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O antigo padre foi acusado de cinco crimes de abuso sexual
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O antigo padre foi acusado de cinco crimes de abuso sexual

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

O antigo padre foi acusado de cinco crimes de abuso sexual

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

"Senhor bispo, peço-lhe que faça algo." O longo percurso de uma vítima do padre Anastácio

AVISO

Este artigo contém linguagem e descrições que podem ferir a sensibilidade dos leitores

Vítima do padre Anastácio revelou o caso à Igreja e à Justiça. Mas, ao fim de vários anos, Anastácio só deixou de ser padre porque quis; e o processo judicial ainda nem chegou a julgamento.

Um ano depois de conseguir verbalizar a uma psicóloga as causas do sofrimento que o levaram a abandonar a escola, João ainda sentia medo de sair de casa. Desde que fora abusado sexualmente, primeiro por um amigo da família, depois por um padre, desenvolveu uma espécie de fobia que se manifestava nas tarefas mais simples, como ir à garagem buscar um alguidar com roupa. Esperava sempre que não estivesse ninguém a passar na rua e corria até lá, regressando rapidamente. Quando o seu caso chegou às autoridades, a sensação não foi imediatamente de alívio. As memórias do que viveu são de tanta tortura que a Polícia Judiciária do Funchal teve de interromper o depoimento e retomá-lo semanas depois.

O estado depressivo de João agravou-se em 2016, tinha ele 14 anos. Deixou de ir à escola, muitas vezes não queria sequer sair do quarto na casa onde vivia com a avó, a irmã e um tio – afilhado do padre José Anastácio. “Fiquei muito mal, não dormia quase nada, estava sempre a pensar naquilo, chorava muito, dava-me fraqueza nas pernas e alergias, pensei em suicidar-me e, pronto, comecei a ter medo de pessoas e deixei de sair de casa”, explicaria mais tarde durante uma perícia psicológica a que foi submetido.

Em casa todos associavam o seu comportamento a prováveis situações de bullying na escola. Pensavam que era lá que estava o problema que um par de anos antes ditara que tivesse acompanhamento psicológico. E só em 2017, depois de João pedir à avó para o levar a uma psicóloga, é que perceberam tudo – como se depreende nos depoimentos que constam no processo que o Observador consultou no tribunal do Funchal, e que levaram à acusação por cinco crimes de abuso sexual contra o padre José Anastácio Alves.

Vítima só conseguiu contar o que viveu por escrito

João não falou logo. Foram precisas algumas consultas para que a psicóloga que o seguia percebesse que a origem da sua depressão não estava naqueles episódios que o magoaram na escola. Até que, pelo mês de março, mudou de estratégia. Sugeriu-lhe que escrevesse uma carta para si próprio onde responderia às perguntas dela. Esse documento viria a ser, mais tarde, entregue ao Tribunal do Funchal, com a autorização de João.

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Nesse dia, ele contou apenas o primeiro episódio de violência de que fora alvo quando tinha apenas 11 anos. João, os avós e a irmã tinham ido ao aniversário do namorado da mãe — na casa onde este último vivia. Nessa morada vivia também o homem que o viria a agredir sexualmente. Um dos temas à mesa, quando jantavam, foi as suas faltas às aulas. E esse homem, de nome Gilberto, – que chegou a ser constituído arguido, mas que morreu antes da acusação – prontificou-se a ter uma conversa com o rapaz.

Estavam sozinhos num quarto da casa quando tudo se passou. João, sem saber bem o que estava a acontecer ao seu corpo, ainda fugiu para a cozinha, mas Gilberto perseguiu-o. Tentou beijá-lo, mas o rapaz conseguiu alcançar o quarto da mãe e deitar-se próximo dela. Só anos depois a mãe recordaria à polícia que, nessa noite, ouviu de facto João a gritar e a chorar. Mas achou que eram os seus já habituais ataques de ansiedade e nada perguntou.

