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Wendell Pierce (Bunk Moreland) e Dominic West (Jimmy McNulty) são dois dos protagonistas de "The Wire"
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Wendell Pierce (Bunk Moreland) e Dominic West (Jimmy McNulty) são dois dos protagonistas de "The Wire"

COURTESY - HBO

Wendell Pierce (Bunk Moreland) e Dominic West (Jimmy McNulty) são dois dos protagonistas de "The Wire"

COURTESY - HBO

"The Wire": 20 anos do melhor ensaio social na televisão

A melhor série de sempre que muita gente não viu estreou-se a 2 de junho de 2002. Um policial em que as estrelas são uma cidade e um sistema. É literatura posta directamente no ecrã. Celebremo-la.

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Se algum dia, uma geração seguinte vos perguntar para que serviu o DVD, respondam: para ver “The Wire”. Faz 20 anos que se estreou nos Estados Unidos uma das melhores séries de televisão de todos os tempos – alguns dirão: a melhor – e, se está a pensar “já?!” ou “como é que eu ainda não vi?”, não se preocupe. Ninguém estava a ver “The Wire” quando estreou (enfim, quase ninguém) e os números não eram muito melhores sequer em 2008, quando a última temporada foi emitida. “The Wire” é um caso de passa-a-palavra, que contraria toda a lógica. O fenómeno é antigo na literatura e no teatro, comum no cinema e na música, mas raramente visto nas séries de televisão: vai sempre a tempo de ver “The Wire”, porque vamos sempre a tempo do que é eterno.

Em 2016, a revista Rolling Stone votou-a como a segunda melhor série de televisão de sempre. Em 2019, foi o jornal The Guardian a colocá-la exatamente no mesmo lugar no universo das séries do século XXI. No ano passado, a Empire deu-lhe o quarto posto na sua lista de 100 melhores séries de todos os tempos. O mais engraçado é que, à época de emissão, “The Wire” não recebeu mais do que um reconhecimento modesto, na melhor das hipóteses. Nem um Emmy, nem um Globo de Ouro (nem uma nomeação sequer), nem um Bafta – nada, em cinco anos.

Curiosamente (ou não), as instituições que lhe prestaram atenção estavam mais ligadas ao cinema do que à indústria televisiva: o American Film Institute, que, por três vezes, a premiou como programa do ano, e os American Cinema Editors, que, em 2007, lhe deram o galardão para melhor montagem na categoria ‘One-hour series for Non-Commercial Television’. Só em 2009, isto é, no fim das cinco temporadas e 60 episódios, é que o Director’s Guild e até o Writer’s Guild se aperceberam do zunzum e lá foram dar-lhe uma medalha. David Simon, o criador da série, recebeu dois Emmy, sim, mas por “The Corner”. “The Wire”, hoje universalmente aclamada, esteve para ser cancelada no fim da terceira temporada. E da quarta.

[alguns dos momentos mais marcantes de “The Wire”:]

Então, como é que isto aconteceu?

Pressão. Pressão dos pares, pressão social. “The Wire”, que foi uma das primeiras séries da HBO e, portanto, uma dessas obras de arte com que a Home Box Office mudou a história de televisão, é talvez o primeiro fenómeno do “tens de ver”. Hoje, é tão comum e infeccioso que já todos apanhámos e passámos tensdeverismo: “tens de ver isto”, “tens de ver aquilo”, “ainda não viste?! Como é possível?! Não viste nada até teres visto aquilo!!” Cada série razoável que estreie numa plataforma de streaming arrisca-se a tornar-se obrigatória no mês seguinte ou até que outra estreie e a primeira passe, imediatamente, de último grito da moda a ruína pré-histórica.

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Mas, há 20 anos, não era bem assim. “The Wire” foi visto por algum do público criado por “Oz” ou “Os Sopranos” e por críticos pontuais que já lhe teciam loas nas respetivas publicações. Daí, passou a fenómeno de culto entre apreciadores, era “a melhor série de sempre que quase ninguém tinha visto”, espalhou-se em DVD pelo mundo, entre argumentistas, atores e estudantes, e finalmente, chegou aonde está hoje, com lugar obrigatório no top 10 das melhores séries de sempre de qualquer lista que se preze, acessível a partir de toda a smart TV das redondezas.

O seu realismo, humanismo, sobriedade, complexidade, velocidade – os arcos longos e múltiplos de personagens que demoram, às vezes, as cinco temporadas da série a completar-se – tudo concorre para uma sensação de verosimilhança que não encontra rival na televisão americana e só é batida pelo melhor cinema independente.

Afinal, o que é que “The Wire” tem?

