“O nosso conhecimento da direita, comparado com o que temos da esquerda, continua a ser ainda muito rudimentar”

A frase é de 1978 mas continua actual. Talvez mais actual que nunca.

Quem a escreveu foi Zeev Sternhell, que morreu em Junho do ano passado. Conheci-o nos anos 80 e entrevistei-o longamente com o Nuno Rogeiro para o Futuro Presente. Era uma revelação, aquele judeu polaco, nascido em Przemysl, em 1935. Atendendo à data e ao lugar de nascimento a curiosidade fora imediata – como escapara? O pai morrera logo depois da ocupação soviética e a mãe e a irmã, mandadas para o ghetto, morreriam às mãos dos nacionais-socialistas. Mas o pequeno Zeev fora salvo por um tio que o conseguira levar com papéis falsos para a vizinha Ucrânia e baptizá-lo. E fora assim, passando por católico, que escapara. Vivera uns anos em França e em 1951 emigrara para Israel. Como bom patriota servira em todas as campanhas; mas, entre guerras, fora estudando ciência política e doutorara-se em Paris com uma tese sobre Barrès: Maurice Barrès et le nationalisme français.

A originalidade de Sternhell foi a pesquisa dos antecedentes franceses do fascismo, que considerou a expressão de uma outra direita: a direita revolucionária, que se acrescentava às clássicas três direitas de René Rémond – a legitimista, a orleanista e a bonapartista.

Homem de esquerda, crítico dos governos de direita, de Begin a Netanyahu, na sua coluna do jornal Haaretz, Sternhell foi  um dos grandes investigadores das raízes e da história do fascismo. Raízes que encontrou nos pensadores franceses da viragem do século XIX para o século XX – em Barrès, Drumont e, sobretudo, em Georges Sorel. A partir daí, construiu uma sólida carreira académica.

Foi a frase de Sternhell, tirada de La Droite Révolutionnaire, que me serviu de epígrafe para A Direita e as direitas.

Volto agora a citá-la porque, passados todos estes anos, o conhecimento da Direita, de rudimentar, tem vindo a tornar-se quase caricatural. Com a hegemonia da esquerda na comunicação social e nas Ciências Sociais, é cada vez mais a esquerda quem descreve e define a direita. E, na esquerda, são cada vez mais raros os Sternhell e mais numerosos os que se atribuem o monopólio da Verdade e da Bondade, do idealismo e das grandes virtudes, pintando “o inimigo” como “o mau” de um qualquer filme B. Por ignorância mas também por táctica.

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Por cá, foi o Dr. Cunhal o mestre da táctica. A táctica da amálgama. Sempre que falava do Estado Novo, Cunhal falava no “nazi-fascismo de Hitler, Mussolini, Franco e Salazar”. Começava na Gestapo, nos campos de concentração, no Holocausto, com os seus milhões de mortos, passava tranquilamente pelo Duce e pelo Generalíssimo e chegava a Salazar, como se fosse tudo uma e a mesma coisa. E repetia-o até que se tornasse, como se tornou, uma “verdade universal e transversal”.

Podem hoje os herdeiros locais de Lenine e de Trotsky exaltar as mesmas ideias e modelos que geraram o Goulag ou a Revolução Cultural maoista, que não há na classe política quem se atreva a mencionar a sua filiação ideológica. Pelo contrário, a área política à direita do PS, intelectualmente colonizada pelas esquerdas, continua a inibir-se de proclamar valores e princípios de direita – de qualquer direita –, estremecendo perante um vislumbre de possível associação ao “nazi-fascismo de Hitler, Mussolini, Franco e Salazar”.

Porque o Estado Novo defendera autoritariamente e de forma não democrática valores como Deus, a pátria e a família, as direitas partidárias, assustadas com a colagem, andaram, desde então, exaustivamente à procura de outros valores que as pudessem distinguir das esquerdas. À falta de melhor, pegaram no liberalismo, sobretudo no liberalismo económico, opondo-o ao socialismo. Uma distinção importante mas curta. E agora claramente insuficiente, com a adesão descarada das esquerdas ao liberalismo económico e até ao capitalismo globalizante.

As direitas que estão hoje a afirmar-se na Europa, de Budapeste a Madrid, de Roma a Paris, são direitas nacionais – conservadoras, como o Fidesz húngaro ou o Vox espanhol, ou populares, como os Fratelli d’Itália de Giorgia Meloni ou o Rassemblement National de Marine Le Pen. São estas direitas que não têm medo de proclamar valores identitários nem temem as etiquetas que a esquerda lhes cola, que estão a triunfar.

Por cá, a direita parece sempre esquecer-se que, por mais derivas centristas e confissões de repúdio das “direitas iliberais” que faça, por muito que se desculpe e penitencie, não se livrará nunca dos rótulos da esquerda. E que líderes partidários desta direita (a direita que a esquerda no poder agora define, pesarosa, como “confusa e sem rumo”) já foram, eles mesmos, e não há muito tempo, o outro lado da cerca de onde espreitava a “ameaça à Democracia”, porta por onde se esgueirava, viscoso, o “nazi-fascimo de Hitler, Mussolini, Franco e Salazar”.

É certo que a ignorância, o primarismo, o imediatismo e a corrida ao poder invadem tudo e todos, mas tornam-se também cada vez mais evidentes à esquerda, desacreditando a sua pose de superioridade moral e intelectual. A pose que lhe tem permitido dissuadir “o inimigo” mediante a franca distribuição de rótulos intimidatórios. Tanto assim é que o Chega, que aparece claramente como um partido de protesto, deve o seu relativo sucesso, não só às qualidades tribunícias do seu líder, mas ao tempo de antítese em que nasce: a era em que passa a haver quem não se importe muito com os rótulos que os donos do poder e da comunicação lhe põem.

Passando da teoria à prática, há que perceber, com Carl Schmitt, quem é, a cada momento, o inimigo principal e qual a aliança que lhe pode fazer frente. Os políticos bem-sucedidos, além de terem princípios e valores de que não se afastavam, sempre souberam definir esse inimigo principal e, contra ele, aliar-se até aos inimigos da véspera.

É o que as direitas têm de fazer. No preâmbulo de A Direita e as direitas, depois de citar Sternhell, cito também um diálogo de Claudio Quarantotto com Giuseppe Prezzolini, na Intervista sulla Destra (1977).

Dizia Quarantotto: “Tendo exposto todas as definições da Direita dadas por outros só nos resta a tua. O que é a Direita?”

E Prezzolini, então quase centenário (morreria em 1982, com 100 anos) respondia: “É o conjunto das direitas, das que recordamos e das que esquecemos.”

Pensar a convergência destas direitas é capaz de ser agora o mais interessante, importante e necessário.