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Mário Araújo fechou esta sexta-feira a ourivesaria e a casa onde mora com a mulher, em Velas, e saiu para uma parte mais segura da ilha
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Mário Araújo fechou esta sexta-feira a ourivesaria e a casa onde mora com a mulher, em Velas, e saiu para uma parte mais segura da ilha

Rui Soares

Mário Araújo fechou esta sexta-feira a ourivesaria e a casa onde mora com a mulher, em Velas, e saiu para uma parte mais segura da ilha

Rui Soares

São cada vez mais os que abandonam a ilha de São Jorge: "Quando deixar de tremer, a terra vai explodir para algum lado"

A terra está a tremer há demasiados dias — tal como em 1964. Por isso mesmo, são cada vez mais os que estão a abandonar São Jorge. Para quem fica, a ilha está preparada. E os sinos já têm cordas.

Menos de 24 horas depois de o governo dos Açores ter subido para 4 (em 5) o nível de alerta vulcânico na ilha de São Jorge, Mário Araújo começou a tratar de tudo para sair da freguesia de Velas, em plena zona sísmica.

Primeiro, fechou a porta da ourivesaria que detém há anos no centro da vila, a escassos metros da marina e do mar. A seguir, arrumou todas as peças de ouro e algumas de prata, “as de mais valor”, na caixa forte da loja e saiu, em direção à casa onde mora com a mulher, Maria José. Depois de trancarem tudo, na manhã desta sexta-feira, beberam um café no único estabelecimento ainda aberto nas Velas e puseram-se a caminho da Calheta, o outro concelho da ilha, que ao que tudo indica estará a salvo de uma erupção vulcânica.

“Já assisti a uma crise em 64, era miúdo, e, pelo que já li, tudo se encaminha para uma coisa parecida, portanto, a gente tem de se salvaguardar. As Velas são ilhas [localidades] cujos acessos podem ficar fechados”, explica ao Observador, ao telefone, já instalado na casa de uma prima, que fugiu da ilha para casa da filha, em São Miguel. Como ele, cerca de 1250 pessoas já tinham abandonado a ilha a meio desta sexta-feira.

“É engraçado, começou tal e qual como em 1964: começou mais forte nas Manadas e Urzelina e depois veio migrando até à zona das Velas. É muito parecido, muito parecido. E isso leva-me a ter medo, porque foi tal e qual assim. A terra tremeu muito tempo para aquele lado e depois deu forte cá em baixo, na vila. Quando a lava rompeu o manto deu um coice.”
Mário Araújo, morador de São Jorge

Tal como em 1964, quando tinha apenas cinco anos, não chegou a sair da ilha — mesmo quando tantos outros o fizeram, assustados pela crise sísmica que acabaria por destruir 400 casas e causar estragos em outras 900 —, também agora, que tem 63, Mário Araújo prefere manter-se em São Jorge. Há 58 anos, foi recebido, juntamente com os pais, na casa de uma família do Topo, no outro extremo da ilha, onde se mantiveram durante pelo menos um mês — no fim, ficaram amigos e o pai acabou por ser padrinho de um dos filhos.

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Uma das memórias que guarda dessa altura, conta, é a da cadência com que a terra começou a tremer até ao grande sismo que deixou a aldeia de Velas semi-destruída — não sem que antes o faroleiro da Ponta dos Capelinhos, que em 1957 tinha testemunhado a erupção que fez o vulcão com o mesmo nome brotar do mar do Faial, avisar a população do que estava por chegar. “Atendendo à forma como se estava a processar, ele disse: ‘Olhem que isto vai dar um sismo grande em pouco tempo’. Ele avisou e as pessoas vieram para a rua. E deu, mas deu mesmo. É engraçado, uma pessoa com a 4.ª classe”, recorda o ourives.

O que o assusta ainda mais são as semelhanças entre o que aconteceu em 1964 e aquilo que está agora a passar-se em São Jorge: “É engraçado, começou tal e qual como em 1964: começou mais forte nas Manadas e Urzelina e depois veio migrando até à zona das Velas. É muito parecido, muito parecido. E isso leva-me a ter medo, porque foi tal e qual assim. A terra tremeu muito tempo para aquele lado e depois deu forte cá em baixo, na vila. Quando a lava rompeu, o manto deu um coice.”

