A NATO fez 70 anos. Devia ser um momento de celebração solene. Afinal, não há notícia de alianças de segurança que durem tanto tempo, especialmente quando a razão da sua existência se desvanece. Mas não houve grandes razões para festejar. As relações transatlânticas nunca estiveram tão postas em causa e logo num momento em que as ameaças à paz no continente europeu voltam a ser motivo de preocupação.

Neste seu septuagésimo aniversário, há três questões de grande importância que é preciso colocar. Em primeiro lugar, porque é que as opiniões públicas tendem a ser pouco gentis na sua apreciação da Aliança Atlântica? Segundo, porque é que a NATO não se dissolveu quando a União Soviética colapsou? Em terceiro lugar, porque é que a Aliança Atlântica, 70 anos depois, corre um risco existencial?

A primeira questão está relacionada com o passado recente. Ainda que tenha sido palco da Guerra Fria, a Europa não sofre conflitos armados dentro das suas fronteiras desde 1940 (salvo as Guerra dos Balcãs, mas já lá vamos). Já praticamente não há memória de quem tenha a vivido, na frente de batalha ou nos países bombardeados. A histórias da época entram-nos em casa em filmes a preto e branco ou produções de Hollywood e, por muito que se estude, publique e recorde, não é a mesma coisa.

Mais, o fim do conflito bipolar e os anos de euforia triunfalista que se lhe seguiram deixaram parte da elite convencida que a guerra era uma relíquia do século XX, e que não havia qualquer necessidade de os estados continuarem a investir em defesa. A exceção seria, diziam as elites pacifistas, não sei se em maioria, se em minoria barulhenta, investir num exército para construir a paz nos países que nos anos 1990 se tinham deixado enredar em guerras civis, que poderiam ser concertadas implementando regimes democráticos e economias de mercado.

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A verdade é que se generalizou a ideia de que os investimentos públicos em defesa deviam ser preteridos a favor de investimentos em educação, saúde e demais obrigações dos estados providência, já a darem mostras de saturação. Esta narrativa é falsa e perigosa: sem um aparato de defesa suficientemente dissuasor os estados são vulneráveis a todos os tipos de riscos. Os estados europeus deram-se ao luxo de pagar um preço muito baixo pela garantia da sua segurança devido à sua pertença à Aliança Atlântica. E se esse facto passa despercebido, é porque a NATO faz bem o seu papel. Não é porque não precisamos de nos defender.

Mais, a verdade é que se a NATO não colapsou quando a sua missão terminou com sucesso (a defesa do território europeu durante a Guerra Fria), é porque se desenvolveu uma visão maior que as exigências geopolíticas. A Aliança foi fundada sob o signo da defesa do mundo livre contra a ameaça do totalitarismo comunista (tinha apenas um membro não democrático, Portugal) e através do convívio social internacional cedo passou a percecionar-se como uma aliança de democracias.

Estados Unidos e estados europeus, conscientes que uma aliança desta natureza tinha um carácter único, que permitia pensar além das questões de segurança, acharam imprescindível mantê-la. Havia todo um património de confiança entre os membros, um conjunto de valores comuns que todos queriam preservar e, na ordem liberal internacional, a NATO servia de centro de legitimidade militar e política, devido à vontade comum de estender a democracia e fazer valer os direitos humanos onde estes não fossem defendidos por força soberana. Assim, nos anos 1990, a NATO assumiu o papel de organização de acolhimento (e garantia de segurança) aos países que faziam parte do Pacto de Varsóvia, e foi um ator fundamental para travar o genocídio nos Balcãs e pacificar a região.

Houve sobressaltos. Ninguém, nem nenhuma organização nacional ou internacional, convive 70 anos sem zangas ou crises. Algumas das mais graves aconteceram recentemente: no início dos anos 2000, primeiro com a recusa da administração Bush em aceitar a ajuda da Aliança Atlântica no pós-11 de setembro, e depois com a profunda divisão entre estados-membros relativamente à invasão do Iraque em 2003. Apesar disso, a NATO manteve-se.

Houve quem falasse do seu alargamento a estados democráticos fora do espaço euro-atlântico, houve quem criticasse as contínuas missões no Afeganistão (que também se tornaram uma forma de justificar a sua existência). Mais a mais, os presidentes George W. Bush e especialmente Barack Obama, passaram a vincar repetidamente que o esforço financeiro para manter a Aliança tinha de ser partilhado. Mas ainda assim, e apesar do fracasso da última intervenção humanitária, na Líbia, a NATO, mais uma vez, resistiu ao tempo.

E aqui chegamos ao terceiro ponto: era natural que a Aliança tivesse voltado a ter um carácter geopolítico imprescindível em 2014. Aliás, a invasão da Ucrânia pela Rússia e a subsequente anexação da Crimeia mudou profundamente a Aliança, que voltou a percecionar Moscovo como uma ameaça existencial a alguns dos seus membros, nomeadamente as repúblicas bálticas. Avançaram-se contingentes móveis para perto das fronteiras com Moscovo (que ainda lá estão) e recomeçou a planear-se de acordo com as ameaças identificadas. E bem.

No entanto, dois acontecimentos estão a pôr a aliança em causa: o processo do Brexit, que tem desgastado profundamente as relações entre a Grã-Bretanha e os Estados Europeus, e a eleição de Donald Trump. O presidente norte-americano não esconde quatro elementos desfavoráveis à sua continuidade: (1) relações muito difíceis com a Alemanha, que Trump considera um estado comercialmente batoteiro relativamente aos EUA; (2) pouca tolerância com o multilateralismo, em que do seu ponto de vista, os Estados Unidos têm sido explorados por free-riders, o que o levou a ter uma atitude muito dura com os parceiros europeus relativamente à sua contribuições para a Aliança; (3) desvalorização das democracias enquanto parceiros legítimos e naturais dos Estados Unidos; e, finalmente, (4) simpatia por líderes nacionalistas, especialmente Vladimir Putin, que considera fundamental para equilibrar o poder da China, o principal desafiador do poder norte-americano.

Os dois últimos pontos são muito importantes. Mudam, simplesmente, o caracter da Aliança Atlântica. Por um lado, as democracias são estados “normais”, sem privilégios de regime comum a Washington. Na última cimeira, o presidente americano tornou claro que a NATO não goza de nenhum estatuto especial, pelo contrário. Por outro lado, Vladimir Putin é simultaneamente o líder internacional que Trump mais quer cortejar, e a maior ameaça a Europa. A Aliança Atlântica torna-se um anão num contexto de gigantes.

Não significa que este estado de coisas se perpetue. O presidente russo não tem sido o parceiro ideal, e há margem de manobra para a Europa voltar a tentar ter importância em Washington. Terá que manter as suas contribuições no PIB de defesa e procurar entender-se com o Congresso, onde o consenso bipartidário em relação à NATO se vai mantendo. Mas não faz sentido ignorar que, aos 70 anos, a NATO, que nos garante silenciosamente a segurança e que sobreviveu ao seu próprio sucesso, nunca passou um período tão difícil. E trabalhar para que a sua existência não seja posta em causa. Afinal, o sistema internacional está em reconstrução com a presença de novos poderes, e é nesse contexto que a Aliança tem de reencontrar o seu papel. Caso contrário, pode esvaziar-se rumo à insignificância.