O ponto 2 do artigo 13.º da Constituição Portuguesa, que prevê o princípio da igualdade. A alínea h) do artigo 9.º da mesma Constituição, que dita como Tarefa Fundamental do Estado a promoção da “igualdade entre homens e mulheres”. O Tratado de Amesterdão, a Carta dos Direitos Fundamentais, o Pacto Europeu para a Igualdade entre Mulheres e Homens. De acordo com 132 jogadoras de futebol, entre portuguesas e estrangeiras que jogam em Portugal, a Federação Portuguesa de Futebol desrespeitou todos estes desígnios com apenas uma medida.
A 29 de maio, em comunicado oficial, a FPF anunciou como medida transitória o “limite máximo de 550 mil euros ilíquidos para a massa salarial das jogadores inscritas na temporada 2020/21” na Liga BPI, o primeiro escalão de futebol feminino em Portugal, uma competição que não é profissional. Ou seja, e com a justificação das “circunstâncias excecionais decorrentes da pandemia de Covid-19” – e com o sublinhado objetivo de “garantir o equilíbrio dos clubes e a estabilidade da competição” –, a Federação decidiu colocar um teto salarial à “soma dos salários e/ou subsídios declarados no contrato de cada jogadora”. A medida, porém, não foi a única a ser tomada: foi também anunciado um limite do número de jogadoras inscritas por plantel, medidas de controlo para garantir que cada clube cumpre os compromissos assinados com jogadoras e ainda o aumento do número de jogadoras formadas localmente na ficha de jogo, além do alargamento da Liga BPI a 16 equipas. O salary cap, a expressão usada para definir o teto salarial, acabou por ser o ponto de partida para uma polémica que se arrasta desde o final da semana passada.
Na quinta-feira, dia 18, bastava passar pelas redes sociais de praticamente todas as jogadoras de futebol portuguesas – ou estrangeiras a jogar em Portugal – para encontrar um posicionamento comum, um texto comum e uma imagem comum: o comunicado do movimento “Futebol Sem Género”, que junta 132 jogadoras contra a medida transitória da FPF. Ana Borges, Tatiana Pinto e Rita Fontemanha, do Sporting; Raquel Infante e Sílvia Rebelo, do Benfica; Dolores Silva e Regina Pereira, do Sp. Braga; ou Solange Carvalhas, do Famalicão, todas internacionais portuguesas, partilharam o protesto, assim como Cláudia Neto, capitã da Seleção Nacional que joga no Wolfsburgo.
No comunicado disseminado pelas atletas, assim como pela própria página do movimento, o “Futebol Sem Género” argumenta que os motivos que a FPF apresenta para a imposição de um teto salarial são “eticamente censuráveis” e “total e ostensivamente discriminatórios”. A medida é descrita como “avassaladoramente violadora dos direitos individuais enquanto jogadoras de futebol”, a Federação é criticada por “violar, drasticamente, o princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres” e o objetivo do movimento é sublinhado – “eliminar, antes de que seja tarde, tal normativo que estabelece um salary cap exclusivo para o futebol feminino”. No fim, deixam uma única questão: “Como pode a FPF arrogar-se como defensora da igualdade e da indiscriminação quando viola deste modo a promoção da igualdade de género?”.
A reação da Federação, dada ao Expresso por intermédio de uma fonte oficial, referiu apenas que “os regulamentos de todas as provas” a cargo da entidade “estão em consulta pública” e que “as sugestões de alterações serão analisadas e terão resposta”. Dois dias depois do primeiro passo da contestação, porém, a ação do movimento “Futebol Sem Género” subiu de tom. Num direito de resposta elaborado por uma sociedade de advogados e enviado à FPF, as 132 jogadoras elaboram sobre as possíveis consequências do teto salarial até chegarem a uma acusação bastante direta e palpável: “A Federação privilegia e beneficia os jogadores do sexo masculino, prejudicando as jogadoras”.
Na reclamação do grupo de jogadoras, estas perguntam ainda, de forma irónica, se “as dificuldades que a pandemia de Covid-19 produziu apenas afetam o futebol feminino”, e questionam novamente, mais à frente, como pode a FPF afirmar que promove a igualdade de género quando para “manter uma equipa na primeira divisão feminina, o custo será de aproximadamente um terço ou um quarto em relação a uma equipa masculina dois escalões abaixo”. “Porque não se reduz no futebol masculino, uma vez que é aquele que se demonstra mais oneroso?”, atira, por fim, o movimento.
O objetivo da FPF, notoriamente, é motivar uma maior competitividade na Liga BPI, uma competição onde esta temporada o Benfica – primeiro classificado na altura da suspensão – tinha goleado quatro vezes por vezes por dois dígitos; onde o Sporting, em segundo lugar, o tinha feito também numa partida, e onde o Sp. Braga, terceiro, teve uma vitória por 9-0, duas por 7-0 e ainda outra por 8-0. Além disso, a discrepância entre as situações salariais e contratuais das jogadoras dos vários clubes são notórias: no universo de mil jogadoras seniores a jogar em Portugal, apenas 70 são profissionais e 250 têm um vínculo desportivo amador. A lógica, defendida pela FPF no comunicado que deu origem à polémica, é encurtar as diferenças entre Benfica, Sporting e Sp. Braga e as restantes equipas, criando uma espécie de linha salarial comum a todos os clubes.