Cordas nos sinos, sete investigadores e dois sismógrafos extra

Os sinos das igrejas em São Jorge já estão preparados para o pior cenário possível. Se o enxame de sismos que tem abalado a ilha açoriana culminar numa erupção vulcânica ou num terramoto potente o suficiente para cortar a rede elétrica, André Silveira, presidente da Junta de Freguesia da Urzelina, tem de chegar à Igreja de São Mateus o mais depressa possível e sacudir a corda instalada esta quinta-feira para badalar o sino.

Assim que o alerta soar pela ilha, todos os habitantes que ainda não tenham sido retirados de casa por essa altura devem pegar nas mochilas de emergência e fugir para outras ilhas sob a coordenação da Proteção Civil. A bagagem, que deve ser preparada de antemão, por estes dias, deve conter um rádio portátil, lanterna elétrica, pilhas de reserva, um estojo com produtos essenciais de higiene pessoal, água, enlatados suficientes para dois a três dias, um kit de primeiros socorros, roupa e calçado quentes e confortáveis; e os documentos mais importantes protegidos num saco impermeável.

Ninguém vai poder avisar exatamente sobre o que aí vem. Mas sete elementos do Centro de Informação e Vigilância Sismovulcânica dos Açores (CIVISA) e do Instituto de Investigação em Vulcanologia e Avaliação de Riscos (IVAR) já estão no terreno à procura de pistas sobre o que está a acontecer no agitado mundo subterrâneo do arquipélago português. A equipa está a ser liderada pela geóloga Fátima Viveiros, que o Observador acompanhou no terreno e com quem conversou sobre as informações recolhidas no local.

Mário e Maria José fecharam a ourivesaria nas Velas e mudaram-se para a Calheta, para casa de uma prima que fugiu para São Miguel

Rui Soares

“É como se fossemos os médicos da Terra”, comparou a cientista: “Às vezes, as pessoas têm alguns sintomas de uma doença, mas não têm todos e isso não significa que não estejam doentes”. Com o planeta acontece o mesmo — e é por isso que a equipa de peritos está a percorrer os troços entre a freguesia de Velas e a Fajã do Ouvidor, na freguesia do Norte Grande, para analisar todas as manifestações que possam ajudar a explicar o que está a originar a crise sísmica que dura desde o passado sábado na ilha açoriana. E qualquer possível prenúncio do que aí vem.

Assim que se reuniram em São Jorge, os cientistas espalharam uma série de instrumentos para sondar a ilha com mais atenção: alargaram a rede de sismógrafos com mais duas estações, cujo tremelicar das agulhas denuncia a energia libertada das rochas em profundidade; instalaram recetores no solo para observar quaisquer deformações que os sismos tenham gerado nos terrenos; e todos os dias medem a temperatura do solo.

"Nós somos como os médicos da Terra. Às vezes as pessoas têm alguns sintomas de uma doença, mas não têm todos e isso não significa que não estejam doentes”
Fátima Viveiros, geóloga

De domingo, dia 19 de março, até à noite desta quinta-feira, os sete investigadores acumularam 92 medições e nenhuma delas indiciou quaisquer alterações em relações aos parâmetros normais: as variações nos níveis de dióxido de carbono na ilha foram as habituais, a temperatura do solo não parece estar a aumentar e a quantidade de gases reservados no solo — os cientistas olham especialmente para os óxidos de enxofre, gases normalmente expelidos pelos materiais magmáticos — também se mantém normal.

Mas “isto não significa que essas anomalias não estejam a acontecer”, sublinha Fátima Viveiros: podem estar a ocorrer em locais que os sete peritos não vasculharam ou até a escapar aos detetores científicos. Ao longo da última quinta-feira, estiveram num poço de maré encontrado com a ajuda de populares na Urzelina, num pasto na freguesia dos Rosais e num monte acima da vila das Velas.

