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Ricardo Araújo Pereira entusiasma-se quando proclama “Sou um irresponsável”. O humor, repete, não tem o poder que lhe atribuem
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Ricardo Araújo Pereira entusiasma-se quando proclama “Sou um irresponsável”. O humor, repete, não tem o poder que lhe atribuem

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Ricardo Araújo Pereira entusiasma-se quando proclama “Sou um irresponsável”. O humor, repete, não tem o poder que lhe atribuem

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Ricardo Araújo Pereira: "Em Portugal temos a dose certa de coisas que correm mal. É um país encantador"

"Coisa que Não Edifica nem Destrói" é o podcast tornado livro pelo humorista escritor. Em entrevista, fala de poder, da sua obsessão com o humor e de como só o mal tem graça.

O gato espreguiça-se no sofá e começa a brincar. Uma provocação de um lado, um toca-e-foge do outro. Folgazão, contorce-se no veludo vermelho. O adversário é outro gato, mais precisamente a mão direita deste, que o afaga com deleite. “Estou maravilhado com este bicho”, diz o humorista Ricardo Araújo Pereira, os dedos mergulhados na pelagem longa e sedosa de Ozalide.

O sedutor é o único habitante permanente da editora Tinta da China, em Lisboa; o afagador, cofundador do coletivo Gato Fedorento e principal figura da sátira política em Portugal está lá a promover o seu mais recente livro, Coisa Que Não Edifica Nem Destrói, uma versão em texto do podcast estreado em setembro e em que, todas as semanas, “discorre chatamente” sobre a sua obsessão favorita: o humor.

De Shakespeare à flatulência; de Hollywood a canibalismo de bebés. Sempre com erudição. Num dia que já vai longo – esta é a terceira entrevista das três únicas que acedeu dar – responde com paciência à pergunta que se tem tornado cada vez mais frequente (e que já lhe deu a primeira página do Expresso) e entusiasma-se quando proclama “Sou um irresponsável”. O humor, repete, não tem o poder que lhe atribuem, e ainda bem.

A capa de "Coisa que Não Edifica nem Destrói", de Ricardo Araújo Pereira (Tinta da China)

Lendo o livro, percebe-se que haveria muitos outros títulos possíveis, mas preferiu insistir nesta ideia do poder. Porquê? Há muita gente a abordá-lo e a dizer coisas como, “este domingo, acabe com o Costa” ou “espero que trate da saúde ao Marcelo”?
Não costumo receber encomendas desse tipo, mas há uma ideia muito arreigada de que o humor tem a capacidade de ser usado para construir uma determinada coisa ou destruir outras. A frase é do Machado de Assis. Nas Memórias Póstumas de Brás Cubas, ele diz isso, mas também aquela parte de que o humor é “mais do que passatempo e menos do que apostolado”. Isso é essencial para mim. O humor é profundamente antidogmático. Não tem o poder que as pessoas estão muito convencidas que tem. Mas acho que entre a edificação e a destruição, há uma série de atitudes muito estimáveis. Gosto muito disto.

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Gosta da formulação da frase ou do conceito?
Gosto da formulação da frase e acho que é uma boa definição de humor. Repare, em janeiro de 2017, acho que no mês da tomada de posse do Donald Trump como Presidente dos Estados Unidos, o [documentarista] Michael Moore participou num comício em Nova Iorque em que disse, “vamos formar um exército de comédia. Ele não suporta o ridículo. E é assim que vamos derrubá-lo.” Note: “derrubá-lo”. Donald Trump acabou por ser derrubado, como é natural na democracia, por outras eleições. Para mim é bizarro o facto de o Michael Moore achar que vivíamos numa espécie de comediocracia: o povo ia às urnas, elegia um candidato e os humoristas iam, à força de piadas, derrubá-lo.

De um lado os humoristas e do outro a turba que invadiu o Capitólio.
A ideia de que é possível uma pessoa sobrepor-se à vontade popular. Ambos têm essa vontade. Acho isso arrepiante.

