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"Twin Peaks". Há 30 anos morria Laura Palmer e a televisão mudava para sempre

É uma das protagonistas mais ausente da história e continua a ser popular. A morte de Laura Palmer foi o motor para a influente e ainda misteriosa série criada por David Lynch e Mark Frost.

Laura Palmer teria hoje 47 anos. O seu grito horrífico ainda é sentido nos corações de cinéfilos do mundo inteiro. Para perceber o impacto que “Twin Peaks”, um fruto da imaginação inigualável de David Lynch e Mark Frost, teve no panorama dramático limitado que a televisão apresentava em 1990, basta imaginar o seguinte: um mar de sitcoms derivadas do mesmo tipo de comédia, povoadas por personagens-tipo, em todos os melhores blocos do prime-time. A ideia de uma série cinemática era inimaginável, quais arcos de personagens que excedam um episódio de duração — isso não existia.

O famoso sinal

Quando as audiências americanas se depararam com o mistério da violação e homicídio de Laura Palmer, a rainha do baile de uma pacata cidade no estado de Washington, ficaram confusas. A televisão era, até aí, um escape ao stress da realidade. Não era como ir ao cinema, onde os espectadores seriam testados com narrativas mais desafiantes e potencialmente complexas, mas sim um símbolo de relaxamento. Era um meio de entretenimento inferior, apesar de tudo.

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Na era do streaming é difícil imaginar uma realidade assim, onde não existiam “Game of Thrones”, “Friday Night Lights” ou “The Handmaid’s Tale”. As narrativas das séries televisivas eram resolvidas no mesmo episódio, talvez em dois, se fosse um caso muito sério. É fácil de entender, portanto, porque é que “Twin Peaks” foi um elemento crucial na evolução do meio, e um risco tão grande para a sua exibidora, a ABC. Por outro lado, imaginando uma época em que os intervalos das aulas ou a pausa para o cigarro a meio do turno era dedicada à discussão e formulação de teorias sobre quem matou Laura Palmer, é ainda mais fácil de entender a facilidade com que a série atingiu o sucesso que merecia.

[os créditos de abertura da série, com a música de Angelo Badalamenti:]

Vendo a série hoje, estando habituados a tantos dramas competentes e exigentes produzidos para o consumo de uma sala de estar, é incrível como “Twin Peaks” se aguenta firme em duas pernas. Mais do que uma série sobre o mistério de uma rapariga morta, é a construção de uma sociedade à qual nos sentimos apegados: desde questões familiares a vinganças maquiavélicas, amores profundos enjaulados dentro de casos adúlteros, e até um mistério de “quem será o pai da criança?”. A pequena comunidade de Twin Peaks é rica em dramas convincentes (e inconvenientes), comédia irónica e pânico pessoal, tal como o dia-a-dia de todos nós.

O investigador mais viciado em café de sempre

Mais que isso, o mistério de Laura Palmer é meramente um MacGuffin (um dispositivo narrativo concebido para avançar a história e manter o interesse), sendo as interações entre os habitantes da cidade a verdadeira pérola da série. O bromance cativante, à base de respeito e de honra, entre o Agente Especial Dale Cooper e o Xerife Truman, ou a relação problemática entre Audrey Horne e o seu pai Benjamin, o magnata da cidade — são estes pequenos momentos, o estudo das relações humanas, que fizeram da série um molde a seguir pelos seus sucessores televisivos. Isso e, claro, a própria estrutura narrativa pensada para sobreviver a uma temporada inteira, meticulosamente planeada para que não sejam precisas intervenções de guionismo para tentar descobrir o que será contado a seguir.

Mistério resolvido no início da segunda temporada

E depois temos o surrealismo de Lynch — o místico do mundo dos sonhos e da intuição inexplicável. “Twin Peaks” pode ser um drama social, mas é também uma história de terror, daquelas que nos metem a tremer. É o terror psicológico, a exploração do sobrenatural como explicação para os eventos mais bizarros da existência humana. E depois junta o pior tipo de terror existente, o humano. Aquele que faz com que as pessoas mais destemidas pensem duas vezes antes de apagar a luz à noite.

