…Esta lembrança doce,
Envolta numa lágrima,
manda-te desde a terra
onde os teus foram nados
uma alma dos teus versos namorada

Rosalía de Castro – Poema a Luís de Camões

A história tem coincidências estranhas e o destino ri-se dos homens. O dia 25 de julho é o dia de São Tiago, e por isso é o dia da pátria galega. Mas foi precisamente nesse mesmo dia, em 1139, que a nobreza galega de Entre Douro e Minho, resolveu escolher um rei próprio que iria fundar um novo reino, Portugal. Portugal não pode, no entanto, deixar de ser galego. Galiza e Portugal são duas palavras que querem dizer o mesmo. Galiza, a terra da Cale. Portugal, o porto da Cale. Cale, que a Norte do Minho é prefixo e a Sul, sufixo. A palavra é de origem celta e significa porto, baía, ancoradouro e de onde derivaram, aliás, diversos vocábulos marítimos.

O dia da pátria galega assinala então, e também, o dia da batalha de Ourique. Batalha, onde Afonso Henriques foi eleito e alçado rei. Ainda não rei de Portugal, mas dos Portugueses. E quem eram esses Portugueses? De onde vinham? O que queriam? Porque escolheram e elegeram rei?

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Que o Condado Portucalense era a terra onde vivam os Portugueses, isso é do conhecimento geral, mas o que desde a fundação do reino de Portugal se passou a ignorar foi que as terras do Condado Portucalense eram não só terras galegas, como constituíam a principal região da Galiza, onde se localizava Braga, a capital do reino e também a Foz do Douro, que era na altura o principal ativo geoestratégico da Galiza, o centro nevrálgico das rotas de cabotagem entre os Mares do Norte e o Mar Mediterrâneo.

Em 1128, na batalha de S. Mamede, dois projetos se opunham para os destinos da Galiza. De um lado, D. Teresa e os Trava, da Casa de Trastâmara, que pretendiam a unidade da Galiza em torno da nobreza das terras da Corunha e Compostela. Do outro lado, os infanções de Entre Douro e Minho que recusavam tal projeto e pretendiam a restauração da supremacia de Braga sobre a Galiza. A influência dos Trava sobre a corte galego-leonesa instalada em Leão era enorme, a que se juntava também o importante apoio de Diogo Gelmires, o arcebispo de Santiago de Compostela.

Aparentemente, o equilíbrio das forças pendia para os Trava, mas Afonso VII, Imperador de Toda a Hispânia, rei de Leão de Castela e da Galiza, talvez por receio de perder a sua coroa para a Casa de Trastâmara, manteve-se fora da disputa entre Braga e Corunha. Em 1128, Braga triunfou. Afonso Henriques teria então cerca de 18 anos e era o principal rosto da nobreza de Entre Douro e Minho, mas ainda assim estava longe de ser reconhecido como o rei dos Portugueses. Só o foi 11 anos depois, em Ourique. Até lá assinaria como Príncipe de Portugal.

Em Ourique, Afonso Henriques foi eleito rei pelos seus pares, ao abrigo do Código Visigótico. A sua eleição como rei dos Portugueses não significou, muito longe disso, que não pretendesse o trono da Galiza e não desejasse que o seu reino fosse da Corunha ao Algarve. Ainda chegou a ter cúria em Ponte Vedra, na atual Galiza, mas o assassinato de Ibn Qaci, o seu grande aliado a Sul do rio Sado, obrigou-o a abandonar temporariamente o intento de estender o seu reino até à Corunha e a ter de se focar no Sul, garantindo zonas tampão de defesa territorial.

O abandono definitivo do projeto de reunificar a Galiza em torno de Coimbra, cidade que aliás pertencera ainda ao reino da Galiza, só caiu após a batalha de Badajoz. O avanço de Afonso Henriques para Badajoz teve o objetivo evidente de “trancar” a expansão leonesa e, a partir daí, remover o obstáculo que o reino de Leão representava para o seu projeto.

A história é conhecida. Fernando II de Leão foi defender os mouros de Badajoz e Afonso Henriques, emboscado dentro do castelo, acabou cativo do rei leonês. O reino de Leão estaria no entanto condenado. Apertado entre Portugal e Castela, sem grande substrato cultural e dependendo das terras e dos povos galegos, pouco mais foi que um irrelevante episódio na história da Hispânia.

A Galiza do Norte, sempre condicionada pela Casa de Trastâmara, acabou por não acompanhar a aventura independentista do Entre Douro e Minho e acabou refém de Castela. E enquanto a língua galega se enriquecia a Sul do Minho, já sob o nome de Português, a Norte do Minho acabou corrompida pelo castelhano num continuado, e por vezes violento, processo de desagregação linguístico-cultural do território que hoje é conhecido por Galiza.

Recentemente foi anunciado o comboio de alta velocidade Porto-Valença, para efetuar ligação com Vigo. Este será talvez o fator maior que permitirá reunir toda a Galiza. Mas ainda que os Trastâmara tenham acabado sob o peso dos Habsburgo, a atração gravítica de Madrid sobre as novas elites galegas permanece. Assim que o TGV Porto-Vigo foi anunciado, logo logo Cedo Abel Caballero, alcaide de Vigo, anunciou que em breve: “É imprescindível que haja um Vigo-Madrid”.

A Galiza do Norte continua sem entender porque é que em 25 de julho de 1139 os Portugueses, os Galegos do Sul, foram forçados a escolher rei seu e a fundar um outro reino, onde a língua do reino da Galiza se continuou a enriquecer e se estendeu a todas as esquinas do mundo, a partir de Lisboa. Ora, Lisboa não poderá ser engolida pela centralidade de Madrid com um TGV com apeadeiro em Vigo. Alguém poderá, por obséquio, explicar isso ao alcaide de Vigo?