Foi no seu laboratório, no Instituto de Medicina Molecular, que Maria Manuel Mota nos recebeu. Sem bata vestida, mas com a precisão de uma verdadeira cientista, consegue definir-se em poucas palavras, mas suficientes: “A Maria Manuel Mota é uma mulher com 52 anos, que é cientista e também diretora do Instituto Molecular, mas que acima de tudo é cientista e que quer continuar a ser cientista”. Mas cientista que é cientista, sempre o quis ser? É igualmente com bastante tranquilidade e sem discursos premeditados que afirma que não. Nas suas palavras, quando era mais nova, não sabia bem o que era ser cientista. “Acho que a primeira recordação que tenho é andar no primeiro ano de ciclo, ou no quinto ano, em que vimos ao microscópio a casca de uma cebola e eu adorei, fiquei fascinada. Havia um lado meu de gostar de coisas pequenas que se veem ao microscópio, da parte solar, etc. Depois, já mais tarde, na escola secundária, achava que seria matemática o que eu iria estudar. Mas é verdade que no 11º e 12º tive dois professores de Biologia e demos muita área de genética, área molecular, área celular e que eu achei que gostaria de entrar por aí. E, portanto, eu fiz o curso de Biologia. Depois do curso, acabei por ingressar num mestrado de Imunologia”, conta.
Foi durante o período de mestrado, graças ao contacto com outros cientistas que rumavam até à sua Universidade, que Maria realmente percebeu que estava no sítio certo. “Havia módulos que duravam duas semanas, outros que duravam uma semana. E nós recebíamos uma ou duas pessoas novas que estavam connosco, falavam das áreas em que eles trabalhavam. E mais ou menos em abril, nós tivemos um curso que foi dedicado a parasitas e foi aí que eu percebi que o que eu gostava mesmo era de perceber como é que dois organismos, no fundo, interagem. Um vive à custa do outro, prejudica-o – é por isso que se chama parasita – e, no entanto, a evolução permitiu que os dois vivam juntos. E ele permite que este parasita viva dentro dele e ajuda-o, aliás, permite que ele viva e sobreviva e se replique. Eu fiquei fascinada com esse aspeto e, a partir daí, fui sempre trabalhando em malária e nunca deixei de o fazer”, relata.
O que é certo é que o seu trabalho tem vindo a falar por si e muitas têm sido as conquistas e reconhecimentos que foram pautando o percurso. Contra todas as suas expectativas, é desde 2014 que assume o cargo de Diretora do Instituto de Medicina Molecular. Ainda que seja uma posição de destaque, a cientista confessa que não estava propriamente nos seus planos: “Eu acho que sou uma pessoa muito ambiciosa, portanto não quero mostrar modéstia, porque eu adorava receber o Prémio Nobel, ok? Portanto a ambição vai a esse ponto. Mas eu sempre tive muito prazer a fazer ciência. E, portanto, eu, com toda a franqueza, a ser diretora, achava que só me ia tirar tempo daquilo que eu mais gostava de fazer. E é verdade, isso aconteceu. No fundo, veio o convite e as circunstâncias fizeram com que eu me tornasse diretora do Instituto de Ciência Molecular. No início não estava muito certa, primeiro que tinha a capacidade de o fazer, e segundo de que iria gostar. Tenho que dizer que, hoje em dia, foi uma experiência fantástica fazê-lo e gosto imenso de ser diretora também. Claro que me tirou tempo à minha ciência, mas até recentemente acho que tenho conseguido conciliar as coisas”.
Quando questionada sobre o que a poderá ter trazido até aqui, a resposta é dada de forma simples, mas com uma pitada de humor: foram as perguntas. “O mote do IMM desde a minha direção é Chasing Questions. E não é só procurarmos perguntas, é perseguirmos perguntas. Na ciência é isso mesmo, nós precisamos de ter as perguntas certas. Eu acho que a minha carreira foi sempre à volta de perguntas, foi sempre a minha curiosidade que me levou de um assunto ao outro”, afirma, falando em seguida um pouco mais daquilo que tem sido o trabalho feito até aqui: “Em termos do mundo malária, o que nós fazemos é, no fundo, gerar conhecimento. Para mim, isso é o que me fascina. O que nós temos feito nos últimos anos é fazer várias descobertas e temos feito algumas super importantes no sentido de coisas que nós não tínhamos sequer imaginado. Já na área do Instituto, temos 32 grupos de investigação científica em áreas muito diversas, que vão desde o trabalho em malária, pessoas que trabalham em HIV, pessoas que trabalham em vírus ou em bactérias, portanto, temos várias pessoas que trabalham em doenças infeciosas, pessoas que trabalham em doenças neurodegenerativas, ou pessoas que trabalham em cancro, doenças metabólicas, etc. Uns trabalham em doenças como eu, eu trabalho com a doença, mas o que me interessa é a biologia; outros trabalham mesmo em doenças mais aplicadas, ou seja, com uma aplicabilidade maior, mas, também, imensas outras trabalham em áreas que não têm nada a ver com a doença. Há uma gama enorme, em 32 grupos, de pessoas que vão desde as perguntas mais fundamentais da biologia até algo que pode ser aplicado em seres humanos. É este grande espetro que nós gostamos que o IMM tenha”, remata.
