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Mais uma semana, mais uma remodelação pífia, mais uma crise e uma demissão mais rápida que todas as outras. O que se passa? Ensaio de resposta numa newsletter onde também se recorda Bento XVI e se fala, como é habitual, de livros. |
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Pois é, temos um governo de “um só partido com maioria absoluta, mas, por isso mesmo, com responsabilidade absoluta”. E vamos de crise em crise, a um ritmo nunca visto, “ou por erros de orgânica, ou por descoordenação, ou por fragmentação interna, ou por inação, ou por falta de transparência, ou por descolagem da realidade”. |
Não sei se o Presidente da República adivinhava na sua mensagem de há uma semana o que se passou na semana que agora acaba, ou o que se vai passar na que agora começa pois há mais um “caso” com uma ex-secretário de Estado, Rita Marques, que ocupou um cargo que não devia ocupar, o ministro Fernando Medina saiu do Parlamento na sexta-feira com muitas respostas por dar e não sabemos se o novo secretário de Estado do Ambiente (antigo braço direito de Mesquita Machado em Braga, como se recorda aqui) não será o próximo a ter de explicar o seu passado. |
António Costa, até há uns meses apresentado como o político mais experiente e mais habilidoso de Portugal, já nem num debate parlamentar, o seu terreno preferido, parece estar à vontade. Mas isso é o menos – o mais é que, a cada nova remodelação no seu governo, fecha-se mais sobre si mesmo, como se tornou gritantemente evidente esta semana. O PS é cada vez mais o partido onde se sai dos bancos da universidade para o conforto de um gabinete de assessoria, depois vai-se subindo nesse ambiente protegido e cúmplice, depressa se é adjunto, porventura chefe de gabinete, à primeira oportunidade passa-se a secretário de Estado, à segunda a ministro. Muitas vezes tudo em família, ou entre amigos. |
São os fidalgos da casa socialista, como escreveu Helena Matos, são por regra pessoas que circulam há muito pelos mesmos corredores, os mesmos gabinetes, umas vezes os mesmos escritórios de advogados, outra vezes as mesmas festas família, quase sempre dentro do mesmo círculo de amigos e relações, é também gente que existe e medra porque, como notou Rui Ramos, “numa sociedade a empobrecer, aqueles que mandam tendem naturalmente a reservar os privilégios para si próprios”. É tudo muito pequenino, como pequeníssimo é o mundo de António Costa, candidamente revelado na entrevista Francisco Balsemão e bem observado por Miguel Pinheiro. |
Tudo isto é verdade, tudo isto está sempre a fazer reaparecer os fantasmas do passado, mesmo que sob a forma de uma samarra de Vinhais, a terra de Armando Vara, porque tudo isto nos faz sempre regressar a uma forma de pensar e de fazer política que, ao contrário da ilusão de muitos, nunca deixou de ser a matriz do partido dos “meninos de ouro” do PS (José Sócrates primeiro, António Costa depois). Sim, é verdade, a derrota nas eleições de 2015 obrigaram António Costa a converter-se a políticas em que não acreditava – as “contas certas” –, mas a chegada ao poder nessa altura, mesmo sendo o segundo partido, e sobretudo a maioria de 2022, consolidaram uma forma de actuar e de governar que mostra até que ponto o PS de hoje, o PS de Costa, continua a ser o PS de José Sócrates. |
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É um PS que não quer apenas mandar em tudo – acha-se com direito a mandar em tudo, e por isso ocupa sem pudor a máquina do Estado e volta-se contra tudo o que no Estado são entidades ou reguladores independentes. É um PS que continua a querer comandar a economia, e se já não existe uma banca privada em condições de ser controlada, se pelo caminho algumas das grandes empresas portuguesas foram destruídas, então aboletemo-nos com a TAP e reservemos para o Estado os fundos do PRR. É um PS que suporta mal a crítica e onde estamos sempre a tropeçar em casos que deviam estar a ser tratados pela Justiça, um PS, e um primeiro-ministro, que à primeira notícia desagradável apenas substituíram a retórica dos “ataques de carácter” pela retórica desculpabilizadora dos “casos e casinhos”, recusando-se a ver o que muitas vezes entre pelos olhos dentro e tratando apenas de defender “os seus”, mesmo contra toda a razoabilidade. Ou então passando ao insulto directo às oposições, como sucede cada vez mais que António Costa desce ao Parlamento. Há em tudo isto, para usar a expressão do Luís Rosa, um claro déjà vu da arrogância socrática. |