Comecemos pelo que não tem. Não tem estrelas, não tem heróis nem vilões evidentes, não tem ganchos de suspense no fim dos episódios, não tem sexo — não particularmente — nem comic reliefs recorrentes. É um policial em que os polícias nem sequer disparam – como é possível? É óbvio porque é que “The Wire” não foi um sucesso de audiências; é incrível é como é que os executivos da HBO sequer a deixaram chegar até ao fim da história, exatamente como pensada pelo criador David Simon. Dissemos que é um policial? Nem isso. É uma tese de sociologia enfiada num policial. Uma investigação que se serve do aspeto dos policiais para fazer um ensaio detalhado sobre a cidade americana e o impacto que o tráfico de droga tem nela. A todos os níveis e de todas as perspetivas.

E nem sequer escolhe uma dessas cidades com sex appeal e que o público conhece para o fazer, não. Vai para Baltimore, Maryland. Nem Nova Iorque, nem Los Angeles, nem Miami, nem Las Vegas, nem São Francisco, nem sequer Chicago. Baltimore. Porquê? Entre outras coisas, porque, como diz Simon numa masterclass numa universidade, num dos extras contidos nesse elo perdido da evolução chamado Digital Versatile Disc, Nova Iorque é um mito. Tinham morrido mais pessoas vítimas de crimes violentos numa temporada de “Law & Order” do que naquele ano na NYC de verdade. NYC tem uma nádega sentada numa pilha de dinheiro que lhe chega de Wall Street e outra na que lhe vem do turismo. É uma estrela de cinema disputada por toda a gente que tenha dinheiro para a cortejar. Baltimore não tem nada disso. Baltimore é o “real deal”.

A partir dali, tornou-se difícil ver outras coisas. Excetuando “Os Sopranos”, “Borgen”, “Breaking Bad”, a espaços “Ozark”, quase tudo passou em comparação a soar juvenil, simplista, artificial

Então, imagine isto: uma série que não observa as mais básicas leis da televisão. Em que o herói é uma cidade e os “maus” as instituições. E em jogo estão as suas pessoas – os polícias, os traficantes, os políticos, os jornalistas, os professores, os estivadores, as famílias. Polícias que não agem movidos mais por um desejo de justiça do que pelo de resolver um caso ou vencer um duelo, por ego, por competição com os companheiros ou, simplesmente, porque é a vida. E traficantes que agem para sustentar as famílias, serem respeitados pelos seus pares, para sobreviver – ou, simplesmente, porque é a vida.

Como quase toda a gente, descobri “The Wire” em DVD, anos depois da emissão original. Ali conheci Dominic West, Idris Elba, Michael K. Williams e re-conheci Aidan Gillen, e apenas porque a minha demora em chegar a Baltimore a tinha tornado contemporânea dos sete reinos de “Game of Thrones”. Caí pela história adentro, como profetiza nos créditos iniciais, pela voz dos Blind Boys of Alabama, a canção de Tom Waits: “Way Down in the Hole”. A partir dali, tornou-se difícil ver outras coisas. Excetuando “Os Sopranos”, “Borgen”, “Breaking Bad”, a espaços “Ozark”, quase tudo passou em comparação a soar juvenil, simplista, artificial.

Um inconfundível sabor a verdade

“A Escuta” (no seu título português correto, porém, jamais usado) tem por qualidade principal a sua impressão de verdade. O seu realismo, humanismo, sobriedade, complexidade, velocidade – os arcos longos e múltiplos de personagens que demoram, às vezes, as cinco temporadas da série a completar-se – tudo concorre para uma sensação de verosimilhança que não encontra rival na televisão americana e só é batida pelo melhor cinema independente.

Ombro a ombro ou mano a mano com tantos outros, as personagens não eram figuras que reconhecêssemos de qualquer outro lugar. Nasceram ali, nos bairros sociais, nas ruas ou nas docas de Baltimore, como gente que entrou nas nossas vidas e que, ainda hoje, ao recordá-las em fotos e fotogramas para escrever este artigo, trazem de volta um arrepio sincero de medo, saudade ou compaixão.

A principal razão para isto é o facto de ter sido criada por um antigo repórter da secção de crime do jornal The Baltimore Sun, David Simon, com a colaboração de um antigo polícia e professor de Baltimore que Simon conhecia das suas reportagens, Ed Burns. A ajudá-los, tiveram três aclamados escritores de policiais: Dennis Lehane, Richard Price e George Pelecanos. Não há truques nem atalhos para estas coisas: se queres uma coisa bem feita, contrata quem a saiba fazer. Simples.

A segunda razão é que muitas das personagens são baseadas em pessoas reais ou compósitos delas, do detective Bunk ao Mayor Carcetti, do traficante Avon Barksdale ao senador Clay “Shiiiiit” Davis, de Bubbles, o informador sem-abrigo, ao em-tempos-traficante-depois-influente-empresário-da-cidade Stringer Bell. Agem como tal, falam como tal. Até os nomes fedem a verdade.