Também usa a contracapa para um argumento: “Seria estranho que um músico, um pintor ou um realizador não tivessem uma ideia sobre o que o seu trabalho deve ser. Um escritor que não sabe nada de literatura é muito justamente reputado idiota. Mas quando se trata de humor, considera-se que falar do assunto estraga uma espécie de magia. E que isto do humor tem tanto místico como qualquer outra forma de escrita.” Faz todo o sentido, mas o seu nível de interesse pela anatomia do humor vai muito além de saber qualquer coisa. Faz até lembrar um verbo popularizado pelos Gato Fedorento: esmiuçar. No livro, conta uma história sobre um entmologista finlandês que contou o número de batimentos das asas do mosquito-pólvora…
… eu estou a fazer essa figura, não é? É o seu ponto.

"[A gargalhada] é uma reação humana, representa uma coisa e até pode enganar-nos no sentido em que permite, certa ou erradamente, que a gente conclua, "Eles gostam de mim”. Há qualquer coisa naquele barulho que indica isso. Mesmo que não seja verdade."

Está? Se sim, porquê? De onde vem esta obsessão?
Estou a fazer essa figura e com gosto. Sem vergonha. Eu tenho uma obsessão, de facto. Assim como aquele finlandês, que vai aparando as asas de um mosquito e aquecendo o corpo dele para contar quantos batimentos de asa é que ele consegue fazer — estava empenhadíssimo nessa experiência e imagino que contente por estar a fazê-lo — também eu estou divertidíssimo por fazer isto. É um tema que me interessa muitíssimo.

Porquê?
É natural uma pessoa ter um certo fascínio pela sua profissão.

Há mais humoristas em Portugal e não sei se há outros a dissecarem o humor desta maneira.
Cada maluco com a sua mania. Continuo a achar fascinante, como desde pequeno, esta feitiçaria. Esta ideia de que é possível dizer uma frase a alguém, e se as palavras estiverem ordenadas da maneira certa e se o tom for o adequado, isso produz nas outras pessoas uma reação física que gera um barulho. Quando a sala está cheia, é uma espécie de trovão. Uma gargalhada.

O que é que se sente?
No meu caso concreto, imagino que seja o que o futebolista sente quando marca golo. É uma coisa avassaladora. Se a gente sair de uma tragédia sem chorar, isso não diz nada sobre a qualidade da tragédia. Mas se a gente passa uma hora a ouvir uma comédia e não dá uma gargalhada, alguma coisa está errada. A comédia televisiva é herdeira de uma atitude que se tinha, por exemplo, no vaudeville, que eram espetáculos itinerantes com o propósito essencial de vender uma banha da cobra qualquer. E para vender a banha da cobra, era preciso atrair o público e mantê-lo ali. Como é que percebiam se estavam a gostar? Com esse produto tangível que é o barulho da gargalhada. Há um lado da comédia que está ligado a essa ideia de itinerância e de captar a atenção do público. É uma luta entre a mim, que estou no palco, e um bicho que tem 300 ou 400 ou 1000 cabeças.

E o contrário? Dizer uma piada e…. silêncio.
Esse silêncio é muito difícil de suportar. É mesmo. Eu tenho uma reação física. Há uma gota de suor que sinto imediatamente. Começa a percorrer as costas. Mesmo a gargalhada ou um programa bem sucedido apresenta uma dificuldade que é, para a semana…

…há mais.
E se for possível, queremos que eles riam mais alto do que riram esta semana. Às vezes uma noite mal sucedida tem um lado redentor que é, “bom, amanhã será melhor”. Às vezes é mais assustador uma noite bem sucedida, “Será que amanhã vou conseguir?”

E lembra-se mais dos grandes sucessos ou daquelas noites em que não corre tão bem?
Sabe que eu imagino que isto seja como a droga. É um apetite insaciável. Eles riram muito, então quero outra vez. E quero que seja uma maior do que esta. E isso faz com que a anterior já se tenha perdido. Eu percebo que todas estas considerações e queixas possam ser consideradas bizarras aos olhos de uma pessoa que não tem esta profissão. Esta paixão por um barulho.