Eu sei, ou eu adivinho: lá vem a obsessão com José Sócrates, lá vem a conversa sobre José Sócrates. Pois fiquem sabendo que não fujo ao desafio: tenho mesmo uma obsessão com José Sócrates não apenas por ele ter “mercadejado” o lugar de primeiro-ministro, não apenas por ele ter levado o país à bancarrota, mas por tudo o que o tornou possível e por tudo o que continua a ser possível em Portugal e na nossa governação apesar de Sócrates, como político, já ser passado. E tenho essa obsessão porque se Sócrates dificilmente sairá algum dia do seu exílio na Ericeira, o socratismo não saiu da cultura de quem nos governa, o que não me surpreende. |
Há uma parte desse socratismo que nos entra pelos olhos dentro, ainda mais esta semana em que o homem da blogosfera socrática, João Galamba, chegou finalmente a ministro. É que ele não está sozinho. Fernando Medina, ministro das Finanças, foi o porta-voz entusiasmado da última campanha de Sócrates. Augusto Santos Silva, hoje segunda figura do Estado, seu fidelíssimo ministro. A sua vice-presidente na Assembleia chama-se Edite Estrela, essa amiga pessoal, tal como o marido, do antigo primeiro-ministro. O chefe de gabinete de António Costa é Vítor Escária, que também esteve no gabinete de Sócrates e era um dos mais influentes actores nos bastidores do poder socrático. |
Eu podia continuar a lista, ou lembrar que em 2009 – ainda em 2009 – o próprio António Costa considerava José Sócrates “um grande líder e um grande primeiro-ministro”, mas fico-me por aqui, o ponto está feito: os que nunca quiseram ver, os que sempre se recusaram a ver o que entrava pelos olhos dentro, estão novo – na verdade nunca de lá verdadeiramente saíram – no coração do poder. |
Em tempos escrevi que o pior cego é sempre o que não quer ver porque não há forma de dizer que não se sabia de nada. Os “casos” de José Sócrates acumularam-se ao longo dos anos, desde uma primeira notícia de 2001 sobre financiamentos duvidosos a uma DECO onde pontuavam seus velhos companheiros. As primeiras dúvidas sobre a casa na Heron Castilho são de 2004. A história da licenciatura na Independente a um domingo é de 2007. A rocambolesca história dos projectos de arquitectura que assinou na Guarda é de 2008. O caso Freeport estalou ainda antes das eleições de 2009. O “Face Oculta” – aquele em que as escutas comprometedoras acabaram destruídas – foi conhecido poucos dias depois das eleições de 2009. Foi nessas eleições que ele teve o apoio de Figo, o mesmo Figo que depois fez um estranhíssimo contrato com a Tagusparque. Pelo meio houve ainda a tentativa de compra da TVI. |
Reparem: tudo isto era público, tudo isto devia ter sido suficiente para que alguém como João Galamba não escrevesse um tweet em 2010 a perguntar se já alguém se tinha retratado das calúnias a José Sócrates, tudo isto antecedeu as investigações que levariam o ex-primeiro-ministro à prisão e tudo isto precede o que hoje sabemos sobre as suas cumplicidades com o grupo Espírito Santo ou a sua responsabilidade directa no negócio brasileiro que levou à destruição da PT. |
Mas se uma coisa foi aquilo a que já chamei a teimosia dos cegos voluntários, sobretudo a teimosia dos que beneficiaram muito dessa sua cegueira, o que hoje é evidente é que o mantra “à justiça o que é da justiça, à política o que é da política”, iniciado por António Costa precisamente no momento em que Sócrates foi preso, não funcionou apenas como um cordão sanitário para o PS, foi também uma forma de PS nunca discutir o legado de Sócrates. Sócrates acabou por ser tratado como o abcesso que se extrai com um bisturi, não como um cancro que não apenas corroera todo o organismo, um cancro que também era produto dos vícios desse mesmo organismo. |
Eu sei que a minha obsessão com Sócrates é antiga, não sei se a dele comigo se mantém (chegou a dizer numa entrevista ao Libération que eu era o seu melhor inimigo…), mas sei que essa minha obsessão me permitiu desconfiar sempre das suas políticas, mesmo quando até uma parte da direita as aplaudia, me permitiu nunca ser cego ao que entrava pelos olhos dentro, assim como sei que essa minha obsessão me permite identificar no PS de hoje os traços do socratismo de sempre, o que não me surpreende porque nunca no Partido Socialista se quis discutir o que tinha acontecido, ao partido e ao país, naqueles anos. |
Não é preciso que o líder seja corrupto ou venal, pecados que não terá, para que o corpo padeça do mal identificado no século XIX por Lord Acton: “o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente”. Sendo que não é preciso roubar para beneficiar deste ambiente malsão – basta ter a vida santa e protegida dos que vão circulando pelos mesmos corredores e têm a chave do cofre num país demasiado dependente do Estado. |
