Se bem que a conversa tenha, compreensivelmente, resvalado para outros campos, o que estava inicialmente em causa no artigo de Maria de Fátima Bonifácio era a introdução de quotas étnico-raciais no acesso à universidade e, eventualmente, outras áreas. Antes de ir a esse assunto é imperioso dizer que a opinião de Fátima Bonifácio no referido artigo é muitíssimo contestável. Não no que diz respeito à sua oposição frontal à ideia de instituir quotas para certas minorias — oposição em que a acompanho —, mas nas generalizações que fez sobre ciganos e negros. De qualquer forma, tudo isso já foi exaustivamente apontado e analisado por Rui Ramos, José Manuel Fernandes e outros que, passado o irado clamor inicial, trouxeram visões mais ponderadas e equilibradas ao debate, e não é necessário estar aqui a repetir os seus argumentos, que subscrevo. É preciso, porém, acrescentar que por errada que seja a opinião de Fátima Bonifácio — como efectivamente é —, ela deve ser lida, debatida, contestada, mas nunca censurada, suprimida, criminalizada, como logo alguns exigiram e ao que parece com eco e proveito, pois segundo acabo de ler, a organização SOS Racismo vai processá-la, o que me arrepia mas não me surpreende. Já vi coisas destas acontecerem em França e dei conta disso num artigo que escrevi a propósito da perseguição movida ao historiador Olivier Pétré-Grenouilleau.

Mas voltemos ao assunto deste texto, isto é, às quotas que constituíam,  justificadamente, o problema central de Maria de Fátima Bonifácio. No meio da sua abordagem de outras questões e na enxurrada de indignações que daí resultou, muitas pessoas terão perdido de vista esse problema. Mas Rui Tavares, um dos mais atentos e focados pensadores da nossa extrema esquerda, logo o puxou de novo para a linha da frente. A pretexto de atacar aqueles a quem chama “neo-reaccionários”, o líder do Livre afirmou que o artigo de Fátima Bonifácio foi “facilmente” publicado porque a articulista em questão transporta consigo “o necessário capital social” enquanto que as “vozes das minorias” — que o não teriam — são excluídas “do espaço público”.  E, para explicitar melhor a sua ideia, Rui Tavares acrescentou o seguinte: “qualquer artigo das pessoas com as redes sociais e de contactos ‘certas’ é publicado sem grande questionamento, mas dar imprensa ou televisão às pessoas oriundas de minorias continua a ser uma prova de obstáculos e dificuldades insuperáveis. Escrevi-o aqui há uns meses, e repito: onde estão as crónicas e as colunas e os lugares nas televisões para Joacine Katar Moreira, ou Inocência Mata, ou Djaimilia Pereira de Almeida, ou Regina Queiroz, ou Solange Salvaterra, ou Beatriz Gomes Dias, ou Cristina Roldão (para citar só mulheres)? Mulheres também elas doutoradas ou até catedráticas, com percursos na investigação e no ativismo e na literatura, de áreas políticas ou partidos diferentes, ou de partido nenhum. Não é certamente por falta de mérito. Pelo contrário; para elas o crivo tem sido incomparavelmente mais apertado. A triste realidade é que a elite portuguesa — na academia, na imprensa e na política — não quis até agora fazer o esforço de dar espaço às minorias”.

Eu não sou advogado de nenhum jornal mas julgo poder afirmar que, no que toca à imprensa, não é isso que se passa. As secções de opinião de alguns jornais portugueses — e falo por experiência própria e por observação da realidade quotidiana — têm estado abertas a gente de vários estatutos e proveniências, conquanto os seus textos tenham actualidade e qualidade. Aliás, e para ficarmos só pelo Público, onde o artigo de Maria de Fátima Bonifácio foi publicado, podemos verificar que as mulheres negras que Rui Tavares refere já aí publicaram, a título individual ou colectivo, alguns artigos. E aos seus nomes poderíamos acrescentar o de outras mulheres negras e, claro — porquê excluí-los? —, o de diversos homens. Sucede que os textos, por norma, não são pagos. Talvez seja por isso e porque têm ao seu alcance outros canais de expressão e comunicação como o Facebook, o Twitter, etc., que muitos dos que poderiam escrever em jornais acabem por não o fazer, ou por não o fazer com tanta frequência. Isso, aliás, é válido para gente de todas as epidermes. Se não publicam mais será por várias razões das suas vidas mas não por serem liminarmente excluídos ou prejudicados devido à cor da sua pele ou por pertencerem a uma minoria étnica. Escrever textos não pagos na secção de opinião nos jornais não é exclusivo de certas pessoas, não é um “privilégio branco”. Fátima Bonifácio e eu temos provavelmente tanta dificuldade em publicar no Público como Joacine Katar Moreira, por exemplo, e é interessante que Rui Tavares não saiba isso.

Mas essa sua má percepção da realidade — que remete, imagino eu, para as suas fantasias sobre os supostos privilegiados —, é útil porque nos revela com cristalina clareza que é muito simplista e frequentemente errado deduzir do escasso número de negros presentes num determinado espaço ou esfera pública a obrigatória existência de racismo (que seria urgente combater através de quotas). Há poucos deputados negros no parlamento? Há poucos artigos escritos por negros na imprensa? A ida de negros às televisões é pouco frequente? “Racismo”, concluem as almas mais apressadas. Ora não é necessariamente assim. Há muitas outras razões a explicar factos como esses. Existe racismo em Portugal, sim, mas a contabilização de presenças não é uma forma fiável de lhe medir o pulso. É, sobretudo, e no presente contexto, uma forma de injectar e de alavancar, na opinião pública, a adopção de quotas.

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Nos tempos que correm tem-se lançado mão de quase tudo para criar e acentuar de forma artificial a oposição ou a disputa entre brancos e negros. “Museu da Escravatura” versus “Museu dos Descobrimentos”, lembram-se? A ideia (falsa) de que os brancos teriam facilidades nos meios de comunicação e os negros não, insere-se nessa mesma lógica de atrito e confrontação. A lista de nomes de mulheres que teriam supostamente dificuldade em publicar nos jornais apenas por serem membros da minoria negra não é nova. Como o próprio Rui Tavares assume, já a havia usado, em tom de queixa ou de reivindicação, num escrito anterior. Dir-se-ia que o líder do Livre quer, sem o afirmar explicitamente, quotas para que as pessoas negras possam, por inerência, escrever nos jornais sem terem de enfrentar a competição por um espaço que, sendo em princípio aberto, é, inevitavelmente, limitado.

Estamos perante uma campanha política. Seria bom que os leitores percebessem que a lista de nomes de Rui Tavares é uma forma de propaganda e de pressão, e que conseguissem, nesta questão das quotas, que já se perfila no nosso horizonte, manter o foco no que é essencial. Leio que há, em Portugal, mais de dois milhões de pessoas em risco de pobreza e de exclusão social. A pobreza é um problema, um gigantesco e injustíssimo problema, para os que a sofrem, mas a cor da pele não o é, ou já não o é, felizmente. Do que precisamos é de melhorar a condição económica e social de todos os pobres e não de quotas ou de outras formas de “discriminação positiva” só para alguns.

Historiador e romancista