"Até a música produz mais efeito no sentido de galvanizar as pessoas, a compeli-las à ação. É por isso que há um hino nacional e não há piada nacional"

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Mas é um barulho que representa uma coisa. É uma reação humana com um significado.
Sim, é uma reação humana, representa uma coisa e até pode enganar-nos no sentido em que permite, certa ou erradamente, que a gente conclua, “Eles gostam de mim”. Há qualquer coisa naquele barulho que indica isso. Mesmo que não seja verdade.

Começa todos os episódios do podcast por dizer, “Em que o autor discorre chatamente”. É para se lhe disserem que é chato poder dizer que avisou?
Eu estava à espera que o podcast fosse bizarro e aborrecido. E sem vergonha nisso. Porque, como lhe disse, tenho muito interesse no tema. Há-de haver dois ou três malucos que também têm. Se eu for para o domingo à noite [Isto é Gozar Com Quem Trabalha], aquilo envolve compromissos publicitários, envolve a estação de televisão. O podcast é uma espécie de programa radiofónico de uma rádio que é minha e que só emite uma vez por semana.

Uma espécie de Rádio Pirata.
Exatamente.

Tal como entre construir e destruir há várias coisas “muito estimáveis”, entre não ter o poder que as pessoas imaginam e não ter poder nenhum, também pode haver vários tipos de poder. O humor, afinal, tem ou não tem poder?
Não sou capaz de dizer que não tem nenhum. Onde ele atua especialmente é aqui [pousa a mão no peito]. É para nós próprios. Ou seja, é aquilo que o [G.K] Chesterton diz em O Homem Que Era Quinta-Feira, “Always be comic in a tragedy. What else can you be?” O poder é esse, reduzir as coisas a um tamanho mais manuseável. E a gente ser capaz de olhar para uma coisa terrível e encará-la como menos grave, parece-me excelente. Mesmo esse poder é muito fátuo. Talvez dure durante o tempo de uma gargalhada. A questão é que as pessoas estão convencidíssimas que tem poder político. A gente ouve isso todos os dias: o Zelensky era humorista e agora é presidente, logo…

Inclusivamente, no outro dia, a jornalista Sandra Felgueiras elogiou nas redes sociais o Ricardo Araújo Pereira pelo seu trabalho no caso das gémeas: “pôs o dedo na ferida”.
A sátira política tem uma determinada tradição. Acho que é saudável que numa sociedade como a nossa as pessoas possam rir-se dos seus dirigentes. Agora, não há nenhum estudo que indique que aquilo tem qualquer poder. Há até alguns estudos que demonstram o contrário. Entre outras coisas, definem uma atitude chamada “discounting kill”, ou seja, uma pessoa ri-se, até pode achar bem observado, mas dá um desconto dizendo, “certo, mas é uma piada”. Não há nenhuma demonstração de que aquilo vá compelir as pessoas a saírem do sofá e a agir. Eu tenho a sensação de que até a música produz mais efeito no sentido de galvanizar as pessoas, a compeli-las à ação. É por isso que há um hino nacional e não há piada nacional.

Ainda hoje estava a ver um livro que se chama A Arte Pode Mudar o Mundo...
Certo [ri-se para dentro]. Mas até que ponto é que essa frase é verdadeira? O que é que significa mudar o mundo?