O imenso legado de Bento XVI |
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Há uma semana esta newsletter quase não pode referir a morte de Bento XVI, que ocorreu no último dia do ano. Limitei-me a referir o texto que eu mesmo escrevi no Observador– Bento XVI escolheu uma morte digna, e essa foi a sua última mensagem de Fé – e o perfil que o João Francisco Gomes tinha preparado – Bento XVI, o teólogo rebelde que transformou a Igreja. Não podia por isso voltar de voltar ao tema da sua memória, até porque como Joseph Ratzinger/Bento XVI deixa uma obra imensa (e muito importante) é bem provável que a sua influência seja sentida por muitos e longos anos. |
Escreveu-se muito no Observador não apenas sobre o seu legado – todos os textos podem ser encontrados aqui – mas também sobre o seu funeral, que acompanhámos em Roma. Há muitos textos de opinião, com diferentes perspectivas, vários podcast, documentos como a transcrição na íntegra da homília do Papa Francisco no funeral e uma entrevista que vos recomendo em particular, com o bispo português D. Carlos Azevedo, que coordenou a sua visita a Portugal em 2010 e há muito e viver no Vaticano. Em Como Bento XVI tornou o Cristianismo “fascinante para a cultura contemporânea” ele diz algo que me parece muito certeiro: “Foi um homem que sentiu o peso de toda uma história que a Igreja atravessou, mas também, olhando para o futuro, será um profeta que continuará a ser lido”. Eu também dediquei um Contra-corrente à sua memória: Quem foi Bento XVI? O seu legado é maior como papa ou como intelectual? |
Deixo-vos a seguir um apanhado de alguns dos textos que me pareceram mais relevantes, sendo que nem todos alinham pela mesma perspectiva: |
- Bento XVI: a arte de saber sair, de Henrique Monteiro, no Expresso;
- O “último” Papa europeu que protagonizou a grande ruptura católica, o obituário de António Marujo no jornal online 7Margens;
- Benedicto, fino teólogo, de Raúl del Pozo, uma das grandes figuras do jornalismo espanhol, no El Mundo;
- Benedicto XVI en la noche del mundo, de Ignacio Peyró, actual director do Instituto Cervantes em Roma, no El Pais, de que destaco esta passagem: “Si hubo algo benedictino fue la sutileza de ser menos amado que Juan Pablo II pero romper marcas en audiencias y libros vendidos, ser considerado oscurantista y abrir los archivos secretos vaticanos, ser visto como retrógrado y a la vez conversar con Küng”;
- La relación valiente de Benedicto XVI con las mujeres, de Lucetta Scaraffia, jornalista e historiadora italiana que, também no El Pais, defende a ideia de que “El Papa emérito no se escondió ante el escándalo de los abusos sexuales en el clero y evitó tentaciones ideológicas fáciles al afrontar el papel de la mujer en la Iglesia”;
- Benedict XVI – the defender of tradition who opened the door to reform, de Christopher Lamb, na revista católica The Tablet, texto de que destaco a seguinte passagem: “It is worth remembering that Benedict’s decision to step down also shifted the dynamics of the 2013 conclave, as it will of every future conclave. It made it possible for the cardinals to choose Francis, the first Latin American Roman Pontiff, the first from the Global South and the first to take St Francis of Assisi as his patron. Without a papal death, the cardinals were freed to have an honest discussion about the state of the Church and make a bold choice about who should lead it.”
- The piety of Pope Benedict XVI and his passion for the truth, um texto de Tracey Rowland na ABC News, o site da televisão pública Australiana. Muito interessante também a entrevista com esta teólogo Australiana publicada pela americana National Review, No Love without Truth: Benedict XVI’s Message to the World.
- The Quiet Genius of Pope Benedict XVI, de Francis X. Maier no Wall Street Journal;
- The intellectual legacy of Pope Benedict XVI, de Patrick Burke na inglesa Spectator;
- The First Afterlife of Pope Benedict XVI, de Ross Douthat no New York Times, onde se faz uma previsão de como a sua obra e memória perdurarão muito para além do sentido do seu relativamente curto Pontificado: “His full legacy will be felt across decades or even centuries. (…) Joseph Ratzinger the scholar and theologian and writer, Joseph Ratzinger the champion of a certain idea of Catholic Christianity — well, he has only just begun to fight.”
