“Um alto funcionário que conhece perfeitamente o mundo da saúde e que é inequivocamente eficaz.” Foi desta forma que Édouard Philippe, o homem que esta sexta-feira deixou de ser primeiro-ministro de França, falou de quem o vai substituir: Jean Castex. A afirmação em causa é do início de abril, remetendo à altura em que Jean Castex foi nomeado para coordenar a estratégia francesa para o desconfinamento.
Agora que Jean Castex recebe das mãos de Édouard Philippe as chaves do Palácio de Matignon, tudo o que aquela citação comporta terá de ser confirmado e, idealmente, aumentado. Mais do que alto funcionário, terá agora as segundas funções mais importantes em França a seu cargo; para lá do mundo da saúde, terá de conhecer tudo o que vai para lá dela; e quanto a eficácia é desejável que esta nunca lhe falte.
Jean Castex e Édouard Philippe são, em certa medida, dois homens em espelho. Ambos homens da direita (posição assumida publicamente por cada um dos dois), são originários do mesmo partido (Republicanos, antiga UMP) — no caso de Castex, da orla de Nicolas Sarkozy; quanto a Édouard Philippe, do meio próximo a Alain Juppé. E tanto um como o outro são chamados a servir de primeiro-ministro a um Presidente, Emmanuel Macron, que até aqui se habituou a chamar a luz da governação em França. A continuar desta forma, Jean Castex terá pela frente quase dois anos de trabalho nas sombras do Palácio de Matignon — sítio habituado a mandatos precários, de tal forma que é conhecido por alguns como “o contrato de arrendamento mais curto da República”.
Dos 1.144 dias de arrendamento de Édouard Philippe (apesar de todos solavancos, foi o 7.º primeiro-ministro mais tempo no cargo da V República), estes são os conselhos que o agora ex-primeiro-ministro poderá dar ao homem que segue quanto aos desafios que tem pela frente: do desconfinamento ao próprio Emmanuel Macron. Tarefas pesadas, para o homem cujo apelido (Castex) é perigosamente parecido a casse-tête — isto é, quebra-cabeças, em francês.
Desconfinamento. Um enorme desafio, mesmo para o Mounsier Déconfinement
No início de abril, Jean Castex, um desconhecido do grande público que até aí tinha feito carreira política enquanto homem dos corredores e também autarca de Prades, foi chamado a redigir a estratégia nacional de desconfinamento. À altura, à falta de um nome memorável, a imprensa deu-lhe outro: Mounsier Déconfinement, isto é, Senhor Desconfinamento.
Para Édouard Philippe, este foi um tema difícil — e, no fundo, a principal razão por trás da sua demissão. Em França, a gestão pandemia de Covid-19 foi marcada por insuficiências (entre máscaras e outros bens essenciais no combate à doença, o que enfureceu os médicos contra o governo) e também por decisões como a de realizar a primeira volta das eleições autárquicas a 15 de março, altura em que o vírus já estava instalado no país. Atualmente com 166.378 casos e 29.875 mortos, França tem a situação relativamente controlada — com 659 novos casos e 18 mortes a 2 de julho, ultimo dia completo de Édouard Philippe.
Como resultado, o governo de Édouard Philippe foi alvo de um total de 84 queixas — e, pouco depois de este ter passado a pasta a Jean Castex, foi notícia que o inquérito à sua atuação durante a pandemia ia ser formalmente aberto. Não é, por tudo o que está para trás, uma tarefa fácil a que Jean Castex tem pela frente. A seu favor tem o facto de, pelas funções que desempenhou nos últimos meses, ter já contacto com vários ministérios — muitas vezes, em reuniões interministeriais —, o que manterá agora, mas com uma função bem mais cimeira.
Ambiente. Não é Greta quem quer
Emmanuel Macron sempre assumiu como uma das suas bandeiras — primeiro, eleitorais; depois, presidenciais — a luta contra as alterações climáticas. Este é, porém, um tema que provou ser de pouca margem de manobra e de rastilho curto para muitos franceses. Foi assim com aquele que é, até agora, o maior capítulo de contestação pública e nas ruas da era Macron: a revolta dos coletes amarelos.
A faísca que deu em enorme incêndio foi o anunciado aumento da taxa sobre os combustíveis fósseis, uma medida aplicada para fazer cumprir as aspirações ecologistas da presidência de Emmanuel Macron. O resto da história já é conhecido: o anúncio foi mal recebido por alguns setores da classe média francesa, sobretudo da que se concentra fora dos centros de poder. E foi precisamente ao centro do poder, Paris, que milhares de manifestantes passaram a deslocar-se a cada fim-de-semana para protagonizarem violentas manifestações que puseram Paris nas primeiras páginas de todos os jornais.
