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O que está em causa?

A chamada “bazuca” europeia, que deverá começar ainda este ano a despejar as primeira verbas extraordinárias nas economias dos 27 estados-membros, depende não só do acordo que foi alcançado (a muito custo) pelos chefes de Estado e de governo no ano passado, mas também da ratificação de um processo que é fundamental para tudo o resto — a decisão sobre os recursos próprios.

Se a União quer ajudar as debilitadas economias europeias neste contexto de crise aguda, precisa, desde logo, de obter o respetivo dinheiro para este Mecanismo de Recuperação e Resiliência — 750 mil milhões de euros, entre subvenções e empréstimos. Para isso, a Comissão Europeia propôs ir aos mercados pedir as verbas necessárias a investidores, em nome dos 27 estados-membros.

O problema é que, ao contrário de outras decisões de âmbito europeu, que carecem de maiorias simples ou qualificadas, esta é daquelas medidas que só passam se todos estiverem de acordo — o que, em vários países, implicará convencer os parlamentos nacionais ou, como é este o caso, suster a respiração enquanto se espera por uma decisão judicial.

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Como chegámos aqui?

O processo de aprovação da “bazuca” europeia, que já por si tem sido difícil, arrastado, e marcado por sucessivas lutas internas entre os 27, teve de passar pelo crivo do Tribunal Constitucional da Alemanha, apanhando de surpresa os executivos da União Europeia.

O Parlamento alemão — Bundestag (câmara baixa) e Bundesrat (câmara alta) — tinha dado luz verde a 25 e 26 de março, mas, logo depois, o grupo Bündnis Bürgerwille (Aliança para a Vontade dos Cidadãos), associado ao partido Alternativa para a Alemanha (AfD), de extrema-direita, interpôs um recurso junto do tribunal de Karlsruhe em nome de 2.200 cidadãos, argumentando que estavam a ser violados os tratados europeus e a lei alemã. O grupo defende que os estados-membros não podem contrair dívida em conjunto.

Berlin Celebrates German Unity Day

A decisão do Bundestag (na foto) e do Bundesrat pode agora ser assinada pelo presidente alemão

A estas críticas, tanto o Governo alemão como a Comissão Europeia têm respondido invocando o artigo 122 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. “Sempre que um Estado-Membro se encontre em dificuldades ou sob grave ameaça de dificuldades devidas a calamidades naturais ou ocorrências excecionais que não possa controlar, o Conselho, sob proposta da Comissão, pode, sob certas condições, conceder ajuda financeira da União ao Estado-Membro em questão”, pode ler-se no tratado.

Face ao recurso do Bündnis Bürgerwille, o tribunal decidiu suspender o processo de ratificação — que esperava apenas pela assinatura do presidente alemão, Frank-Walter Steinmeier — ficando com três meses para se pronunciar sobre o assunto. Uma decisão que deixou as instituições europeias e vários governos em sobressalto.

No entanto, apenas 26 dias depois, o Tribunal Constitucional alemão abre caminho para que a Comissão possa ir aos mercados buscar dinheiro fresco em nome dos estados-membros. Afinal, não passou de um susto. Pelo menos, para já.

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O Tribunal Constitucional deixou passar a medida?

Na prática, sim. Só mais tarde, haverá uma decisão completa do tribunal, que avaliará o mérito da reclamação, mas, para já, é sensível aos argumentos do Governo de Angela Merkel e do parlamento alemão, pesando o que significa deixar parado um processo desta natureza.

Até porque, como esclarece o tribunal, mesmo que considerasse a medida inconstitucional, ela seria sempre remetida ao Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), o que levaria ainda mais tempo, podendo até culminar com a reversão da decisão pelo tribunal que tem sede no Luxemburgo.

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Como nota Lucas Guttenberg, especialista do Centro Jacques Delors, de Berlim, que acompanha estas matérias, o tribunal percebe que travar agora o processo de ratificação “poderia levar a danos económicos irreversíveis, mesmo que eventualmente desse luz verde mais tarde”.

Em causa está também o próprio papel da Alemanha no contexto europeu. “O Tribunal também aceita a posição do Governo de que interromper a ratificação agora apenas para dar luz verde mais tarde prejudicaria a posição da Alemanha na UE e a coesão entre os Estados membros“, explica Lucas Guttenberg no Twitter.

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Mas o Tribunal Constitucional alemão concorda com Berlim e Bruxelas?

Não necessariamente — ou não de forma totalmente clara — uma vez que o tribunal não rejeita as queixas e também não as vê “como inadmissíveis ou manifestamente infundadas”.

Tendo em conta as decisões anteriores do tribunal, Lucas Guttenberg entende mesmo que o pedido do grupo Bündnis Bürgerwille “poderia, de facto, ser admissível e poderia levar o tribunal a rejeitar a decisão sobre recursos próprios”.

O tribunal indica que as observações feitas pelos queixosos “demonstram que parece pelo menos possível que a Decisão de Recursos Próprios aprovada em 2020 infrinja a responsabilidade orçamental geral do Bundestag”.

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No entanto, nesta primeira análise rápida, os juízes não encontraram provas nesse sentido. “Não parece altamente provável que a responsabilidade orçamental geral do Bundestag (…) tenha sido de facto violada”, escreveu o tribunal em comunicado. Ou seja, a autonomia orçamental do parlamento alemão não é posta em causa.