[Jornalista Sónia Simões conta a história de João na Rádio Observador]

“João foi abusado, denunciou mas não há julgamento”

Uma revelação por escrito que demorou meses a sair

O desenlace da história que levou João àquele consultório para falar com uma psicóloga só se daria três meses depois, porque até ele próprio tinha dificuldade em processar o que se passava. “Não estava a acreditar que estava a acontecer outra vez”, chegou a dizer mais tarde, referindo-se ao que voltaria a viver.

Cerca de um ano antes daquela consulta, em 2016, foi novamente abusado por outro adulto, mas na casa da avó, onde vivia. Desta vez por um amigo da avó, visita frequente há anos, considerado membro da família. Acabaria por contar, em consultas posteriores, tratar-se do padre Anastácio, o homem que na última visita a casa tentou não enfrentar com o olhar, temendo ser vítima de tudo outra vez.

A 16 de fevereiro de 2023 o antigo padre tentou ser formalmente constituído arguido na PGR. Estava em parte incerta desde 2018

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Quando a psicóloga percebeu que o caso clínico que tinha em mãos estava associado a vários crimes sentiu um conflito “ético”, como contaria anos depois às autoridades. E acabaria por encontrar uma solução: tinham que revelar o segredo à família de João e, depois, escolher um de três caminhos: ou contar à polícia, ou ao Tribunal de Família e Menores ou à Comissão de Proteção de Menores.

O primeiro passo, porém, foi contar à avó. João guardara para si aquele segredo temendo que a revelação pudesse roubar-lhe a avó que sempre cuidara dele. Tinha medo “que a avó morresse com o susto”, como a própria contou mais tarde à Polícia Judiciária.

"Este acontecimento marcou a minha vida de uma maneira muito má. Inclusivamente não consigo ir à escola e ter uma vida social normal. Imagino que consigo compreender tudo o que vivi e vivo. Por isso, peço-lhe para que faça, concretamente, algo para para-lo e fazer justiça"
Carta de João ao bispo do Funchal

A psicóloga esteve sempre presente nesse momento e João optou também por escrever o que vivera. Foi uma libertação. Ambos choraram. A avó percebeu que, afinal, os problemas do neto não estavam na escola, mas na sua própria casa. Tudo ficou mais claro.

De facto, o neto até então faltara várias vezes à escola e desde 2016 abandonara mesmo os estudos, refugiando-se em casa e recusando estar com outras pessoas. Um esforço de memória trouxe-lhe mesmo a recordação de, naquela noite, ter percebido que o padre Anastácio se ausentou por uns 15 minutos. E que o período negro de João foi vivido depois, com noites mal dormidas, com sonhos em que soltava gritos e lágrimas, e com manhãs extenuantes que a impediam de o obrigar a ir à escola. Ela não queria acreditar que o homem que conheceu quando era ainda catequista, e que até tinha convidado para padrinho do seu filho, era afinal um abusador sexual.

Padre estava numa paróquia perto de Paris e já tinha sido denunciado duas vezes

Enquanto João partilhava um “segredo” tão bem guardado com a família, Anastácio Alves estava ao serviço pastoral de uma paróquia da comunidade portuguesa em Gentilly, arredores de Paris, em França. Uma colocação que havia sido consequência do seu passado, mas que só a Igreja conhecia.

Anastácio Alves já tinha sido alvo de dois processos-crime por denúncias idênticas. No primeiro caso, em 2005, a diocese decidiu mudar o padre de paróquia. No segundo, dois anos depois, mandou-o para a Suíça e apenas depois foi colocado em França, como o Observador noticiou em 2019. Informações que só mais tarde chegariam ao conhecimento público — Anastácio Alves era uma pessoa apreciada por todos, escrevia uma coluna num jornal regional e era convidado para comparecer em vários eventos públicos.

Padre foi denunciado duas vezes, mas só à terceira a Igreja agiu. Agora, desapareceu

A família de João pensava até visitar o padre em Paris. Foi, aliás, com o argumento de pesquisar viagens que, naquela noite, Anastácio se viu sozinho no quarto com João. E abusou dele.