Mesmo sem termos tido contacto com Laura Palmer durante toda a série, a sua dor é palpável. Ela é uma das personagens principais mais ausente de toda a história do entretenimento. E sim, apesar de tudo, Laura Palmer é a protagonista. Todas as interações da série têm, até um certo ponto, uma influência, por mais leve que seja, da sua morte.

Na verdade, Lynch e Frost nem planeavam resolver o mistério de Laura Palmer. Queriam mantê-lo em aberto, como uma daquelas questões que deixam como legado uma eterna pertinência e nenhuma resposta aparente. Um cenário que consideravam como belo, presume-se, de uma certa forma masoquista e melodramática. Mas quem joga no reino comercial, sabe que a criatividade é a carta mais pobre e ambos os criadores da série foram pressionados pela ABC a resolver o mistério, como obrigação que tinham com os espectadores.

E assim foi — o assassino de Laura Palmer é revelado no sétimo episódio da 2ª temporada (15º episódio, no geral), no que é, pura e simplesmente, uma hora de pura petrificação, e talvez uma das melhores horas de televisão até hoje (na verdade, todos os episódios realizados por Lynch são dos melhores de sempre). É tanto uma revelação macabra quanto surpreendente, e até profundamente triste, em contexto narrativo. A verdade é que, mesmo sem termos tido contacto com Laura Palmer durante toda a série, a sua dor é palpável. Ela é uma das personagens principais mais ausente de toda a história do entretenimento. E sim, apesar de tudo, Laura Palmer é a protagonista. Todas as interações da série têm, até um certo ponto, uma influência, por mais leve que seja, da sua morte.

E, não finjamos, nem tudo acerca de “Twin Peaks” é um mar de rosas. Depois de forçados a abandonar o seu plano original e revelar o mistério, Lynch e Frost perderam o seu MacGuffin. A narrativa tinha chegado ao fim, e porém a ABC já tinha encomendado mais quinze capítulos. O resultado manifestou-se numa mão cheia de episódios em que os argumentistas sufocavam numa cidade cujo único interesse foi suscitado por um mistério que havia agora sido resolvido. A maioria dos arcos de personagem estavam fechados, e Lynch decidiu anular o seu envolvimento, tendo a sua visão já sido estilhaçada e a sua motivação enterrada com Laura Palmer.

O agente Dale Cooper (Kyle MacLachlan) e Audrey Horne (Sherilyn Fenn), duas das personagens mais importantes e populares de "Twin Peaks"

Não que a série se tenha tornado intragável — apesar de tudo, esta segunda metade de temporada continua a ter a sua piada, acabando por encontrar balanço na introdução de um novo vilão. Contudo, nunca volta a chegar às mesmas alturas às quais Lynch a elevou, e os espectadores assíduos repararam. Muitas das trajetórias das personagens foram mudadas e alguns dos dramas já não tinham o mesmo impacto sem a força do mistério a empurrá-los. As audiências do programa caíram a pique e a ABC viu-se forçada a cancelar o que tinha sido, em tempos, a sua maior promessa. O realizador acabou por voltar para o episódio final da série, vingando-se com um dos maiores cliffhangers do mundo da televisão (ainda hoje é doloroso pensar em como os fãs passaram 25 anos a roerem-se de frustração depois daquele final).

O desastre de bilheteira do filme

Mas isso não seria suficiente para Lynch. Destroçado e completamente obcecado, rapidamente arranjou financiamento para desenvolver um filme focado na morte de Laura Palmer, dando oportunidade à atriz Sheryl Lee de finalmente encarnar a personagem fora de flashbacks. Em retrospetiva, talvez “Fire Walk With Me” (em Portugal, “Os Últimos Sete Dias de Laura Palmer”, 1992) não tenha sido a melhor das ideias — o filme veio depois do fracasso monumental da segunda temporada, destinado a um público que já havia perdido o interesse há dois anos, ou que nem sequer soube da existência do filme em primeiro lugar. A prequela arrancou uns míseros 4 milhões de dólares nas bilheteiras mundiais, bem abaixo do seu orçamento de 10 milhões.

