Tudo tende para a sua natureza, e Conan Osíris (que na terça, dia 14, atua na primeira semifinal da Eurovisão, em Israel) não foge a este postulado filosófico: com tamanho berreiro, mais tarde ou mais cedo estaria na berra. O cantor já juntou um coro dissonante à volta das suas canções, que as discute com fúria e um admirável empenho. Uns enfiam o barrete revolucionário e incensam o novo mundo que Osíris trouxe para a música, outros gozam com os embarretados e clamam que, de revolucionário, Conan só traz o terror.
Ora, a polémica pouco nos interessa e, não querendo ir em cantigas, deixamo-las também de lado. É como poeta, não como músico, que Conan nos interessa. E nesse aspecto pode ser muita coisa: pode ser Bárbaro, pode ser divino, mas revolucionário não é com certeza; Conan Osíris é um fiel representante da tradição literária portuguesa. Os temas, as técnicas, as imagens, fazem de Conan Osíris o delfim das nossas letras. Conan é outro gigante aos ombros de gigantes; se Florbela Espanca tem um poema chamado caravelas, Osíris é mais universal e tem os barcos; se Cesário trouxe o quotidiano à poesia lusa, Conan actualizou-a com telemóveis, se Camilo Pessanha nos mostrou o Oriente, Conan Osíris completou-o com o origami e o shishigami. Conan Osíris é, ao dia de hoje, a mais completa síntese da poesia portuguesa.
[“Telemóveis”:]
Todo o escritor, do ainda pouco escolarizado, capaz de escrever “assim vou-lhe dar bolachas/vou-lhe confecionar bolachas/ assim vou-lhe congeminar bolachas”, ao poeta com consciência social dos tempos modernos, que “queria uma mega-drive/ Só pa não me meter na droga”, deve sentir em Conan Osíris o cumprimento do seu destino estilístico.
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É certo que Conan Osíris tem um estilo próprio, uma personalidade que seria impossível de copiar se essa personalidade não tivesse como traço principal a cópia. “eu vejo-te nos barcos a nascer/ Eu vejo-te nos barcos a morrer/ eu vejo-te nos barcos a passar/ eu vejo-te nos barcos a afundar”; “um beija-flor sem flor não beija/ um beija-flor sem flor não pousa”; “dá-lhe o cu de um nenuco/ dá-lhe o cu de um nenuco eunuco/ dá-lhe o cu de um nenuco”; “eu fui à médica a ver se era encefalite/ eu fui à médica a ver se era uma hepatite/ eu fui à médica ver se era espondilite/ eu fui à médica a ver se era amigdalite” – podemos mudar a música, mas as palavras nunca mudam.
[“Celulite”:]
Os anti-capitalistas rejubilam com a denúncia da produção em série, os moralistas desmaiam com a sugestão pederástica, as crianças envergonham-se com a exposição pública do seu método poético, que consiste em deixar para o fim o verbo da primeira conjugação e repetir sempre a mesma ideia, mantendo apenas o verso; no entanto, quem não vê nestas repetições a “estranheza do som” que Rimbaud queria para os seus poemas? Quem não vê a busca da inocência, que tantos poetas da geração de António Corrêa de Oliveira perseguiam, nas rimas acriançadas de Osíris, ou as mesmas lentes de criança em “Eu queria ter playstation/ Já pedi ao meu padrinho” que estão em “Já tenho treze anos/ Madrinha casai-me com pedro gaiteiro”, de Castilho?
Na verdade, há vários anos que a música procura, na baixa-fidelidade, restaurar uma pureza de intenções que não seja abafada pelos prodígios técnicos. Se assim é, porque não tentá-lo fazer também com as letras? E, mesmo que não fosse, se João Roiz de Castelo Branco tem direito a aliterações como o famoso “nunca tão tristes vistes”, porque não o homenageará Osíris com “para ver se eu te abaixo o baixo” ou “nenuco eunuco”?
Conan Osíris é a grande potência da nossa literatura. Tudo o que ela já teve, com Osíris transborda. Se Helder Moura Pereira tenta a repetição de uma palavra para acentuar uma ideia, como em “atirares-me/ com a história do meu passado./ O que conheces do meu passado/ não chega para me atirares à cara/ o passado”, Conan Osíris abafa-o com “o sal que te abre a ti não abre a pele deles/ E o frio que mata aí não mata a mãe deles/ E a fome que há aí não mata o pai deles”.
