Era o início do ano 1931 e o inverno rigoroso tinha abraçado toda a Suíça, trazendo uma densa neve que se fazia ver por toda a pequena vila de Bollingen.

Rowland H. tinha finalmente chegado à casa da Torre. A neve não se fazia cobrir totalmente nessa zona da casa porque as obras não paravam. Havia quem dissesse que as adições a essa parte da casa não paravam como sinal da cabeça criativa do seu anfitrião. Quem sabia bem disso era o senhor Rowland, que já tremia por todos os lados, mas tardava em queimar o que restava do seu cigarro. Deu um último intenso trago antes de o apagar e enterrar completamente na neve. Sabia que depois das celebrações do réveillon, a vida tinha dado um passo atrás novamente e pensava que ao esconder uma réstia do seu vício, o epílogo poderia ser mais sereno.

Ao entrar no consultório, Carl Jung já o aguardava junto à lareira e acabara de acender o seu cachimbo com uma casca que saltara de uma das achas. Saudou-o animadamente o Sr. Rowland:

— Ah! Finalmente, senhor Rowland! Venha aquecer-se! Parece que vai entrar em hipotermia a qualquer altura. — Riu-se, dando um abraço amigável ao seu cliente.

— Dr. Jung, finalmente conseguimos uma marcação. — Respondeu o Sr. Rowland.

O que trazia o Sr. Rowland ao consultório foi uma recaída no álcool e o homem viu na cara do seu terapeuta o desconsolo.

— Informei-o que seria o mais provável. Já analisámos que tal obsessão tende a preencher um vazio e ainda existem as questões metabólicas… — Começou o Dr. Jung. — O que me fez entrar numa profunda reflexão sobre o seu caso.

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— E a que conclusão chegou, Dr. Jung? — Perguntou o homem, tentando disfarçar a sua esperança, pois já se tinha iludido a si mesmo por diversas vezes.

— Sabe, eu sou apenas um intermediário para a cura. Um dos caminhos possíveis a seguir, mesmo que no seu caso pareça o único caminho. E talvez seja por isso que a minha mão pareça muito pequena para o apoiar.

— Então que devo fazer? Sinto-me sem alternativas. — Desanimou o Sr. Rowland.

— Existe uma via que pode ajudar em casos como o seu. Embora seja uma travessia complexa e não seja fácil de encontrar o destino. Existem mãos maiores do que as minhas. As mãos de uma comunidade que se juntam perante uma entidade maior do que todos nós. Juntando isso a um profundo arrependimento, pode ser que encontre a resolução que procura.

— Dr. Jung, sei que nem sempre fui o melhor discípulo, mas mesmo que isto represente a nossa última reunião, quero que saiba que as suas palavras irão ecoar continuamente na minha alma. Diga-me o que fazer!

— Bem… Existe um grupo onde conheço um conjunto de pessoas. Todas elas parecem-me sérias na sua vocação. Chama-se grupo Oxford. Já falei de si… Estão disponíveis para o receber no sábado.

— Só tenho a agradecer-lhe, Dr. Jung.

— Quero que leve uma coisa consigo como um dos últimos exercícios.

Jung entrega a Rowland um maço de folhas amareladas, mas onde a tinta era ainda bem visível, marcando o nome William James. Centrado a meio da página estava escrito “Gifford Lectures” e escrito à mão havia uma dedicação de Jung onde saltava à vista uma pequena frase seguida de uma expressão latina: “No caminho a mesma substância se encontrará Spiritus contra Spiritum”.

Estava lançada a primeira pedra para aquilo que seriam as fundações dos Alcoólicos Anónimos.

No grupo Oxford, Rowland aprendeu a meditar, a rezar, mas acima de tudo a dádiva do serviço ao próximo. Lá encontrou a sua conversão e libertação do álcool. Por isso trouxe consigo um antigo companheiro da bebida. Ebby T., que mais tarde seguiu o mesmo rumo e juntou um antigo companheiro de escola, também ele alcoólico, ao grupo. Este último conhecido por Bill W.

As experiências de resistência, recaída, abstinência e conversão destes três indivíduos são os pilares fundacionais dos alcoólicos anónimos. O cimento que une estas pedras são os seus 12 passos.

Pela minha experiência clínica e vasta leitura, é difícil descrever estes passos como uma jornada montanhosa onde seguimos do mais brando para o mais exigente. Todos eles revelam o seu grau de dificuldade a cada um dos que se passeiam neles. Todavia é um facto que existem dois passos que se destacam na sua importância. A meu ver são eles o primeiro passo e último. São o alfa e o ómega da jornada.

O primeiro, pois sem ele a pessoa não assumiria a sua vulnerabilidade perante o problema. Neste passo a pessoa assume a sua impotência perante o álcool e o descontrolo na sua vida.

Somente quando assumimos a nossa vulnerabilidade, podemos lançar conectores para que os outros e a vida nos alavanquem. A resistência ao problema não o apaga. Já dizia Calligaris “O que atiramos pela porta fora, volta mais forte pela janela adentro”. Todas as pessoas entram num novo ano cheias de resoluções, mas nunca a admitir que têm um problema. Por isso é que depois do fulgor das duas primeiras semanas no ginásio, chega a ‘Blue Monday’ acompanhada de desmotivação generalizada. Assumir o problema é dar o derradeiro passo para a sua resolução, nunca o inverso.

Porém, o mais curioso é que a generalidade das pessoas podem fazer a maioria dos passos, mas se não completarem o décimo segundo, a recaída é o mais provável. Não falha. Curiosamente este passo dita que a pessoa deve experimentar um ato de caridade e dádiva, ao cuidar do próximo, entregando a sua aprendizagem através do apadrinhamento. O que demonstra que o ciclo somente se completa quando somos capazes de sair da nossa bolha através da relação. A entrega ao outro é nesse sentido um acto de transcendência, porque nos transcende e obriga a sair do nosso centro de referência. Bill W. admitia numa carta dirigida a Jung que uma das maiores aprendizagens para a resolução da sua obsessão com o álcool, adveio do livro de William James, que o ajudou a submeter-se à dissolução do Ego. Isso aconteceu apenas quando conseguiu vislumbrar um propósito, que era trazer aos outros a sobriedade. Esse era o seu despertar, mas o materializar desse sonho trouxe os seus desafios, porque nem sempre é fácil contagiar o próximo. Todavia é aí que reside a fórmula, porque como Byung-Chul Han de algum modo nos ensina, para escapar dessa exaustão autorreferencial, devemos permitir que o Outro influencie as nossas vidas. O encontro com o Outro muitas vezes manifesta-se em negatividade, não no sentido de algo prejudicial, mas como resistência e desafio à nossa visão fixa do mundo. Desafia as nossas crenças e as nossas conquistas. Se a pessoa passar o teste e a sua convicção for pura, talvez possa vencer as contaminações e auxiliar o próximo.

Nas minhas 12 passas para a humanidade desejei mais abertura e entrega a estes dois passos. Sei que é humilde o pedido, mas os AA também começaram como uma gota no oceano e hoje são um oceano que muda vidas.

Feliz 2024!

Nota do Autor:

Neste texto, emprego ocasionalmente um recurso estilístico que envolve a criação de uma narrativa fictícia. As conversas apresentadas são fruto da minha imaginação e, portanto, podem não refletir eventos reais. Estas são utilizadas com o intuito de ilustrar os pontos abordados de forma mais vívida e envolvente, sem a intenção de retratar acontecimentos históricos precisos.