Durante este período de revelação, a psicóloga de João sugeriu-lhe também que escrevesse uma carta à diocese do Funchal a dar conta do que tinha vivido. Nesse documento, que também consta no processo, João descrevia como tinha sido abusado por Anastácio Alves, amigo de longa data da sua família, e de como não tinha qualquer pretensão que o caso viesse a público. Pedia, porém, ao bispo que tomasse medidas para proteger outras crianças. Explicava que tinha desenterrado estas memórias com a ajuda de uma psicóloga e que tinha decidido denunciá-las à igreja com o apoio da família. Não pedia mais nada, se não justiça.

Carta ao senhor bispo:
(…)
Eu gostaria de pedir a sua colaboração e a da Igreja para o manter longe de menores. Também gostaria de pedir que o tirassem de ser padre. Antes eu ia à Igreja e à catequese, mas desde que isso aconteceu, que não me sinto bem a ir (sinto nojo, repulsa e revolta). Este acontecimento marcou a minha vida de uma maneira muito má. Inclusivamente não consigo ir à escola e ter uma vida social normal. Imagino que consiga compreender tudo o que vivi e vivo. Por isso, peço-lhe para que faça, concretamente, algo para para-lo e fazer justiça.
(…)
Esta carta resulta de um grande ato de coragem que eu tive de ganhar, pelo que peço a sua adequada e devida atenção
Cumprimentos
Jovem anónimo

Carta chegou à diocese em novembro de 2017. Padre só foi afastado nove meses depois

Quando o então bispo do Funchal, D. António Carrilho, recebeu a carta, conferiu-lhe “credibilidade”, apesar do anonimato, como viria a dizer mais tarde à psicóloga de João que o procurou. Estávamos em novembro de 2017, era pelo menos a terceira queixa que chegava à Igreja contra aquele padre, mas mesmo assim nada foi comunicado à polícia para investigar as suspeitas de abusos ocorridos cerca de um ano antes na casa de uma família que Anastácio Alves e que os seus familiares tão bem conheciam. O Observador tentou saber se foi aberto nesta altura algum processo canónico contra o padre, ou depois, mas a diocese do Funchal disse nada ter a declarar sobre o tema.

O ano chegou ao fim e, durante a terapia de João, a psicóloga quis saber se aquela denúncia tinha tido algum eco, como explicou no seu depoimento à Polícia Judiciária já em meados de 2019. Pediu uma audiência ao bispo, explicou-lhe o contexto daquele encontro e perguntou-lhe pela possibilidade de a Igreja comunicar aqueles factos às autoridades. A “justiça será feita nos órgãos próprios da sociedade”, ter-lhe-á respondido o bispo, entretanto substituído pelo atual bispo, Nuno Brás.

"Depois destes seis anos como vosso padre, agradeço-vos pela comunidade maravilhosa que sois, testemunhando a fé católica de uma forma bem nossa, dos Portugueses. Obrigado pela vossa amizade e pelas vossas orações"
Mensagem de despedida de José Anastácio Alves

Só mais tarde D. António Carrilho voltaria ao contacto. Chamá-la-ia para comunicar que já tinha falado com a pessoa em causa e tomado algumas medidas. Garantia que o padre tinha sido retirado do sítio onde exercia funções. O site da paróquia para a comunidade portuguesa de Gentilly dá conta desta mudança numa altura em que ainda ninguém estava atento ao caso. O próprio José Anastácio Alves comunicou a sua saída por esta via. Sob argumento de que a sua missão tinha chegado ao fim e que seria agora substituído, agradecia a todos a sua estadia naquela paróquia. “Depois destes seis anos como vosso padre, agradeço-vos pela comunidade maravilhosa que sois, testemunhando a fé católica de uma forma bem nossa, dos Portugueses. Obrigado pela vossa amizade e pelas vossas orações. Obrigado por tudo o que construímos juntos”, escrevia a 23 de junho de 2018, o dia em que ainda celebrou uma missa com o seu sucessor e participou num convívio que assinalava a sua despedida.

