Voltou a circular nas redes sociais uma imagem que compara o salário de militares da GNR, bombeiros, professores e médicos com o de deputados da Assembleia da República, para evidenciar a disparidade de rendimentos e mostrar que os últimos são quem mais recebe “para nos lixar a vida”. Mas não só os valores estão incorretos, como não têm em conta a variabilidade de salários mesmo dentro de uma profissão, por via, por exemplo, da progressão na carreira ou das componentes variáveis dos ordenados.

Comecemos com o salário dos docentes. Na publicação, indica-se que um professor ganha 930 euros mensais, mas não é referido se se trata de um valor líquido ou bruto, nem qual o tempo de serviço do docente em questão. Ignora-se, portanto, que os ordenados dos professores aumentam consoante a progressão na carreira, que está muito dependente dos anos de serviço.

Mesmo se olharmos para o salário em início de carreira, a realidade é diferente do que se alega na imagem. Segundo informação que consta no site da Direção-Geral da Administração Escolar (DGAE), “os docentes que ingressam na carreira são integrados no 1.º escalão, índice 167”, o que, na tabela de 2021, corresponde a 1.523,19 euros brutos. E se tivermos em conta o salário líquido? O montante continua a ficar acima do mencionado na publicação.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

De acordo com a mesma tabela, disponibilizada pelo Sindicato dos Professores do Norte, após os descontos de IRS, Segurança Social/Caixa Geral de Aposentações e ADSE (o subsistema de saúde dos funcionários públicos), e somando o subsídio de alimentação, o salário mensal líquido fica, na pior das hipóteses, em 1.144,27 euros (pode aumentar para trabalhadores com dependentes, em virtude de taxas de IRS mais favoráveis). Ou seja, mesmo no escalão de ingresso, e em termos líquidos, o salário está acima de 930 euros.

Olhemos agora para o salário de um deputado. A mesma imagem revela que um parlamentar em Portugal recebe, por mês, 6.700 euros “para nos lixar a vida”. Esta crítica já tinha sido feita numa outra publicação analisada pelo Observador, mas em causa estava um montante diferente: 8.700.00 euros, manifestamente superior à realidade. Será que a publicação agora em análise tem razão quanto ao valor auferido?

Como o Observador já tinha explicado num artigo de análise sobre o ordenado dos deputados — no rescaldo da polémica sobre as viagens pagas em duplicado —, o salário dos parlamentares tem uma componente fixa e outra variável (que pode fazer aumentar muito o ordenado). Quanto à fixa: de acordo com o Estatuto Remuneratório divulgado pela Assembleia da República para os anos de 2020 e 2021, a remuneração base de um deputado é, em termos brutos, de 3.635,28 euros, independentemente do círculo eleitoral e da morada declarada de residência. Se estiver (e a maioria acaba por estar) abrangido pelo regime de exclusividade, a esse valor é somado um abono como uma compensação por estar proibido de exercer outras atividades profissionais, no valor de 382,66 euros.

Vamos agora à parcela variável. Ao ordenado base, podem somar-se, por um lado, ajudas de custo para a presença em trabalho parlamentar. O montante varia consoante resida perto ou longe de Lisboa e visa compensar os deputados deslocados quanto a despesas de alojamento e refeições. O valor é diário, sendo multiplicado pelo número de vezes em que os deputados compareceram, naquele mês, aos trabalhos parlamentares na AR (por exemplo, comissões parlamentares). Os que residem nos concelhos de Lisboa, Oeiras, Cascais, Loures, Sintra, Vila Franca de Xira, Almada, Seixal, Barreiro, Amadora e Odivelas recebem 23,05 euros por dia, enquanto os que residem mais longe têm direito ao triplo (69,19 euros).

A isso acresce um subsídio de deslocação fixo, previsto na Constituição, a respeito da “representação política”, e pago quando o deputado tem de se deslocar a vários pontos do país em trabalho. Há ainda lugar ao pagamento das deslocações entre a residência e a AR (de 36 cêntimos por quilómetro), que cobre uma viagem de ida e volta por semana para quem tem residência mais longe, desde que exista trabalho parlamentar nessa semana. E das deslocações para trabalho político dentro do círculo eleitoral pelo qual foram eleitos (também de 36 cêntimos por quilómetro), uma vez por semana.

Fact Check. Deputados têm um salário mensal de 8.700 euros?

Sobre a remuneração principal e o ‘bónus’ pelo regime de exclusividade são deduzidos IRS, Segurança Social, assim como contribuições para a ADSE (neste caso, sobre o salário base) ou para o grupo parlamentar do partido em questão. E o restante? Tanto as ajudas de custo como os subsídios de deslocação estão isentos de impostos desde que não ultrapassem os valores fixados na lei. Porém, note-se que esta componente do ordenado serve para cobrir despesas que os deputados tenham por deslocações a casa ou em trabalho.

Os ordenados que os parlamentares levam para casa são, assim, muito díspares, já que dependem de fatores como o local de residência, os dias de trabalho político ou das presenças na AR. Mas mesmo num caso mais limite, que o Observador analisou aqui, de um deputado com residência bastante longe da capital, em Vila Real, o rendimento líquido foi de 5.614,55 euros líquidos. Ou seja, ainda abaixo dos 6.700 euros referidos na publicação de Facebook.

O único caso em que a remuneração base líquida ultrapassa bem o montante mencionado é o do presidente da AR (atualmente, Eduardo Ferro Rodrigues), que pode levar para casa 8.265,48 euros brutos mensais caso exerça funções em regime de exclusividade. Mas o cargo de presidente da AR é muito diferente do de um deputado, com outras funções inerentes.

Conclusão

As remunerações que constam na publicação não estão corretas, mesmo se tivermos em conta os montantes pagos em início da carreira e os valores líquidos. Acresce que o conteúdo veiculado ignora, por um lado, que os ordenados dos docentes aumentam consoante indicadores como o tempo de serviço e, por outro lado, que o salário de um deputado tem uma componente variável que faz com que existam realidades muitos distintas. Mesmo nos casos em que essa componente é maior, como aquele que foi analisado pelo Observador, o valor final não chegou aos 6.700 euros líquidos.

Além disso, e se considerarmos que o autor da publicação se refere aos valores brutos, a comparação também não pode ser feita nestes termos. Ainda que o montante bruto indicado possa aplicar-se a alguns deputados, em casos limite (e se tivermos em conta subsídios que visam compensar por gastos em deslocações de trabalho e a casa), o mesmo não acontece no caso dos docentes, que têm salários brutos superiores ao veiculado na imagem.

Segundo a classificação do Observador, este conteúdo é:

ERRADO

No sistema de classificação do Facebook, este conteúdo é:

FALSO: As principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.

Nota: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.

IFCN Badge