Na ótica do “Futebol Sem Género”, porém, a medida só tem o efeito contrário. Com base na evolução recente do futebol feminino em Portugal, que teve como principal passo o apuramento histórico da Seleção Nacional para o último Europeu, o direito de resposta defende que as jogadoras estrangeiras “não terão interesse de vir” para o nosso país e que as portuguesas que jogam fora, com conhecimento da “crassa discriminação”, irão “preferir manter-se no estrangeiro”. Nas longas 43 páginas, as jogadoras garantem ainda que a medida viola o fair play financeiro da UEFA e que a FPF “falhou” o alinhamento com as iniciativas da FIFA e da FIFPro, onde “todas as orientações realçam a necessidade de proteger o futebol feminino e não o discriminar financeiramente a coberto de um estado excecional que a todos afeta”, mencionando a pandemia.
Em reação, o Sindicato dos Jogadores posicionou-se ao lado da Federação – Joaquim Evangelista, o presidente, é um dos elementos suplentes da Direção na lista de recandidatura de Fernando Gomes –, recusou a ideia de “qualquer questão de discriminação de género” e garantiu que não vai “galopar numa onda mediática” – declaração que o movimento de jogadoras já lamentou. Já a própria FPF, por intermédio de Mónica Jorge, diretora para o futebol feminino e ainda ex-selecionadora nacional, abordou o tema de forma mais clara e pública. Num texto de opinião publicado no jornal A Bola, a dirigente afastou a ideia de um teto salarial e sublinhou que “os clubes são livres de fazer os contratos que entenderem com as jogadoras” – desde que não ultrapassem os tais 550 mil euros ilíquidos de massa salarial.
No artigo, Mónica Jorge acrescentou ainda que a medida foi tomada porque, “infelizmente”, o Campeonato feminino é “a prova sénior mais desequilibrada do futebol português” e uma competição que “precisa de ser constantemente melhorada” para “aproximar as equipas no campo”, recordando ainda que “apenas cinco clubes inscreveram jogadoras profissionais na época passada”. “A Federação não faz regulamentos sobre homens ou mulheres (…) Não existe, pois, qualquer regulamento que discrimine por género. Nem podia haver”, concluiu a diretora da FPF. Em resposta ao Sindicato e a Mónica Jorge, o movimento limitou-se a garantir, em comunicado, que não irá “reagir a declarações ou opiniões trazidas a público (…) por muito erradas e infundadas que as mesmas sejam”, sublinhando que vai permanecer à espera de uma resposta formal da Federação.
Entretanto, e a nível mais institucional, o PCP já solicitou ao Governo uma intervenção sobre o tema, dirigindo um documento formal à ministra de Estado e da Presidência, Mariana Vieira da Silva, e ao secretário de Estado da Juventude e do Desporto, João Paulo Rebelo. “Tem o Governo conhecimento da discriminação descrita? Que medidas irá tomar para resolver esta situação e situações futuras de discriminação no futebol e no desporto?”, questionam os comunistas, acrescentado ser “justificada a contestação por parte das jogadoras e muitos outros atletas” contra o que consideram ser uma “grave discriminação”.
Certo é que, sem grandes precedentes e com impacto internacional, o futebol feminino português acabou por entrar num vórtice de conflito entre jogadoras e Federação que já tem antecedentes noutros países com maior expressão da modalidade, como é o caso dos Estados Unidos – onde, no ano passado e meses antes do último Mundial, um grupo de jogadoras processou a US Soccer por aquilo a que chamou “discriminação de género institucionalizada”. Outro exemplo é o caso de Ada Hegerberg, tida como uma das melhoras jogadoras da atualidade, que tem renunciado à seleção da Noruega por defender que a Federação do país trata de forma diferente a equipa masculina e a feminina.
Um Mundial que não tem a melhor do mundo e é o mais importante de sempre. Mas porquê?
E o melhor lembrete de que este não é assunto de uma modalidade, de um grupo de jogadoras ou de uma secção desportiva, surgiu por intermédio de Marlene Sousa, jogadora de hóquei em patins do Benfica. “Enquanto Desportista mas acima de tudo enquanto Mulher: apesar de vivermos em pleno século XXI, ainda conseguimos ser surpreendidos por decisões que pensava que faziam parte da época medieval (…) A minha modalidade e a minha paixão é o hóquei em patins. Represento o Benfica e a Seleção Nacional e não é por ser Mulher que o meu empenho e a minha dedicação são diferentes. No meio disto tudo, parece que só Deus sabe daquilo de que nos temos de privar para alcançarmos os nossos objetivos. Às vezes sinto que vivo numa realidade paralela. Num mundo diferente (…) Não queremos ser mais mas também não queremos ser menos. Não deem justificações incompreensíveis para tomarem decisões inaceitáveis. Não nos ponham limites. Deixem-nos ser felizes com aquilo que escolhemos”, escreveu a atleta, numa longa publicação partilhada no Instagram.