O tribunal considera ainda que os estados não são diretamente responsáveis pela dívida contraída pela UE — o que, para Guttenberg, “é uma constatação muito importante”; e aponta para um impacto orçamental limitado.

O especialista sublinha ainda que “o facto de não ter havido sequer uma audiência oral é um indicador de que o tribunal está razoavelmente convencido do acerto na sua decisão”.

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Só agora é que o processo se complicou?

Não, longe disso. Este foi apenas mais um susto, depois de os estados-membros terem superado vários obstáculos. Desde logo, os que foram criados pelos chamados países “frugais”. Muito preocupados com a partilha de risco no espaço europeu, temem que a medida, supostamente temporária, seja apenas o início da polémica mutualização de dívida europeia. Um incómodo que acabou por ser ultrapassado.

Da mesma forma, o consenso foi ameaçado pela aliança entre Polónia e Hungria. Os dois países não gostaram de ver os restantes estados-membros estabelecer uma ligação direta entre a “bazuca” e as questões ligadas ao Estado de Direito — dossier em que os dois países têm sido duramente criticados nos últimos anos. Também aqui, o problema acabou por ser ficar sanado.

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Como é que a decisão do tribunal alemão foi recebida?

Não faltaram responsáveis europeus esta quarta-feira a manifestar satisfação perante a decisão do tribunal de Karlsruhe, a começar pelo governo alemão, que via o seu papel de liderança neste processo ser posto em causa.

O ponto de exclamação usado no Twitter por Olaf Scholz, ministro das Finanças alemão, é revelador: “Hoje, o Tribunal Constitucional Federal abriu caminho para a ratificação do Programa de Recuperação Europeia! Um passo muito importante na luta contra a pandemia”.

A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, também mostrou satisfação com a decisão, reafirmando que “a UE mantém-se no caminho certo” da recuperação económica e que o pacote financeiro Next Generation EU, em que se insere com destaque o Mecanismo de Recuperação e Resiliência, “vai abrir o caminho para uma União Europeia verde, digital e mais resiliente”.

Ainda nas instituições comunitárias, o presidente do Parlamento Europeu, o italiano David Sassoli, defendeu que, “após o veredicto do Tribunal Constitucional, o caminho está aberto para a Alemanha finalizar a ratificação para o financiamento do fundo de recuperação da UE”, alertando ainda quem não ratificou de que não há tempo a perder: “Quanto mais rápido os restantes estados-membros concluírem a ratificação, mais cedo poderemos recuperar desta pandemia”, escreveu Sassoli.

Por cá, António Costa, que detém a presidência semestral da União Europeia, disse mesmo aos jornalistas que é “pena o dia não acabar já, porque são só boas notícias”. E nota que “poucos países” têm ainda por ratificar a decisão referente aos recursos próprios, garantindo que está a “trabalhar” para que tudo seja feito “a tempo e horas”.

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Já faltam poucos países ratificar a decisão?

Já faltaram mais. E o principal obstáculo terá sido superado, uma vez que a decisão de um tribunal teria um peso e consequências (ainda mais sendo na Alemanha) que ultrapassam a esfera política. Mas talvez seja ainda cedo para os responsáveis europeus cantarem vitória, tendo em conta o quão atribulada tem sido a aprovação, mas também o leque muito particular de países que ainda não ratificaram a decisão.

É que, neste momento, entre os 10 estados-membros que não tomaram uma decisão final estão os “frugais” Áustria, Finlândia e Países Baixos e os “desalinhados” Hungria e Polónia. Quatro destes países não tinham sequer, até há muito pouco tempo, um calendário para ratificar a decisão.

Este último caso da Polónia tem sido mesmo apontado como a maior ameaça à “bazuca”, tendo em conta a manta de retalhos em que se baseia a frágil coligação de Governo polaco. A decisão governamental está tomada, mas falta a luz verde final do parlamento de Varsóvia.

Para já, da Áustria vão chegando palavras de sossego para as instituições europeias. O ministro das Finanças Gernot Blümel disse à televisão CNBC, na semana passada, que está “convencido de que não haverá atrasos” na emissão de obrigações europeias.

Dois dos países bálticos — Estónia e Lituânia—, mas também a Irlanda e a Roménia completam a lista de países que ainda não tomaram uma decisão final sobre os recursos próprios da União Europeia.

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Quando é que Portugal ratificou a medida?

Portugal, que detém a presidência rotativa da UE neste semestre, foi dos primeiros a notificar a Comissão Europeia a 3 de fevereiro. A decisão tinha sido tomada pelo Parlamento a 29 de janeiro, sem votos contra, com base numa resolução do Governo, de dia 13 desse mês. Marcelo Rebelo de Sousa assinou o documento a 2 de fevereiro.

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Apenas Croácia (12 de janeiro) e Chipre (14 de janeiro) foram mais rápidos neste processo de ratificação.

Ainda em fevereiro, seguiram-se Eslovénia, França, Malta e Bulgária; em março, Itália, Espanha, República Checa, Grécia, Letónia e Dinamarca; e em abril foi a vez de Luxemburgo, Eslováquia, Bélgica e Suécia.