Anastácio deixou de ser padre em Gentilly, mas por ali permaneceu pelo menos até outubro de 2018, segundo uma resposta da diocese do Funchal que consta no processo — pelo qual o ex-padre responderá por cinco crimes de abuso sexual. E só por esta altura desapareceu. E não foi por acaso. Semanas antes o processo-crime de que fora alvo era noticiado por um jornal madeirense. E D. António Carrilho assume à imprensa que “todos os casos que sejam do conhecimento da Diocese levam à instauração e instrução de processos específicos tendo em vista o apuramento da verdade”.

O processo corre no Ministério Público do Funchal desde 2018. A acusação foi proferida em 2022

Gregorio Cunha

A terceira queixa contra Anastácio entra no MP em julho de 2019

A informação também não chegara a público por acaso. Antes, entrara no Ministério Público do Funchal uma comunicação de uma das comissões de Proteção de Crianças e Jovens do Funchal. Com data de 13 de julho de 2018 e assinada pela respetiva presidente da comissão (cujo nome, como todos os outros do processo, foi ocultado pelo tribunal para a consulta do Observador), a entidade dava conta do caso de João, sinalizado pela escola por abandono escolar e seguido pela tal pedopsiquiatra a quem, entretanto, João também contou o que passara.

A comissão revelava assim que a criança, quando acompanhada psicologicamente, denunciara ter sido vítima de abusos sexuais aos 11 anos e no verão de 2016. Nessa carta, porém, referia-se que a criança não sabia o nome do abusador neste caso, sabendo apenas ser sacerdote.

A comissão justificava ainda que a avó e a mãe da criança “ficaram muito abaladas” mas que, “para proteção do jovem, optaram por não apresentar queixa às autoridades”. Desconheciam porém se a psicóloga e a pedopsiquiatra teriam formalizado alguma queixa. Não tinham.

Não passou uma semana para a procuradora Ana Pires delegar a investigação na Polícia Judiciária. Dias depois, dois inspetores da PJ tinham João à sua frente para ouvir da sua boca aquilo que tinha vivido, acompanhado da psicóloga que descobrira os verdadeiros motivos da sua depressão.

Depoimento de João teve que ser interrompido por “dificuldade em lidar com o sofrimento”

Não foi um depoimento fácil. João contou o que tinha sofrido aos 11 anos às mãos do homem que partilhava casa com o namorado da mãe. Explicou como guardou tudo para si nos anos seguintes, mesmo chegando a cruzar-se com o agressor pelas ruas do Funchal. E, a pedido da PJ, desenhou num papel a disposição da casa onde tudo aconteceu e onde estava cada uma das pessoas que naquela noite dormiam ali. Depois foi consumido por um sofrimento tal que a polícia foi obrigada a interromper.

“O depoente, neste momento revelou algum descontrolo emocional, fruto da sua dificuldade em lidar com o sofrimento que a revelação destes assuntos lhe provoca, pelo que foi decidido interromper o presente auto, prevendo-se a sua continuação oportunamente”, lê-se no interrogatório, terminado pelas 12h30.

A inquirição só seria retomada a 4 de setembro de 2018. Aqui, João contou como voltou a ser abusado um par de anos depois, desta vez por um sacerdote amigo da família, de nome José Anastácio Alves. Recordou como ele se aproximou enquanto estava no computador. E descreveu os abusos sofridos. Ainda nessa noite, aproveitando que a avó ia à garagem buscar algo para oferecer ao padre, Anastácio terá ainda tentado beijar o rapaz. “Desde então o depoente não consegue encarar este indivíduo, sempre que ele vai a casa dos avós, ficando com a cabeça baixa durante o tempo todo, nomeadamente à mesa do jantar”, transcreveu a PJ.

João contou também que antes desse episódio era frequente que Anastácio Alves o passeasse a ele e à irmã de carro até ao cabo Girão. Nesses passeios, sempre que ele ia à frente, o padre colocava-lhe a mão na perna – o que não fazia à irmã. A irmã, também, chamada a testemunhar, confirmaria esta diferença de tratamento entre ambos por parte do padre.