E o humorista Ricardo Araújo Pereira ou seja, o Ricardo enquanto figura pública, sente esse poder?
Não. Eu sinto o poder da popularidade…

E vontade de exercer esse poder?
O poder da popularidade é chegar a um restaurante lotado e eles dizem “dê-me só um minuto que vou arranjar qualquer coisa”. Não vai muito além disto. Devo dizer-lhe que me tranquiliza, até porque já é mais do que mereço. O Expresso em outubro do ano passado publicou uma chamada de primeira página com a minha fotografia que dizia, “Será este homem o líder da oposição?” A reportagem falava com a comitiva do Presidente e de alguns ministérios, registava que alguns assessores tinham receio do que poderia acontecer durante o Isto é Gozar com Quem Trabalha, e temiam que o que eu disse sobre a reação do Marcelo Rebelo de Sousa aos casos de pedofilia na igreja pudesse beliscar-lhe a reputação. Eu fiz o costume: disse-lhe isto que lhe estou a dizer, que não acredito que o humor tenha o poder que as pessoas lhe atribuem…

"Só o mal é que tem graça. No paraíso não há nenhuma razão para rir. [...] As coisas boas a gente quer desfrutá-las sem pausa. O humor serve para responder à ideia de que estamos todos num avião que se vai despenhar."

E que de há uns anos para cá começou a repetir…
…muitas vezes. A reportagem acabava com, “o que é certo é que o Zelensky era humorista e agora é presidente, algum poder o humor deve ter”. Isto foi em outubro. Em dezembro, no mesmo Expresso, na mesma primeira página, há uma chamada sobre uma sondagem que dizia que a popularidade do Marcelo não tinha sido minimamente beliscada e que até havia portugueses que achavam que ele devia falar mais. E eu convivo muito bem com isso. Imagine que o humor tinha o poder que o Michael Moore fantasia que tem, de derrubar governos democraticamente eleitos. É evidente que um poder destes teria de ser regulado. Eu não podia estar à solta no meu escritório a escrever coisas que derrubam governos.

Seria uma responsabilidade muito maior.
Exato! E eu não quero ter responsabilidade nenhuma. Eu vim para esta profissão para não ter responsabilidade nenhuma. Eu sou um irresponsável. É isso que eu pratico.

Estava a lembrar-me das outras vezes que nos cruzámos em situação de entrevista e percebi que uma delas foi naquele que se revelaria o último programa de televisão do Pedro Rolo Duarte, com quem eu fazia dupla na altura, e a outra num programa sobre processo criativo gravado numa livraria histórica de Lisboa, a Campos Trindade, que entretanto fechou. São dois tipos de fim incomparáveis. Porém, ainda há pouco falava daquele que poderia ser o poder do humor, o de minimizar as tragédias: o humor ajuda de facto a lidar com o fim?
Acho que falo disso no livro, naquela entrevista que o Umberto Eco dá…

… e diz que somos os únicos animais que sabem que vão morrer.
E os únicos que riem. Os animais são capazes de alegria. A gente chega a casa e o nosso cão vem receber-nos à porta e está felicíssimo. Mas o riso humorístico não é de alegria. O riso humorístico é sobre coisas más.

É preciso trauma para haver humor?
A mim diziam muitas vezes “só te ris do mal”. Exato. Porque só o mal é que tem graça. No paraíso não há nenhuma razão para rir.

Seria possível fazer humor num mundo perfeito?
É muito improvável. Isto é sobre as nossas misérias, porque é uma forma de causar alívio, e não é preciso alívio para as coisas boas, antes pelo contrário. As coisas boas a gente quer desfrutá-las sem pausa. O humor serve para responder à ideia de que estamos todos num avião que se vai despenhar.

Portugal é um bom país para fazer comédia?
Diria que sim. Não me posso queixar, nem do país nem dos portugueses.

Nem das misérias?
Também escrevo na Folha de São Paulo. No consulado de Bolsonaro, ele disse a jornalistas que estavam a perguntar-lhe sobre umas aquisições absurdas de latas de leite condensado, não sei se era no exército, “metam as latas de leite condensado no cu”. A absoluta deselegância, a falta de respeito pela seriedade do cargo que é preciso para dizer uma coisa dessas… Cá, seria impensável. E ainda bem. A gente já faz uma festa quando o Marcelo diz, “cuidado com este decote, veja lá se se constipa”. Em Portugal, temos a dose certa de coisas que correm mal, às vezes até folcloricamente mal, como por exemplo desaparecerem armas da tropa e depois alguém devolve e vêm a mais. Epá, é um país encantador. E não estou a ser irónico.