Este é, além de um trauma para Édouard Philippe, uma lição que o agora ex-primeiro-ministro pode passar ao seu sucessor: a de que para cumprir o programa ecologista de Emmanuel Macron terá sempre de enfrentar resistência nas ruas. Será um tema na ordem do dia já que, a 29 de junho, Emmanuel Macron anunciou que aceitaria 146 de 149 medidas formuladas pela Convenção Cidadão Pelo Clima em janeiro. Embora o Presidente tenha deixado de lado ideias que poderiam voltar a causar faísca (como uma taxa de 4% sobre os dividendos), há outras que ainda estão por especificar — como, por exemplo, de que forma serão pagos os 15 mil milhões de euros a investir em dois anos na luta contra as alterações climáticas. Cabe agora a Jean Castex, e ao seu governo, a árdua tarefa de encontrar uma maneira de cumprir essa ambição de Emmanuel Macron.
Macron. A arte de sobreviver nas sombras do Rei Sol
Que a convivência entre Presidente e primeiro-ministro em França não é fácil já o dissemos — mas falta, porém, dizê-lo que Édouard Philippe é provavelmente um dos inquilinos do Palácio de Matignon que, nos últimos tempos, manteve uma relação mais difícil com o Palácio do Eliseu. Ao longo dos seus 1.144 dias a governar sob as ordens de Emmanuel Macron, sobram os episódios em que Édouard Philippe foi desautorizado pelo seu chefe.
O primeiro episódio a demonstrar uma fissura entre aqueles dois homens deu-se com a crise dos coletes amarelos, que saíram à rua violentamente nos últimos meses de 2018 perante o anúncio de Édouard Philippe de que os combustíveis fósseis iriam passar a ser alvo de novas e mais altas taxas a partir de 1 de janeiro de 2019.
Perante os protestos, Édouard Philippe acabou por anunciar uma “moratória” sobre a aplicação dessas taxas — o que em nada acalmou oa contestação. Emmanuel Macron acabou por exigir ao governo a anulação em toda a linha da taxa — e, de acordo com o que o Le Figaro escreveu à altura, deu ordens ao então ministro da Transição Energética, François de Rugy, para corrigir o que até aí dizia sobre a moratória, ao vivo e a cores. “Ele [Emmanuel Macron] disse-me: ‘As pessoas ficaram com a impressão de que isto é uma manhosice, ao dizermos que há uma suspensão, mas que voltará depois'”, disse, sobre a taxa. “Não há nenhuma manhosice”, acrescentou o ministro, atrapalhado com aquele corretivo em direto.
Também durante a pandemia de Covid-19, Édouard Philippe e Emmanuel Macron demonstraram pouca sintonia — e, muitas vezes, vieram a público para dizer exatamente o contrário. Uma semana depois de Édouard Philippe ter falado do risco de um “desmoronamento económico” perante um confinamento prolongado, Emmanuel Macron negou essa hipótese respondendo “não, não uso esse tipo de palavras fortes” e atalhou dizendo que ele próprio tinha “noção do impacto económico”. Mais à frente, quando foi altura de começar a desconfinar, Édouard Philippe já dizia que era preciso fazê-lo com calma e esperando por “dias melhores”. Dias depois, num discurso à nação, Macron saudava o “regresso dos dias felizes”.
Nesta dinâmica entre Matignon e Eliseu, foi sempre a Édouard Philippe que coube assumir os discursos mais técnicos e o anúncio de medidas concretas. Para Emmanuel Macron, em intervenções onde as medidas eram referidas meramente en passant, sobrou todo o espaço para verdadeiros discursos motivacionais durante o período de confinamento.
Paradoxalmente, no final de contas, Édouard Philippe sai do cargo de primeiro-ministro com maior taxa de aprovação (44%) do que o Presidente Emmanuel Macron (29%), de acordo com a sondagem do YouGov. De qualquer modo, do primeiro pouco se deverá ouvir falar nos próximos anos (o próprio negou a possibilidade de concorrer às presidenciais de 2022 contra Macron) e do segundo não vai sair nenhum holofote. Uma lição dura de aprender, mas que Jean Castex, agora que deixou a sua assinatura para “o contrato de arrendamento mais curto da República”, ainda vai a tempo de aprender com o antecessor.