Só mais tarde, ouvido perante uma juíza de instrução num depoimento gravado para memória futura, João libertaria mais memórias. Afinal aquela não tinha sido a primeira vez que o padre tinha abusado dele. E os abusos foram-se agravando com o passar do tempo. “E porque não contou nada depois de Gilberto?”, perguntaram-lhe. “Achava que conseguia ultrapassar sozinho”, respondeu.

Durante a avaliação psicológica forense a que foi submetido para validar a credibilidade do seu depoimento, apesar de desconfortável por voltar a repetir tudo de novo, João falou como o adulto que será hoje. “Eu ficava tipo congelado, paralisado, não conseguia andar, a minha cabeça estava cheia de sentimentos, medo dele, raiva por estar a acontecer e depois houve alturas em que eu já não sabia se aquilo era normal ou não”.

No último abuso, no verão de 2016, João sentiu-se mesmo “mal e revoltado, sujo”. “Acho que só aqui percebi a gravidade do que ele andava a fazer comigo. Quando ele ia embora eu avisei para ele não me tocar mais”. Foi o gatilho para se recolher em casa cheio de medo e perceber que precisava de ajuda médica.

Sé do Funchal, ou Igreja Paroquial da Sé, ou Igreja de Nossa Senhora da Assunção, Madeira, 21 de setembro de 2017. HOMEM DE GOUVEIA/LUSA

A diocese do Funchal recebeu uma carta anónima da vítima em novembro de 2017

HOMEM DE GOUVEIA/LUSA

Uma investigação de quase quatro anos

Nos meses que se seguiram, a Polícia Judiciária ouviu também a psicóloga, a avó, a mãe, o namorado da mãe e a irmã de João, ao mesmo tempo que tentava localizar sem sucesso Gilberto, o outro abusador do caso. Gilberto não estava em casa, as cartas acumulavam-se na caixa do correio, e só mais tarde os investigadores perceberam que tinha sido internado na sequência de um quadro que resultava de alcoolismo. Este suspeito ainda foi mais tarde constituído arguido e informado da investigação, mas recusou sempre prestar declarações sobre aquela noite. Acabou por morrer em janeiro de 2021, mais de um ano antes de ser proferida a acusação.

“A investigação não conseguiu até este momento localizar o suspeito autor deste ultimo abuso sexual, pois que o Padre Anastácio Alves, afastado pela hierarquia eclesiástica das suas funções, em Paris, em vez de procurar a justiça para o ilibar de qualquer injusta decisão tomada pelas suas “chefias”, antes aproveitou a oportunidade para se eximir à eventual ação de justiça"
Polícia Judiciária no relatório final

Em janeiro de 2019 ninguém sabia onde estava o padre Anastácio. O sacerdote desapareceu misteriosamente deixando o carro que costumava usar em França estacionado na paróquia de Gentilly depois de terem vindo a público notícias sobre a investigação. O Observador publicava então a grande investigação sobre abusos sexuais na Igreja, “Em Silêncio“, onde também contava a sua história. Nessa altura mudou também o procurador no processo que corria no Ministério Público do Funchal. O caso passou, aliás, pelas mãos de quatro procuradores diferentes. E seria Miguel do Carmo Reis quem, a 22 de janeiro de 2019, acabaria por pedir ao juiz de instrução que decretasse o segredo de justiça no processo.

“Atenta a natureza e a gravidade dos crimes de abuso sexual de crianças, geradores de grande alarme social e atentas as dificuldades na aquisição e conservação da prova, decorrente do seu modo de execução, entende o Ministério Público que o acesso ilimitado aos autos, nesta fase, é contrário aos interesses da investigação, dado que o simples conhecimento da pendência deste inquérito será suficiente para levar os denunciantes a dissiparem prova”, lê-se no despacho do procurador.

PJ entregou relatório final com proposta de acusação em 2019, mas MP continuou a investigar mais dois anos

Inquiridos a vítima e os seus familiares e alertados para não partilharem aquelas informações com mais ninguém, para não prejudicar a investigação, a PJ focou-se sobretudo no suspeito que viveria ainda no Funchal, Gilberto. E aguardou que Anastácio pudesse ainda aparecer na Madeira para ser constituído arguido. A PJ sabia apenas pela imprensa que o sacerdote desaparecera em setembro de 2018, depois de cessar funções na paróquia de Gentilly.