Se E. M. de Melo e Castro faz versos de trocadilhos como “uma chama não chama a mesma chama/ á uma outra chama que se chama/ em cada chama que chama pela chama/ que a chama no chamar se incendeia”, porque não escreverá Osíris “O 100, o 100/ O sem paciência, o 100/ O sem paciência/ Zero-um-zero-um, o 100, o 100/ O sem paciência”?
[“Cem Paciência”:]
Pouco importa que os trocadilhos sejam mais velhos do que as pirâmides do Egipto, ou que a sequência das palavras faça pouco sentido. Um leitor preso aos estreitos limites da coerência quereria saber o que é um nenuco eunuco, já que os bonecos nem sequer costumam ter genitais para poderem ser capados; no entanto, o leitor de poesia portuguesa é um ser mais avançado, já habituado a situações em que, como no verso de Guerra Junqueiro, “media a presa o búfalo selvagem” – apesar de os búfalos serem herbívoros que não têm propriamente presas – ou em que mulheres afirmam, como nos anjos de Maria Teresa Horta, “voamos a lua, menstruadas”. Que significa voar a lua? Significa fazer voar a lua? Significa que voam pela lua? E, em qualquer das hipóteses, o que é que a menstruação traz à cena? O leitor fica na dúvida, mas Conan Osíris capta a essência do poema. Percebe a ligação misteriosa entre problemas femininos e viagens etéreas e pergunta: “quem quer saber da celulite? Quem quer saber do seu limite para amar o céu limite?” (mais uma vez, o trocadilho que faz as delícias dos poetas).
Conan Osíris é o imperador da poesia contemporânea e, para confirmar o seu trono, tem também um báculo bicéfalo. Por um lado, mostra que a língua é um organismo próprio e independente, imune aos significados e capaz de trazer proveito sensorial mesmo sem ligarmos aos sentidos. Por outro lado, mostra que a mensagem é superior à beleza, que os artifícios artísticos estragam a autenticidade que Conan Osíris quer reservar para a mensagem.
Ora, é nessa mensagem que se concentra a grande obra de Conan Osíris. E que mensagem é essa, que traz este profeta abençoado pelos deuses e guerreiros, ungido pelo universo para transmitir os seus segredos? A grande revelação, o grande problema existencial denunciado por Osíris, é que ele adora bolos.
Mais uma vez, Conan Osíris bebe da tradição e cospe-a mais forte e mais interessante. Se Camões pôs as divindades do mundo antigo a querelar sobre a grande viagem portuguesa, Osíris põe as divindades e as anti-divindades ao barulho (literalmente) no seu épico. Note-se que, mesmo aqui, a fidelidade de Osíris é sem concessões. Um poeta mais falso pintaria grandes disputas entre deuses e demônios. Osíris, mais verdadeiro, faz os deuses mais sensatos: nem eles, nem os diabos, nem ninguém se interessa pelo problema de Osíris, que é o problema de adorar bolos. Osíris convoca os deuses e os demônios; eles atendem à chamada, pensando no drama humano que exige a sua presença e Osíris explica: “o busílis é eu adoro bolos”. Que acidez satírica, senhores! Que iconoclastia! Infelizmente, os deuses não se impressionam e abandonam o poeta à solidão do seu drama.
[“Adoro Bolos”:]
Um leitor ingénuo poderia achar tudo isto absurdo; mas o leitor culto, reverente da tradição poética contemporânea, duvida do seu próprio juízo: que há aqui que não nos tenha já sido apresentado como uma das grandes delícias da poesia contemporânea? À luz do senso comum, tudo isto poderia parecer tolo; mas à luz dos candeeiros de biblioteca, à luz da cultura, Conan é um iluminadíssimo poeta.
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É certo que poderíamos realçar outros aspectos. Que a rima muito seguida e de associação livre vem da tradição musical do improviso, e que a agressividade sonora das rimas básicas e da paronímia pode querer mostrar que o importante é outra coisa. Mas se o primeiro aspecto perde força precisamente por as músicas não serem improvisadas, o segundo perde pelo que sobra. Se o importante é outra coisa, o que sobra é que ele adora bolos. E nisso, estamos com os deuses contra os Homens: como problema, não é grande coisa.