Há dias, numa conversa em que se discutiam algumas das medidas de saúde adoptadas na pandemia, um meu amigo (não médico) afirmou, como argumento definitivo para a rigidez com que cumpriu e ainda cumpre todas as indicações das autoridades sanitárias: “Eu confio na ciência e nos médicos”. E, acossado por novos argumentos em contrário, repetiu a frase, em tom áspero e lapidar. Aceitei, brandamente: há amizades que valem mais do que ter razão. Mas eu, que também “confio na ciência e nos médicos”, sei bem as razões pelas quais desconfio… ou relativizo. Dou hoje um exemplo pessoal.

Há um ano, foi-me diagnosticada uma neoplasia. Com a facilidade que advém de tantos conhecimentos e amizades na profissão, consultei vários colegas especialistas da área em questão e, com algum espanto, encontrei uma multiplicidade de opiniões que, em bom rigor, não me era estranha. Sou médico e, naturalmente, quereria “seguir a ciência”, como agora se diz. Mas o que fazer quando a ciência de tantos colegas meus, respeitáveis e competentes, me foi apresentada de formas tão diversas? Desde o “tens de ser operado imediatamente” até ao “não faças nada, espera seis meses e repete os exames”, muitas opções contraditórias de tratamento me foram propostas, sempre por médicos igualmente excelentes, todos com bons resultados – cada um com a sua técnica, cada um com o seu método. E eu fiquei sem saber qual a ciência (in)certa que deveria seguir.

É que a Medicina não é uma “ciência exacta”, mas sim uma prática que tem tanto de ciência como de arte. A Medicina é uma ciência aplicada ao Homem, onde a incerteza e o risco são constantes e imprevisíveis. Curiosamente, a respeitável Enciclopédia Britânica, nos dois lacónicos parágrafos em que define “Medicina”, usa 4 vezes a palavra “ciência”, 4 vezes a palavra “arte” e 4 vezes a palavra “prática”. Não por acaso, o juramento de Hipócrates fala de arte, não de ciência; e fala de pessoas, não de leis.

Entender isso é um dos pressupostos indispensáveis para ser um bom médico. A ciência, os números, a estatística, são indispensáveis à Medicina, assim como a arte de a aplicar. Mas igualmente indispensável é o tempo necessário para avaliar os resultados de cada novo tratamento, esse tempo que não se pode acelerar. Ora, a “ciência instantânea” e escassamente validada que marcou esta pandemia colidiu frontalmente com o bom senso em várias ocasiões. E foi com mágoa que observei entre nós como as autoridades sanitárias, bem como vários médicos, e sobretudo a sua Ordem, decidiram não só ignorar os princípios básicos da ciência e arte médicas, como também perseguir, apoucar e silenciar as vozes contrárias, aquelas que lembravam uma verdade incómoda: não temos a certeza. O célebre “primum non nocere” ficou na gaveta das inconveniências. As decisões foram políticas e sujeitas à pressão mediática. Os custos, sanitários e económicos, estão agora à vista de todos.

Há pouco mais de 2 anos (mas parece ter sido há tanto tempo!), escrevi que esta pandemia tinha sido iniciada por decreto e seria terminada por decreto. Assim aconteceu, há poucas semanas, ao arrepio da tal “ciência exacta”, pois os números continuam iguais ao que eram então – desta vez perante o silêncio geral. É com alívio que observo enfim esse “fechar de olhos”, essa aceitação, essa difícil aprendizagem da arte… que é ciência. Temo que pouca gente tenha percebido o verdadeiro fundo médico da questão, temo que a mortalidade por outras causas continue a aumentar (alguém se importa com isso?), temo que a ciência e a arte médicas tenham sido feridas de morte na sua credibilidade, na tal “confiança” de que falava o meu amigo.

Temo que as vozes contrárias não voltem a ser toleradas e que esta nova ciência sem arte permaneça, cada vez mais desumana. Os responsáveis por tudo isso continuam aí, especialistas na arte de escaparem impunes.

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