“Quando estão para acontecer estas coisas, é melhor caminhar, não é ficar à espera. Porque depois acontece, a gente morre e acabou tudo.”

Só mesmo o cruzamento destes dados com os que estão a ser enviados por outras equipas ao CIVISA pode revelar um panorama mais detalhado do que está a acontecer a nível microscópio ou nas profundezas da terra em São Jorge. Isso e quaisquer informações adicionais a que o Observatório Vesuviano possa chegar. O laboratório em Itália, com quem as autoridades portuguesas trabalham há mais de duas décadas, está a receber amostras recolhidas na ilha para complementar as análises feitas nos Açores.

As últimas informações dizem, no entanto, que a crise sísmica está em níveis estáveis — e enquanto assim for, todas as medidas para a evacuação de casas, lares e aldeias continuam a ser meramente preventivas. Então, de onde vem o alarme?

Desde logo, do sítio de onde os terramotos estão a brotar. Os sismos podem ser de dois tipos: tectónicos ou vulcânicos. De acordo com o Instituto Português do Mar e da Atmosfera, os primeiros estão relacionados com movimentos de roturas em falhas ativas; e os segundos são os que estão associados a processos vulcânicos ativos.

Segundo as explicações de Fátima Viveiros, aqueles que estão a ser registados em São Jorge são uma mistura dos dois: os terramotos parecem ter origem na cedência das rochas à tensão a que estão sujeitas à conta do movimento das placas tectónicas — e não à ascensão de magma do manto para a crosta terrestre. Ainda assim, essa fratura está a acontecer nos materiais rochosos próximos do sistema vulcânico de São Jorge. E por isso merece atenção redobrada.

É também por isso que os registos de atividade sísmica mais recentes estão a ser observados de perto. Nos primeiros momentos, os abalos ocorriam entre os 10 e os 12km de profundidade. Mas, esta sexta-feira, já se verificaram registos entre os 6 e os 8km de profundidade. O significado desta “subida” do nível a que se registam estes abalos ainda não é totalmente claro, mas merece um acompanhamento constante — até porque são um dos sinais de maior alerta de que algo pode estar para acontecer.

José Furtado saiu esta sexta-feira de São Jorge para a casa da mulher, na ilha vizinha do Pico

Rui Soares

Por outro lado, as ciências da Terra não explicam tudo. Por entre a população de São Jorge, tal como Mário Araújo, o que não falta é quem se recorde daquela vez, em 1964, em que tiveram de fugir por causa da crise sísmica que, para lá da destruição que causou, acabou até por fazer surgir, ao largo da ilha, um vulcão submarino (que acabou por em nada afetar a vida dos ilhéus).

Mais ainda são os que se lembram do sismo de 7,2 na escala de Richter que, no primeiro dia de 1980, há já 42 anos, matou 51 pessoas na Terceira, 20 em São Jorge, e resultou na destruição de quase 16 mil casas. “Tinha 18 anos. A terra tremeu, caíram casas. Nesse dia fui dar a volta à ilha, com o presidente da Câmara, que por acaso já faleceu, estava tudo destruído. A casa do meu pai, como já era uma construção anti-sísmica, é que não sofreu nada”, recorda José Furtado Ataíde, 61 anos, ao telefone desde o Pico, para onde fugiu esta sexta-feira, no barco das 10h. “Quando estão para acontecer estas coisas, é melhor caminhar, não é ficar à espera. Porque depois acontece, a gente morre e acabou tudo.”

Em 1964, tinha três anos, saiu com os pais da Calheta num navio em direção à Terceira. Ficaram na ilha durante 6 ou 7 meses, não consegue precisar. Agora, no dia em que abandonou casa e carro para trás com uma mochila com roupa e “pouco mais”, o motorista ao serviço da Câmara Municipal das Velas está preparado para ficar longe “o tempo que for preciso”.

“Sustos passamos todos os dias, mas isto é diferente. Já há mais de duas semanas que sentimos sismos. Desde o princípio do ano para cá que a terra tem tremido. Há um, depois para, depois volta… Enquanto a terra tremer estamos felizes, agora quando ela deixar de tremer vai explodir para algum lado”, prevê, instalado na casa da mulher, natural do Pico, com a filha dela, o genro e o neto.