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Esta é naturalmente uma brevíssima selecção do muito que se escreveu esta semana sobre Joseph Ratzinger/Bento XVI, pelo que a mim só me resta desejar Requiescet in pace, que descanse em paz. |
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Regresso às origens do “curto século XX” |
Quando o Muro de Berlim caiu e o mundo soviético se desmoronou, o historiador marxista Eric Hobsbawm cunhou o conceito de que teríamos vivido uma espécie de “curto século XX”, um tempo de extremos (o seu livro sobre este período chama-se precisamente A Era dos Extremos) que teria decorrido de 1917 a 1991, ou seja, da Revolução de Outubro do fim da União Soviética. Subscrevamos ou não essa ideia, a verdade é que ela nos ajuda a compreender o século XX pelo que é sempre bom regressar ao momento em que tudo começou – sendo que para sermos exactos tudo começou não apenas com a Revolução de Outubro mas também com a guerra civil que se lhe seguiu. |
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Aqui há umas semanas referi-vos que um dos livros que tinha para ler era precisamente sobre esse período – Rússia – Revolução e Guerra Civil, 1917-1921 (Bertrand), de Antony Beevor – e foi um daqueles onde já peguei quer para compreender melhor o que hoje se passa na Ucrânia (um dos principais palcos da guerra civil), quer estimulado pela entrevista que o autor deu ao diário espanhol El Mundo, “El comportamiento de Putin se parece más al de Hitler que al de Stalin“. Houve uma passagem que me chamou especialmente a atenção: «La Primera Guerra Mundial fue la catástrofe original del siglo XX, pero la guerra civil rusa fue probablemente el conflicto más influyente del periodo. El choque entre derecha e izquierda, entre blancos y rojos, que luego se convirtió en el conflicto entre comunistas y fascistas, acabó llevándose por delante la democracia y el liberalismo en buena parte del continente. Generó la espiral de odio y de miedo que se manifestó en la Guerra Civil española y en la Segunda Guerra Mundial y que dominó buena parte del siglo XX. Aún hoy podemos ver los efectos de esa visión». |
Beevor é de facto um grande historiador (ainda este verão eu lera um dos seus livros, A Guerra Civil de Espanha) e neste relato sobre a Rússia de há cem anos tenho dado mais atenção ao período que conheço pior, o da guerra civil, e ido de horror em horror. Na Europa Ocidental temos muito a ideia de que a I Guerra Mundial terminou na “décima primeira hora do décimo primeiro dia do décimo primeiro mês de 1918” mas com essa noção tendemos a esquecer que ela se prolongou, mesmo que sob outras formas, em muitos países do leste europeu e sobretudo na Rússia, onde só terminaria, com a vitória dos “vermelhos”, três anos depois, em 1921. Nesse período cidades como Kiev ou Kharkhiv foram sucessivamente ocupadas por vários exércitos que se comportavam com uma brutalidade que ajuda a entender alguns dos horrores a que hoje voltamos a assistir. Nas “terras sangrentas” o sofrimento mais extremo não se conta apenas recordando o Holodomor ou a invasão nazi. |
O extremo ocidental |
Mantive durante quatro anos no jornal Público, depois de deixar de ser director, uma coluna a que chamei “Extremo Ocidental”. Muitas vezes me perguntaram o porquê desse título e a explicação era fácil. Primeiro, correspondia a um posicionamento político no sentido de ser uma defesa radical da herança cultural e civilizacional daquilo que se convencionou chama “Ocidente” e que tão atacada tem sido. Depois, coincidia com uma referência geográfica, pois habito perto do “extremo mais ocidental da Europa” (continental), o Cabo da Roca. Vou lá muitas vezes, ultimamente menos do que costumava ir sobretudo ao pôr-do-sol, porque a afluência de turistas é enorme. Mas ao nascer do Sol, em dias límpidos e frios, como era aquele em que tirei a fotografia que hoje partilho, tudo ali é porventura ainda mais mágico – pelo menos na minha perspetiva. |
E não partilho hoje esta imagem por acaso, apesar de a partilhar com uma semana de atraso (planeava fazê-lo a semana passada). É que a 28 de Dezembro o farol, que é o segundo mais antigo da costa portuguesa, completou 250 anos. Neste momento está em obras de beneficiação, pelo que não pode ser visitado (uma visita muito interessante, pois no interior há um pequeno museu), mas espero que todo o espaço saia muito valorizado pois este monumento foi entretanto entregue à gestão da Parques de Sintra/Monte da Lua e esta têm créditos bem firmados no que toca a obras de restauro e reabilitação. Esperemos portanto que a sua reabertura ao público não tarde muito. |
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Votos de um bom domingo. |
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José Manuel Fernandes, publisher do do Observador, é jornalista desde 1976 [ver o perfil completo]. |
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