Às vezes ponho-me a pensar, “Por que raio estou a fazer isto? Por que é que me pareceu tão atraente esta ideia?”

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Ao longo do livro vai comparando os humoristas a várias coisas, incluindo moscas, pessoas que tentam enganar a morte, e a defuntos. A dada altura, lê-se numa citação: “Ora parece-me que é possível detetar na disposição do defunto a disposição do humorista: o mesmo despudor a exibir as suas fraquezas, a mesma liberdade em relação aos constrangimentos sociais, o mesmo desdém sobre o que parece importante.” Pergunta: consegue fazer isto em relação a tudo, mesmo em relação ao Benfica?
Pois. Há sempre uma dificuldade, e o tema umas vezes é Deus, outras os símbolos nacionais, o partido ou o vólei de praia.

Porquê? Porque envolve paixão?
Porque é sagrado para as pessoas. É aquela frase que eu cresci a ouvir os padres que me educaram dizer, “Graças a Deus, muitas. Graças com Deus, nenhumas”. Há pessoas que substituem Deus pelo que quiserem e ficam melindradas quando o olhar humorístico pousa no seu Deus. Acho que já fiz coisas sobre a minha relação com o Benfica, que exploram o facto de eu ter consciência de que essa relação tem um lado ridículo muito acentuado.

Mas isso são piadas sobre si, não sobre o Benfica. Já alguma vez fez uma piada mesmo sobre o Benfica?
Estou a tentar lembrar-me… Uma das dificuldades — não quero fugir da sua pergunta — mas uma das dificuldade é a gente saber o que é o Benfica. É como o povo: o que é o povo? O povo enquanto ideia é uma coisa admirável, depois a sua materialização prática em grupos de pessoas que se aglomeram para ver acidentes e para insultar arguidos à porta do tribunal é menos interessante. É como o navio de Teseu. Vou fazer 50 anos para o ano. Nesse período, o Benfica já teve vários presidentes, já vi várias equipas passarem, acho que até o emblema já mudou ligeiramente. De que é que a gente está mesmo a falar quando fala no Benfica?

Isso parece uma resposta um bocado rebuscada para tentar não responder. Podemos concordar que é um tema difícil?
Para quem não sente o sofrimento é ridículo. Mas eu sou capaz de ver que o meu sofrimento é ridículo, e isso nem sequer se aplica só ao Benfica.

Como assim? O sofrimento em geral?
Sim, tenho capacidade para ver que o meu sofrimento em geral pode ser ridículo.

Porquê?
Primeiro porque é meu, e porque eu sou pequeno. Tendo em conta a dimensão das coisas, o meu sofrimento, exceto num caso, é ridículo. Há pessoas que olham para isso e pensam que é desumano. Não sei se não é o contrário, se não é mais humano, porque indica uma dificuldade em suportar o sofrimento. A exceção, o tal caso, acontece sempre que olho para a cara de alguém que perdeu um filho. Aquilo é insuportável. É uma coisa aflitiva. É inimaginável para mim. Se acontecesse alguma coisa às minhas filhas, eu não teria distância para olhar para esse sofrimento e dizer, “ah, pá, é ridículo”. É o momento em que não consigo conceber que o riso pode ser salvador.

É a pior dor.
No mito da deusa Deméter e da filha Perséfone, a Perséfone é raptada, e há um momento em que a Deméter se convence que perdeu a filha. Nessa altura, ela senta-se numa pedra que é a pedra agelasta, uma palavra que signfica ausência de riso. E eu acho isso muito significativo, que os gregos tenham associado ao momento em que uma pessoa perde um filho o momento em que o riso está ausente.