D. António Carrilho decidiu afastar Anastácio Alves de funções depois de uma conversa com a psicóloga da vítima. Mas o padre manteve-se por lá quatro meses

Só em maio de 2019, em resposta ao Ministério Público que queria saber como estava a correr o inquérito, a Judiciária disse estar a fazer “diligências” para localizar Anastácio Alves. Foi por esta altura que dois inspetores se deslocaram a Santa Cruz e perceberam que a casa do ainda padre tinha sido arrendada em novembro. A irmã, que vive na casa ao lado, acabaria por declarar nada saber sobre José Anastácio desde agosto (dois meses depois de ter sido afastado da paróquia), mas que na qualidade de sua procuradora fora ela que arrendara a casa. A PJ falou também com a tia de Anastácio, que costumava acompanhá-lo a casa de João, mas das suas declarações não retirou qualquer dado sobre o paradeiro do padre suspeito.

A Polícia Judiciária ainda enviou para a GNR, para a PSP, para o SEF e para a Unidade de Informação um pedido de localização de paradeiro e fez vigilâncias em território madeirense para perceber se Anastácio por ali andava. Mas não havia sinal dele.

E, em finais de junho, entregava o relatório final da sua investigação e propunha ao Ministério Público que acusasse ambos os suspeitos. “A prova produzida é fortemente consolidada pela coerência dos discursos, quando à localização espaço-temporal dos acontecimentos”, escreviam. Todas as testemunhas confirmaram o jantar, o discurso da vítima foi constante e o trauma que vive é demonstrativo do que sofreu.

“A investigação não conseguiu até este momento localizar o suspeito autor deste ultimo abuso sexual, pois que o Padre Anastácio Alves, afastado pela hierarquia eclesiástica das suas funções, em Paris, em vez de procurar a justiça para o ilibar de qualquer injusta decisão tomada pelas suas “chefias”, antes aproveitou a oportunidade para se eximir à eventual ação de justiça e deixou de dar notícias à própria família, a fazermos fé das informações recolhidas junto desta”, lia-se no relatório, que no final sugeria ao Ministério Público um pedido de cooperação internacional, com abrangência do espaço europeu, e perícia psicológica à vítima.

Meses depois, chegava à diocese do Funchal uma carta escrita pelo padre José Anastácio Alves a renunciar às suas funções clericais.

As declarações para memória futura perante uma juíza de instrução criminal foram registadas a 3 de outubro de 2019, mas esta não seria a última vez que João tocaria no tema. Numa altura em que recuperava lentamente em casa, aproveitando a hipótese de frequentar as aulas à distância, João foi novamente notificado para comparecer, a 11 de maio de 2020, num gabinete médico-legal a fim de fazer um exame de psicologia forense que iria avaliar se estaria a dizer a verdade.

Por esta altura, um despacho do Ministério Público reconhecia que não sabendo do paradeiro do suspeito seria “inviável o recurso a meios de cooperação judiciária internacional”, justificando assim a ausência de qualquer pedido de ajuda internacional para localizar o padre.

Anastácio Alves renovou cartão de cidadão na Figueira da Foz em 2020

Além desta diligência, o procurador do Ministério Público (MP) pediu outras. Mas nenhumas passaram pela PJ, que terminou o seu trabalho no processo quando entregou o relatório. O MP mandou averiguar as bases disponíveis sobre o paradeiro de Anastácio Alves, pediu informação fiscal, na segurança social, no sistema de saúde regional e só quando pediu a identificação civil do padre percebeu que havia um sinal de vida. Anastácio Alves tinha renovado o cartão de cidadão a 20 de julho de 2020.

O MP quis saber mais e pediu pormenores sobre esse dia à Direção Regional da Administração da Justiça. A resposta chegaria a 25 de março de 2021: o cartão tinha sido levantado a 10 de setembro de 2020 na Conservatório do Registo civil da Figueira da Foz. Anastácio estaria naquela altura em território nacional, no continente.

