Por estes dias ouve-se falar muito de paz, da necessidade de paz, do fim das injustiças e da guerra, e eu reconheço que esse é um debate muito estimulante. O problema é que implementá-la à força constituiria sempre uma extrema violência, uma guerra ainda mais atroz. Quase que me envergonho de afirmar que a paz entre os homens é contra-natura. Eu cresci no meio de cinco irmãos, quase com a mesma idade, e sei do que falo. Lembro-me de como o sistema repressivo implementado pelos meus pais nem sempre funcionava como o de um colégio modelar, e que entre nós às vezes armávamos umas guerras intestinas tão acirradas que chegávamos a “vias de facto” – é inerente à espécie humana a competitividade, a luta pelo poder, já para não falar de sentimentos obscuros e outras motivações muito pouco nobres. Além disso a inquietação humana, tanto dá para gestos e criações de grande nobreza como para os mais mesquinhos e destrutivos. Não é invulgar que o excesso de bem-estar em conjugação com o tédio promovam o conflito (a decadência) em todas o género de comunidades. É sabido que quando o ser humano não tem problemas vitais para solucionar inventa-os.

Que a Miss Mundo e poetas entontados pretendam acabar com as guerras é perfeitamente compreensível – até eu se me distrair caio nesse equívoco. Só que eles não entendem que o que desejam é um mundo sem pessoas. Sem pertença familiar, cultural, religiosa, enfim; sem desejo, sem afectos, sem humanidade.  A canção “Imagine” do John Lennon é um logro infantil. Mas não pensem que eu não desejo a paz no Mundo: rezo por ela frequentemente, mas principalmente pela minha paz interior, que também é difícil, mas está mais ao meu alcance. E não precisamos de ir para o Médio Oriente para perceber como é extremamente difícil desmontar os equívocos intrincados e sobrepostos de erros políticos talvez bem-intencionados que ao longo da história cavaram feridas e acicatam ressentimentos, zangas e ódios, por estes dias gravados na pedra. No outro lado de um acto de justiça encontra-se muitas vezes uma brutal injustiça, invisível do ângulo contrário. A história ensina-nos como a arquitectura de uma paz duradoura provém quase sempre duma guerra com um claro derrotado que produza uma narrativa a preto e branco, onde dificilmente cabe um espírito humano, muito menos a história dos povos envolvidos. Depois, a excessiva simplificação de um conflito complexo é a tentação de quem pretende tomar posição nele. Sem o assumirem, os activistas quando reclamam a paz num determinado conflito tomam partido pela capitulação dum dos lados. Vejamos: eu posso em causa própria oferecer a outra face (render-me) para terminar uma determinada contenda que pareça insanável, mas não posso exigir que um terceiro o faça para minha conveniência, ou para conveniência de valores que eu considere superiores.

Assistir a uma guerra é um enorme incómodo para os nossos olhos, é uma aberração para qualquer alma nobre e bem-intencionada. Esfrega-nos na cara como as pulsões de morte convivem dentro de nós, domesticadas e arrumadas numa recôndita prateleira da nossa consciência funcional. Não é difícil, num conflito profissional ou familiar, como os que acontecem aos comuns mortais, adivinhar essa força brutal que habita no fundo de cada um com raízes num indomável instinto de sobrevivência. O melhor mesmo é não submergir nessas águas sombrias.

Só há uma coisa pior que a desconcertante e trágica natureza humana: aqueles que acham possível mudá-la através da lei ou de sistemas políticos. Está mais que provado que a construção de um Homem Novo é um processo por demais sanguinário e violento. O espírito humano não se encaixa dentro dumas talas. Além do mais a verdadeira salvação só será alcançável através de um acto de liberdade – pessoal e intransmissível. Só pretende mudar o mundo quem tem receio de se mudar a si próprio.

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