[o trailer do filme “Os Últimos Sete dias de Laura Palmer”:]

A receção inicial não ajudou — além de ter sido vaiado durante a estreia em Cannes, onde realizadores como Quentin Tarantino mostraram o seu desdém pela obsessão e perversão de Lynch, a crítica norte-americana reduziu a paixão do realizador pelo mundo de Twin Peaks a um exercício de excessos grotescos. Mas como todos os grandes filmes vaiados em Cannes, “Fire Walk With Me” construiu um legado de culto.

A atriz Sheryl Lee no filme que agora é de culto, mas que foi uma desgraça nas bilheteiras

A série já provara ser demasiado “alienígena” para alguns, mas “Fire Walk With Me” traz o verdadeiro potencial espacial de Lynch para a terra de Twin Peaks. O primeiro terço do filme é dedicado à investigação de Teresa Banks, a primeira vítima do assassino de Laura Palmer, e é quase incompreensível. O realizador sempre teve um fetiche por confundir os seus espectadores, mas aqui parece que nem nos deixou entrar na diversão. Algures nesse segmento, encontramos uma aparição especial de David Bowie, que desaparece ainda antes de termos tempo de fazer perguntas, e nem é que o filme pareça muito cinemático, em primeiro lugar. Atua mais como um episódio alargado de “Twin Peaks” do que uma verdadeira película, servindo-se do mesmo espírito e estilo técnico, mas isso faz parte do charme.

Ver "Twin Peaks", mesmo décadas depois da sua conceção, é sentirmo-nos nostálgicos. É sentirmos falta de Laura Palmer como se fosse nossa colega de escola e cairmos aos pedaços quando pensamos no seu destino.

É também, sem sombra de dúvida, um dos filmes mais assustadores alguma vez feitos, e não só da forma tradicional. O verdadeiro vilão do filme, para além daquele casaco de ganga impossível de esquecer, é a própria dualidade macabra da vida de Laura, uma pessoa que, no exterior, tem tudo para ser feliz — a mais popular, a mais bem-sucedida, a mais invejada, a perfeita vizinha suburbana do molde de que é feito o sonho americano. É desolador, quase como se deixasse de valer a pena viver num mundo em que injustiças tão grandes destroem pessoas tão perpendiculares ao seu caminho. Nem é só o destino de Laura que é aterrador, mas também os anos de sofrimento que pavimentaram o seu caminho até lá. Se há algo que “Fire Walk With Me” reforça é que é impossível fugir a um caminho predestinado, e autodestruição é só uma forma de anestesiar o pânico.

[o trailer da terceira temporada, estreada em 2017:]

E é impressionante como, no meio de todo este desespero interminável e de toda a melancolia, Lynch consegue proporcionar a Laura o final feliz que a personagem merece, dentro dos possíveis (é difícil de encontrar sentimentos positivos num filme em que sabemos que a personagem principal está a caminho de um brutal assassinato). E mesmo assim, não é suficiente para nos distrair do facto de que se torna quase impossível lembrarmo-nos do riso de Laura ou de qualquer outra coisa senão o seu grito, ainda facilmente reconhecido no mundo do entretenimento 30 anos depois.

Laura Palmer, antes e depois da morte

Ver “Twin Peaks”, mesmo décadas depois da sua conceção, é sentirmo-nos nostálgicos quando pensamos naqueles bosques, mesmo que nunca tenhamos estado lá. É sentirmos uma amargura melancólica quando ouvimos duas notas que sejam de um dos temas escritos por Angelo Badalamenti. É sentirmos falta de Laura Palmer como se fosse nossa colega de escola e cairmos aos pedaços quando pensamos no seu destino. É acordarmos de um sonho e sentirmos que descodificámos o puzzle da vida e temos as respostas para os problemas mais crípticos do universo. E apesar de tudo, é percebermos que há mais de desconhecido em casa do que pensávamos, e descobrirmos que é lá que queremos viver.

Twin Peaks foi ressuscitada por Lynch em 2017 numa terceira temporada, coincidindo com o “25 anos depois” usado nos flash forwards da série original.

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