De onde vem esse fascínio pelos gregos? É porque eles já sabiam tudo?
Exatamente. Não só pela mitologia grega, mas pela cristã, por exemplo. Há muitas coisas em que a gente percebe que são sobre nós, que nos estão a explicar a nós próprios. No livro falo do Perseu e da Medusa. Fiquei tão contente quando pensei, “espera aí, isto serve que nem uma luva à ideia de o escudo de Perseu ser uma metáfora da atitude humorística em relação à vida.”

"Se a comédia é uma agressão, não nos salva, eticamente, de estarmos a agredir o António Costa. Só porque ele é o Primeiro-Ministro. Simplesmente porque não se agride pessoas. Essa ideia de que a comédia é uma agressão é muito popular. E não é nova."

E também refere a tese que diz que a Medusa é a imagem da morte.
Mais uma vez, reforça a ideia de que o humor serve para fazer face a esse medo.

É preciso ter muito medo para fazer humor?
Pelo menos é preciso que a reação ao medo seja essa. Não sei como é que outras pessoas que não fazem do humor uma segunda natureza suportam determinadas dificuldades. De certeza que têm outras estratégias. Eu não as conheço. Optei por esta. Dou-me muito bem com ela.

Neste momento, além da televisão, escreve uma crónica no Expresso, outra na Folha de São Paulo, faz este podcast e ainda dá aulas. Face a esta longa lista, a minha questão é: porquê tantas coisas? Calculo que o fim do mês não seja difícil. Não sei se faz tudo muito depressa. Este podcast tem ar de dar muito trabalho…
… tudo dá muito trabalho. Há um problema nisto da comédia: as coisas que digo ao domingo à noite têm tanto mais efeito quanto mais eu conseguir fingir que me estão a ocorrer naquela altura. E isso leva a que as pessoas confundam a aparência com a realidade. No outro dia houve uma pessoa que me perguntou, “ah, mas tu estás a ler o teleponto?” Eu não sabia se me devia sentir insultado ou lisonjeado. Por um lado, significa que finjo muito bem. Por outro, significa que alguém acha que é possível aquelas coisas estarem a ocorrer-me naquela altura. Que os meus amigos e eu não estivemos a tentar matar-nos para ter umas páginas para apresentar. Tudo me dá imenso trabalho. Acredito que aquilo que as pessoas chamam de talento é a repetição obsessiva do mesmo gesto. E até me aborrece quando artistas dizem, “eu sei lá quem é que mexe a mão quando eu estou a escrever: se sou eu, se é uma entidade divina”. No meu caso, sou eu que mexo a minha mão, e acho que se nota.

Voltando ao livro e ao Umberto Eco que fala no cómico, “como forma decisiva de corroer o fanatismo. Um sombra diabólica de suspeição por trás de todas as proclamações de verdade”. Normalmente associamos o fanatismo a países onde há pobreza, guerras, regimes totalitários. Há uns anos, surgiu no seio de uma classe progressista e em muitos casos privilegiada um movimento extremo a que se chamou “woke”, que tem vindo a definir vários interditos. São de alguma forma comparáveis estas duas formas de olhar para o humor?
Acho-os aflitivamente parecidos. Há uma pirâmide que anda a passar por e-mail, que tem na base, “rir de uma piada sexista”. Depois está, “apalpar sem consentimento”. A seguir, “abusar”. Depois, “violar” e, lá em cima, “matar”. Ou seja, rir de uma piada sexista está na base de um sistema que culmina com morte. E isto é uma coisa, digamos, progressista, de um cartunista catalão. E eu vi isto e pensei, “já ouvi isto. Onde é que foi?” Foi com São João Crisóstomo, no século IV. E e diz exatamente isto: “Cuidado, porque o riso gera palavras imponderadas. As palavras imponderadas geram insultos. Os insultos geram pancadaria, a pancadaria gera morte.” Quando verifico a familiaridade entre progressistas do século XXI e pais da igreja do século IV, fico um pouco perplexo.