O número de telefone associado a este pedido levou a outras diligências. O MP conseguiu descobrir de que contas tinham sido feitos os últimos carregamentos daquele cartão e os titulares eram duas pessoas da família de Anastácio, a viver na Madeira. Ainda assim a PJ não foi chamada. O MP mandou a PSP perguntar a estes familiares onde estava este cartão telefónico. Mas eles responderam que estava na sua posse e que provavelmente Anastácio tinha associado esse número ao cartão de cidadão por não ter outro.

Em novembro de 2021 o processo passou a estar nas mãos da procuradora Ana Francisca Fernandes, que decide pela primeira vez no caso perguntar à Igreja se sabia de Anastácio. E aos serviços consulares em França se a morada de Anastácio continuaria a ser em Gentilly e que outras moradas teria indicado em território francês.

Padre ficou em Gentilly mesmo depois de afastado de funções

A resposta da diocese do Funchal chegou pela mão do secretário episcopal e revelava que o padre Anastácio residiu até outubro de 2018 na comunidade portuguesa em Gentilly, data em que deixou de saber do seu paradeiro. Anastácio tinha sido afastado de funções em junho, mas permaneceu na diocese até o processo de que era alvo surgir pela primeira vez na comunicação social.

Do consulado, a resposta também não trouxe grandes frutos. Anastácio estava inscrito naqueles serviços desde abril de 2018, a morada que indicara era a de Gentilly. Mais: como o sistema informático tinha sido alterado em abril de 2021, não permitia consultar registos anteriores.

Só depois desta resposta, a procuradora decidiu acusar formalmente por cinco crimes de abuso sexual de criança Anastácio Alves, em março de 2022, mantendo no entanto o processo em segredo externo. Agora o objetivo era constituir formalmente arguido o antigo padre (que se demitira de funções em setembro de 2019 através de uma carta entregue na diocese do Funchal), aplicar-lhe o Termo de Identidade e Residência (TIR) — a medida de coação menos gravosa — e notificá-lo da acusação.

Mesmo sem qualquer indicação de que permanecia em França e ignorando até a sua localização na Figueira da Foz, o MP decidiu enviar uma carta rogatória para França. “Expeça rogatória à autoridade judiciária francesa a fim de notificar o arguido do despacho de acusação pública que contra si foi proferida”, refere o documento, que solicita que preste TIR numa morada em Portugal.

Não foi fácil encontrar um tradutor de francês que fizesse a carta rapidamente, mas ela acabaria por ser traduzida. A carta rogatória terá saído do processo a 11 de outubro de 2022, para depois ser enviada para França através do Gabinete de Cooperação Internacional  – um dos locais onde, aliás, recentemente Anastácio se dirigiu em Lisboa para ser constituído arguido, acompanhado dos seus advogados, e onde lhe disseram que tinha que ser em França, como o Observador noticiou.

Padre Anastácio confessa abuso sexual de menores, tenta entregar-se à PGR, mas não consegue

Sem resposta das autoridades francesas, o que segundo fontes contactadas pelo Observador poderá levar meses, não poderia ser declarada a contumácia do arguido e o processo ficaria parado. E era esta a razão para que, quase um ano depois de proferida a acusação, o processo ainda não tivesse seguido para julgamento.

Tudo mudou, porém, quando o ex-padre foi à PGR e depois forneceu finalmente ao Funchal uma morada em território nacional para ser notificado, em São Martinho do Porto – a cerca de 100 quilómetros de onde renovou o cartão de cidadão em 2020. E, agora, o processo poderá avançar.

Em 2020 João sentia-se melhor. Mas, segundo disse aos peritos que o avaliaram, persistia ainda uma “paranoia”. Continuava a sentir medo — só esperava que Gilberto e o padre Anastácio sofressem “tanto quanto o fizeram sofrer” e que fossem “presos” para que não [fizessem] isto a mais ninguém”. Gilberto morreu entretanto. Anastácio foi acusado e permanece em liberdade.

*João é um nome fictício usado para proteger a identidade da vítima. As moradas também foram salvaguardadas

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