até à ministra da Saúde”. Essa informação não consta da auditoria da Inspeção Geral das Atividades em Saúde (IGAS) — segundo aquele jornal, a revelação da neuropediatra terá sido feito numa segunda audição perante os inspetores da IGAS.
O elo de ligação a Nuno Rebelo de Sousa
Foram várias as insistências dos deputados para que Daniela Martins detalhasse quem fazia parte do seu círculo de amigos para poder ter acesso à sua conta pessoal de email. Pessoas que pudessem ter feito chegar a Nuno Rebelo de Sousa, através da sua companheira, dados muito concretos sobre a situação clínica das duas crianças. As perguntas foram diretas: Quem tinha acesso ao email? Quem poderia ter enviado emails em seu nome? Quem poderia enviar notas de agradecimento a Lacerda Sales em seu nome, através de Juliana Vilela Drummond? Quem poderia, afinal, ser o elo de ligação ao filho do Presidente da República? As respostas foram, invariavelmente, pouco específicas.
Daniela Martins explicou que, enquanto acompanhava as filhas nas “intensivas” (os cuidados intensivos), no hospital onde eram acompanhadas no Brasil, várias pessoas iam acedendo à sua conta de email, enviavam pedidos de ajuda e tentavam angariar apoios financeiros ou contactos para acelerar o acesso das duas gémeas ao medicamento para a atrofia muscular espinhal. A determinada altura, referiu-se aos seus irmãos e cunhados como alguns dos que iam tentando dinamizar esses contactos. Mas nunca respondeu à questão: quem conhecia Nuno Rebelo de Sousa. “Não tenho ideia”, repetiu por diversas vezes.
Os “comentários indiretos” ao tratamento “a mando do Presidente” Marcelo
Quando a TVI revelou o caso, em novembro do ano passado, a então presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar e Universitário de Lisboa Norte, Ana Paula Martins (atual ministra da Saúde) respondia assim à eventual intervenção de Marcelo em todo o processo: “Sei que se fala nisso.” Mas também acrescentava não ter “a mínima evidência” de que essa ideia tivesse fundamento. “O que corria nos corredores é que era por influência do Presidente da República” que as menores estavam a ser seguidas no hospital, dizia também na altura António Levy Gomes, diretor da Unidade de Neuropediatria.
Esta sexta-feira, Daniela Martins admitiu que o tema era mencionado com regularidade e até recordou alguns dos comentários que ouviu de profissionais ligados à instituição. Nos “bastidores do hospital”, a mãe das crianças deu conta de “comentários indiretos” que sugeriam que o acompanhamento das filhas estava a ser feito “a mando do Presidente” Marcelo Rebelo de Sousa. E nunca tentou saber a origem dessa ideia? “O meu foco era o tratamento das meninas, não como ele foi marcado”, respondeu Daniela Martins. Por essa razão, não “questionou na altura” as referências a Marcelo Rebelo de Sousa ou ao alegado tratamento de preferência de que estaria a beneficiar. E garantiu que nunca procurou “fazer amizades no hospital” com o intuito de obter “algum tipo de privilégio” para as duas menores.
A referência “parva” a um “pistolão” (ou cunha)
O tema esteve na origem de um dos momentos mais tensos da audição. Ainda na primeira ronda de perguntas dos deputados, André Ventura pediu que fosse transmitido em direto um vídeo de Daniela Martins. O pedido suscitou uma reação do advogado da mãe das crianças — Wilson Bicalho manifestou-se contra a possibilidade de as crianças serem identificadas ao serem exibidas, algo que constituiria “crime”, revelando ao mesmo tempo que já interpôs queixa no Departamento de Investigação de Ação Penal de Oeiras contra a TVI pela forma como as imagens foram obtidas (à revelia do conhecimento de Daniela Martins).
A decisão do presidente da comissão de inquérito foi a de recusar a transmissão do vídeo e o líder do Chega acabou por ler as declarações de Daniela Martins nas tais gravações. Nesse vídeo, a mulher faz referência a um “pistolão”, uma expressão, como a própria explicou no Parlamento, comum no Rio de Janeiro e que se pode traduzir como acesso a uma “cunha”. Que cunha era essa? A quem se referia Daniela Martins quando admitia — sem saber que estava a ser gravada — que tinha beneficiado de um tratamento de privilégio? Ficou por explicar.
Daniela Martins garantiu apenas nunca ter falado com o Presidente da República, nem com Nuno Rebelo de Sousa, nem com Lacerda Sales (diz mesmo não ter contactado com quaisquer “políticos” em Portugal e apenas com elementos do corpo clínico do hospital). Acabou a pedir desculpa por se “ter vangloriado” do acesso a contactos privilegiados e considerou ter proferido uma frase “infeliz” quando se referiu a um “pistolão” para que as filhas fossem tratadas em Portugal. “Errei, fui parva. Depois, percebi que tinha caído numa armadilha, onde fui gravada com uma câmara escondida em minha casa”, disse.
A “notícia falsa” dos 14 dias do processo de nacionalização
Na audição, além do acompanhamento clínico dados às suas filhas gémeas no Hospital Santa Maria, Daniela Martins foi questionada sobre o processo de nacionalização das duas crianças. Em novembro do ano passado, o Observador avançou que o processo demorou apenas 14 dias a ser tratado e a nacionalidade portuguesa a ser atribuída. “Notícia falsa”, garantiu esta sexta-feira a mãe das menores. Porquê? Não explicou.
Na altura em que avançou essa informação, o Observador reportava-se a dados do Ministério da Justiça, que indicavam que o assento de nascimento foi registado “no dia 16/09/2019” e que o pedido deu entrada “no Consulado Geral de Portugal em São Paulo (Brasil) a 02/09/2019”, sendo que “nessa mesma data [foram] remetidos, através do Sistema Integrado do Registo e Identificação Civil, à Conservatória dos Registos Centrais (Lisboa)”.
Ou seja, e segundo dados oficiais do Ministério da Justiça, entre a data de registo de entrada do pedido de nacionalização e a atribuição da nacionalidade passaram-se duas semanas. Ao Observador, a tutela dizia ainda que não tinha sido identificado “qualquer pedido de urgência relativamente aos processos em causa”, mas acrescentava que, por se tratar de “processos relativos a menores, pela via atributiva, ou seja, descendentes originários, independentemente da proveniência”, teriam um “tratamento prioritário”.
O dado foi contestado na comissão parlamentar de inquérito por Daniela Martins, sem que a mãe das crianças tivesse apresentado um intervalo concreto diferente que fundamentasse a sua posição.
No Parlamento, Daniela Martins disse que, quando vieram a Portugal para uma consulta no Santa Maria, em dezembro de 2019, as duas menores não tinham ainda o cartão de cidadão “físico” consigo, mas apenas o registo do assento de nascimento.