Está preocupado?
Não. De um certo ponto de vista, é ótimo. Quanto mais interditos houver, melhor para a comédia. Lembro-me da beata Rádio Renascença colocar obstáculos ao riso. Hoje chegámos a um ponto ridículo em que há beatos ainda maiores, que estão incomodados com o riso provocado na beata Rádio Renascença pela Joana Marques. A Joana Marques é considerada um demónio. A comédia é desagradável. É assim. Aquilo é assim. Estas pessoas iam dar-se muito bem com o bibliotecário cego de O Nome da Rosa do Umberto Eco.

Porque é que a comédia incomoda tanto?
Tanto num caso como no outro — tanto do bibliotecário cego do Umberto Eco, como em, digamos, ativistas — porque receiam que as pessoas não temam aquilo que é sagrado. “Temam” na dupla a aceção de respeitar e recear. O riso corrói o respeito e o medo. Também há gente que entende o riso como uma agressão. Isso nota-se quando alguém diz uma piada no palco dos Óscares e outra pessoa levanta-se para a agredir. Isso nota-se quando as pessoas dizem a comédia é admissível desde que seja punching up, ou seja, desde que seja agredir quem está acima. Se a comédia é uma agressão, não nos salva, eticamente, de estarmos a agredir o António Costa. Só porque ele é o Primeiro-Ministro. Simplesmente porque não se agride pessoas. Essa ideia de que a comédia é uma agressão é muito popular. E não é nova.

"Há um problema nisto da comédia: as coisas que digo ao domingo à noite têm tanto mais efeito quanto mais eu conseguir fingir que me estão a ocorrer naquela altura"

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Junto das pessoas que acham que a comédia tem muito poder?
Junto das pessoas que acham que a comédia tem muito poder.

Este Ricardo Araújo Pereira pedagogo…
…Não, não! Epá, eu rejeito esse… Era uma das coisas que eu não queria. Estou a falar para mim próprio. Não podia estar mais próximo de um maluco. Para todos os efeitos, ninguém me está a ouvir. Portanto, não estou a ensinar um conjunto de alunos.

Bom, este livro tem uma tiragem de 20 mil exemplares e parece-me que também haverá algumas pessoas a ouvir o podcast.
Sim, é possível. Às vezes ponho-me a pensar, “Por que raio estou a fazer isto? Por que é que me pareceu tão atraente esta ideia?” Acho que uma das razões é aquela que está no capítulo que se chama Sobre Cozinhar Bebés, onde o Jonathan Swift propõe como solução para a fome na Irlanda os pobres darem os seus bebés a comer aos ricos. Se a gente olha para o texto e é capaz de perceber que ele não está de facto a dizer que o canibalismo de bebés é uma ideia atraente, temos de fazer o mesmo com o discurso humorístico em geral. Quando o panfleto saiu, em 1729, houve um conhecido que lhe escreveu a brincar, “olha, eu e a minha mulher já estamos a pensar em vender o nosso mais novo.” Não há registos de mais nada. Em 1984, ou seja, dois séculos depois, o Peter O’Toole resolve, na inauguração de um teatro, fazer uma leitura pública daquilo e muitos dos altos dignitários levantaram-se e saíram chocados por ele estar a ler um texto de 1729 que propunha cozinhar bebés. 1984 já é o nosso tempo. É uma espécie de analfabetismo humorístico. É não perceber o que se está a ouvir.

O seu objetivo é a alfabetização humorística?
Não é um objetivo. É a expressão de uma perplexidade. Naquele cartoon que faz a capa da New Yorker, que é o casal Obama como terroristas islâmicos, há pessoas que dizem, “eu percebo que aquilo é ironia, mas mesmo assim é inadmissível”. São pessoas que são analfabetas de propósito. Se calhar pensam que pessoas menos inteligentes do que elas não vão entender a ironia. Ou acham que sobre aquele assunto não se fazem ironias. Lá está, “Graças a Deus, muitas. Graças com Deus, nenhumas.”

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