Para trás, em São Jorge, José Ataíde deixou vários irmãos, que não querem ou não podem deixar a ilha, por estarem de prevenção, nos respetivos trabalhos, ou porque têm animais por que olhar. “Há muita gente que teima em ficar, mas está complicado. Oxalá que não dê em nada e que não morra ninguém, mas primeiro eu e a minha vida, que é mais importante.”

Rogério Iori fechou os quatro negócios que tem nas Velas e rumou ao Pico, onde esta quinta-feira já tinha deixado mulher, filhos e três dos quatro cães em segurança

Rui Soares

Esta quinta-feira, Rogério Iori, de 42 anos, tratou, antes de mais nada, de colocar a mulher e os filhos a salvo, em casa de amigos, também na vizinha ilha do Pico. Depois voltou para casa, nas Velas, falou com os funcionários do restaurante, da pastelaria, da mercearia e da marisqueira de que é proprietário, todos no centro da vila, e decidiu que estava na hora de fechar por dois dias de férias extraordinários, a juntar à pausa habitual de domingo.

“Já apanhei alguns sismos, até mais fortes, mas nada desta dimensão, de ter de sair à pressa e deixar tudo para trás”, diz o brasileiro, natural do estado de São Paulo e a morar em São Jorge desde 2005, ao Observador. “Foi um pouco assustador, sobretudo por causa deles. A minha prioridade era deixar a minha mulher e os meus filhos em segurança. Fiquei para trás porque a nossa equipa de trabalho acaba por ser família também. Levei cinco para dormirem lá em casa, para estarmos todos perto uns dos outros. Hoje amanheceu o dia, deixei-lhes as chaves da minha casa, as chaves do meu carro e apanhei o barco”, conta o empresário, que diz que muita gente já abandonou a ilha, para o Pico, para o Faial e até para a Terceira, e que a freguesia de Velas, mesmo junto ao mar, está agora praticamente deserta.

“Deixei para trás o meu coração. Temos a nossa vida toda orientada lá, carro, casa, os negócios todos, ficou tudo para trás. Mas também estou à disposição e já deixei claro: se acontecer alguma coisa eu sou das primeiras pessoas a voltar para trás para ajudar”, garante.

Bianca e Cassiano conseguiram alojamento sem pagar renda no Faial. Se não fosse por Xavier, de apenas 2 meses, talvez não tivessem abandonado São Jorge

Rui Soares

Só os próximos três dias é que estão garantidos: vai ficar no Pico, com a mulher e os filhos, Giovanna, de 8 anos, Vitório, de 13, e os quatro cães da família, Chocolate, Pantufa, Faísca e Brazuca. Se nada acontecer entretanto, segunda-feira volta a meter-se no ferry para reabrir os negócios — mas sem as crianças, que tenciona deixar mais algum tempo longe de São Jorge, pelo sim pelo não.

Foi exatamente por causa do filho, de apenas 2 meses, que Bianca Pereira, 20 anos, Cassiano Rego, 24, decidiram abandonar a aldeia de Santo Amaro, também no concelho de Velas, rumo ao Faial. “Se estivéssemos lá sozinhos até nos conseguíamos salvar mas ele nem sequer anda”, diz ao Observador, ao telefone desde a Horta, onde conseguiram alojamento “por tempo indeterminado” e apenas a pagar contas, não renda de casa.

Também saíram esta sexta-feira, depois de perceberem que o restaurante onde Cassiano trabalha, tal como a maior parte dos estabelecimentos do concelho, ia mesmo fechar. Levaram roupa e as coisas do bebé Xavier, nascido no passado dia 4 de janeiro, justamente no hospital da capital faialense. Estão em segurança mas preocupados com a família que deixaram para trás — e cansados, muito cansados da agitação dos últimos anos. “Nesta altura, isto é complicado. É uma crise que pode ou não acontecer, até pode chegar a matar algumas pessoas. É triste porque já desde 2020 que estamos com o vírus e agora vem esta crise… É como o velho ditado diz: uma tempestade nunca vem só.”

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