Terceira e última das mais gritantes razões: a supracitada ausência de estrelas. West haveria de seguir daqui para “The Affair” e tantas outras coisas, mas será sempre, para quem viu, Jimmy McNulty, a coisa mais parecida com uma personagem televisiva que há em “The Wire”, um polícia com problemas com a autoridade, a bebida e a braguilha. Elba tornou-se figura de blockbusters e eterno candidato a primeiro James Bond negro, mas será sempre, para quem viu, o tremendo Stringer Bell. Aidan Gillen será sempre o ínvio Lord Baelish de GoT, mas já antes tinha mostrado na câmara de Baltimore, contra todas as apostas, que também consegue não ser sonso, e talvez até de forma inesperada, na pele do ambicioso político Tommy Carcetti. E Michael K. Williams de quem recentemente nos despedimos, claro, será sempre Omar Little, o agente solitário entre o bem e o mal, noturno anjo vingador de sobretudo coçado e espingarda de canos serrados, assobiando uma melodia infantil antes de caçar a presa seguinte.

O "wire" do título é um microfone. Mas é também a própria série que funciona como uma escuta que nos dá acesso a um mundo aonde, de outro modo, nunca poderíamos entrar

Ombro a ombro ou mano a mano com tantos outros, não eram figuras que reconhecêssemos de qualquer outro lugar. Nasceram ali, nos bairros sociais, nas ruas ou nas docas de Baltimore, como gente que entrou nas nossas vidas e que, ainda hoje, ao recordá-las em fotos e fotogramas para escrever este artigo, trazem de volta um arrepio sincero de medo, saudade ou compaixão. O “Bunk” de Wendell Pierce, o Bubbles de Andre Royo, o tenente Cedric Daniels de Lance Reddick, a “Kima” de Sonja Sohn, o Lester Freamon de Clarke Peters, o “Herc” de Dominick Lombardozzi, o Carver de Seth Gilliam, até o “Prez” de Jim True-Frost. Isto na esquadra. No gueto, reinam ainda o Avon Barksdale de Wood Harris, o assustador Marlo de Jamie Hector, a Snoop de Felicia Pearson, que o próprio Michael K. Williams descobriu num bar, recém-saída da prisão. E o “Bodie” de J.D. Williams, que cresceu de menino a chefe dos maus diante dos nossos olhos. O Wallace de um então ainda imberbe Michael B. Jordan, o fashion victim, sobrinho do chefe, D’Angelo Barksdale de Lawrence Gilliard Jr., o Proposition Joe de Robert F. Chew, e até os grandes cínicos: o chefe da polícia Rawls, de John Doman, o advogado dos bandidos “Maury” Levy de Michael Kostroff, o “partner” Clay Davis de Isiah Whitlock Jr. E em volta deles, ainda uma porção de não-actores, polícias e ex-presidiários de verdade, a contarem uma história muito parecida com a deles.

Havemos de ir a Baltimore

Talvez esta seja a primeira coisa que lhe costumem dizer sobre “The Wire”, aqui ficou para o fim: tudo muda de temporada para temporada. A primeira acontece nos bairros sociais, a segunda nas docas, a terceira nas burocracias camarárias, a quarta nas escolas, a quinta nos jornais. O “wire” do título é o microfone que os polícias tanto lutam junto dos juízes por poder pôr aqui e ali e assim tentar desmantelar as malhas do tráfico de droga na cidade. Mas é também a própria série que funciona como uma escuta que nos dá acesso a um mundo aonde, de outro modo, nunca poderíamos entrar. Mas é também, acidentalmente, o “fio” que tudo une, debaixo da realidade caleidoscópica.

“The Wire” é a série preferida de gente tão díspar como Barack Obama, Eminem ou Noel Gallagher. Mas, se só agora estiver a pensar juntar-se à religião de fiéis devotos, saiba que não o espera a salvação. Nas palavras do próprio David Simon, “Não estamos a vender esperança, nem uma recompensa para o público, nem vitórias baratas".

Podemos ter gostado de quando a polícia caçou finalmente aquele traficante em frente à família no fim da primeira temporada, mas vamos reapreciar a nossa ideia quando virmos os filhos que cresceram órfãos nas escolas da quarta. Ou as metas de apreensões da polícia que têm de ser atingidas independentemente dos desequilíbrios que possam gerar num jogo que não tem fim enquanto houver compradores. Ou as decisões políticas tomadas para agradar ao eleitor que, simplesmente, quer o problema varrido da sua porta, mesmo que continue, e a crescer, nas traseiras de outro quarteirão qualquer.

“The Wire” é a série preferida de gente tão díspar como Barack Obama, Eminem ou Noel Gallagher. Mas, se só agora estiver a pensar juntar-se à religião de fiéis devotos, saiba que não o espera a salvação. Nas palavras do próprio David Simon, “Não estamos a vender esperança, nem uma recompensa para o público, nem vitórias baratas. ‘The Wire’ é um ensaio sobre aquilo que as instituições – burocráticas, criminosas, as culturas de adição, o próprio capitalismo cru – fazem ao indivíduo.”

“It’s all in the game, yo… All in the game.”

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