Ouvindo o seu discurso, é fácil relembrarmo-nos (caso andemos mais distraídos) da importância da área da Ciência na sociedade. Contudo, Maria Manuel Mota não olha nunca para a profissão dessa forma. Para si, o trabalho é de facto importante, mas o tempo deve ser passado a colocá-lo em prática: “As maiores descobertas não se fizeram a pensar: nós vamos fazer isto. As maiores descobertas fizeram-se a pensar: uau, o que é isto? O que é que eu acabei de ver? Como é que vou interpretar isto? A nossa sociedade deve dar espaço para a nossa curiosidade nos deixar levar por caminhos nunca antes caminhados. Acho que é preciso ter espaço para isto”.
Maria Manuel Mota é um nome com história, mas acima de tudo muito trabalho. Se receber o Prémio Dona Antónia é um símbolo de empreendedorismo, mas também de empoderamento feminino, olhando para trás, a cientista afirma que ser-se mulher num mundo como o que habita, nem sempre é fácil. “Os números falam por si”, começa por dizer, acrescentando: “As pessoas perguntam-me muito “Alguma vez te sentiste discriminada por ser mulher?” e eu costumava responder que não. É verdade que nunca senti discriminação, sempre fiz aquilo que me apeteceu. Mas eu fazer aquilo que me apeteceu é diferente de eu ter sido discriminada ou não. Depois de a pessoa começar a pensar, consegue dar muitos exemplos. Obviamente há diferenças claras entre homens e mulheres. Está impregnado na nossa sociedade, é muito difícil nós fazermos com que isto não esteja lá. Mas lutarmos contra é importantíssimo, mais uma vez por causa da diversidade. Porque senão estamos a perder 50% da população. É uma questão matemática. Se nós queremos encontrar os mais inteligentes, os mais criativos, etc., é óbvio que se nós não contarmos com 50% da população, é um problema que temos”.
Na hora de receber o Prémio, mais do que um reconhecimento: o incentivo
As provas estão mais do que dadas na hora de olhar para a carreira de Maria Manuel Mota. Mas se nunca é demais lutar-se pela igualdade, também não o é no que diz respeito ao reconhecimento. É precisamente nesse sentido que, em 2020, a cientista recebe o Prémio Consagração de Carreira, dos Prémios Dona Antónia, promovidos anualmente pela Sogrape. De sorriso no rosto, recorda tanto o dia, como a importância de o ter recebido: “Tem um gosto muito, muito especial, sem dúvida. Eu adorei receber este prémio. Claro que há um lado de vaidade, toda a gente fica contente, as equipas, a família, toda a gente. Mas há um lado também de incentivo. A ciência tem todo um lado de frustração. E portanto, nós sermos reconhecidos, tem um lado que estimulou a imensa equipa. A equipa durante uns meses bebe daquilo e tem um lado importante. Eu acho que o prémio da Dona Antónia Ferreira tem a questão de ser um prémio inspirado numa mulher que foi tão pioneira naquela época. Estar associada a este Prémio, e quem faz parte desse júri ter escolhido o trabalho da nossa equipa para ser premiado, para nós só pode ser uma fonte de orgulho”, sublinha.
Depois de uma viagem ao passado, ao presente e ao futuro, é de palavra assertiva e ideias bem assentes que chegamos ao fim da conversa. Tal como as restantes Ferreirinhas, também a Maria Manuel Mota foi lançado o desafio de se caracterizar. Na hora de responder ao desafio, responde sem medos, como bem nos habituou até aqui. Para se ser considerada uma Ferreirinha, é preciso ter ou ser: “uma mulher. Pode ser qualquer mulher que tenha vontade de fazer coisas na vida. Uma mulher que sonha. Acho que é isso mesmo”.