Os erros dos evangélicos não são poucos. Mas os erros do Henrique Raposo a falar dos erros dos evangélicos são ainda mais. Numa soma tão errada como esta, convém resumir o erro maior: segundo o Henrique, os evangélicos estão, pela natureza do seu fanatismo intrínseco, destinados a provocar guerras civis em que não hesitarão matar os seus adversários, que confundem com o próprio Diabo e seus demónios. Dúvidas? A invasão ao Capitólio há dois anos e a invasão em Brasília há uma semana dissipam-nas. Se alguém está aqui a perder uma oportunidade não é o Henrique Raposo de fazer análise política, mas sou eu de fazer anúncio profético. É interessante que o Henrique consiga dizer que os evangélicos vêm para matar e o Expresso aceita; se eu tentasse fazer o mesmo no púlpito seria despedido. Enfim, há visões arrebatadas do Apocalipse que mais facilmente são aceites pela sensatez da imprensa do que pela sofreguidão da Igreja.

Nem escrevo tanto para mostrar que acerca dos evangélicos o Henrique é hoje um especulador. Escrevo mesmo mais para mostrar que acerca dos evangélicos o Henrique foi antes um espectador. Ao optar pelo primeiro em vez do segundo e não dizendo a verdade que conheceu, decidiu propagar uma ignorância que, naturalmente, ofende os evangélicos que lhe deram o contrário do que agora generaliza acerca deles. Também porque somos amigos, amigos mesmo, merece este artigo. Carreguei estes parágrafos durante toda a semana, macabramente iniciada segunda-feira no primeiro textinho do online do Expresso que ele escreveu (já desastroso), e reafirmada em entrevista ao Paulo Baldaia (outro pequeno horror). Trocámos privadamente mensagens pela internet que poderiam, pelo menos, ter qualificado alguma coisa na sua segunda intervenção—nada, só piorou. O que publicamente o Henrique simplificou sobre os evangélicos, simplifico também eu agora sobre ele. Tudo isto fará deste texto o mais comprido que já publiquei no Observador, mas vamos lá.

Primeiro, é preciso dizer que não me cabe defender a bondade de um movimento, mesmo que seja aquele a que pertenço, o evangélico. É à cabeça revolucionária ou reaccionária que compete defender a qualidade de colectivos. Há uma história longa a estudar para quem quer ir mais fundo no assunto de acreditar em multidões iluminadas por causas, à qual não é estranho o contributo de Marx (que remexeu no milenismo judaico para o tornar operário), toda a tradição romântica alemã (numa certa glorificação do conceito de povo, de Johann Gottfried Herder no Século XVIII), entre outros contributos. Desde que o mundo é mundo que a tentação de defender a qualidade superior de grupos existe, passando por formas mais tribais, étnicas, religiosas, imperiais, intelectuais, sexuais, you name it. Onde há pessoas, há pessoas a pensar que algumas pessoas, devidamente agrupadas, são melhores do que outras. Hoje essas preferências manifestam-se sobretudo pela ideologia.

É através da lente da política que, por um lado, encontramos a nossa identidade, e, por outro, nos desencontramos com quem não partilha da mesma—é daqui que nascem direita e esquerda. Revolucionários e reaccionários guerreiam na qualidade de irmãos gémeos desavindos, filhos da mesma mãe que nos diz o nome a partir da circunstância que encontrámos. O primeiro diz: “eu sou e represento a pobreza em que nasci”, o segundo: “eu sou e represento o povo em que nasci”. Apesar de advogarem identidades distintas, o plano final é o mesmo, de corrigirem as imperfeições da organização social em que tiveram origem. Para isso, é urgente defenderem a pureza dos que já ganharam consciência dessas injustiças. Quando esse grupo de gente devidamente consciente cresce, cresce também o nível de qualidade do movimento.

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Curiosamente, cabe aos cristãos mandarem estas causas para o lixo. A Igreja, o povo dos cristãos, tendo as expectativas mais altas possíveis, correspondentes a casar com Deus em Cristo, conhece-se má e não há causa, por bela que seja, que a redima (a redenção não é uma causa mas um Cristo). O povo cristão é tanto mais cristão quanto mais admite a sua impureza constante. A Igreja não é um projecto político também por isto: os projectos políticos tendem a precisar da fé na renovação de todas as coisas através da organização social, e a Igreja sabe que, por mais socialmente organizada que seja, será sempre a mesma vergonha. Claro que a Igreja se quer melhor e por isso deve fazer—mas só a chegada do noivo assim permitirá. Os cristãos não têm um projecto político; os cristãos têm uma espera. O nosso manifesto chama-se “Maranata!” Nesta perspectiva, os cristãos não querem integrar causas (até porque foi em forma de defesa de uma causa que Cristo foi executado).

Isto não significa que um cristão é indiferente à organização da nossa vida juntos. Há dois mil anos de experiência cristã que registam momentos muito diferentes de os cristãos tentarem dar o melhor de si nesta tarefa. Na história, o cristianismo já foi de contra-cultura a cultura dominante, com o melhor e o pior que cada experiência traz. Num percurso feito de tantas tradições diferentes, cabe-me a mim, enquanto cristão, confirmar as dificuldades do tema, ao mesmo tempo que não relativizo preocupações que continuam a ser absolutas: o meu cristianismo não quer ser político, ao mesmo tempo que não pode deixar de o ser também. É complicado? Claro que sim, como qualquer coisa realmente substancial é debaixo do sol.

Escritos estes seis parágrafos, cabe-me a tarefa que agora parece contraditória de defender o meu povo, os evangélicos. No meio de muita ignorância de como a ideologia funciona, muitos deles se associaram a Trump e Bolsonaro (apesar de haver desde o primeiro momento evangélicos que se assumiram anti-essa dupla—é só ter uma ligação à internet e verificar). Se nunca fui pró-Trump ou pró-Bolsonaro, também nunca me pareceu que o estrago prévio foi inventado por eles. O Francisco José Viegas explicou isto melhor no Correio da Manhã: “convém não esquecer que Lula foi o principal responsável pela radicalização que levou Bolsonaro ao Palácio Alvorada”. Ou seja: o problema não nasceu com os monstros populistas (e é tão fácil acreditar em monstros populistas), mas no que os tornou tão apetecíveis (o Diabo está nos detalhes). A desinspirada eleição precoce de Trump e Bolsonaro no coração de muitos evangélicos só com muita desonestidade corresponde ao plano global de guerra civil sanguinária intrínseco à sua fé, denunciado pelo Henrique. O Henrique decidiu não dizer a verdade que os evangélicos são muitos e diversos. Para poupança de espaço e raciocínio, o Henrique decidiu simplificar. Bastava não ter dito “os evangélicos” mas “uma parte dos evangélicos” que ninguém se zangava. Eu enfiaria a carapuça como me compete fazer de cada vez que evangélicos se enganam (não é raro).

Não dá é para ter sol na eira e chuva no nabal. Explico: quando católicos mais agudos querem escarnecer da Babilónia evangélica, o argumento vai mais ou menos assim: “cada um abre a Igreja que quer”, “desunem-se com base na interpretação de um versículo”, “é uma anarquia de uma capelinha assim e uma capelinha assado”, e por aí fora. Os evangélicos nesta perspectiva são maus por serem todos diferentes. Mas, estranhamente, os evangélicos também são maus por serem todos iguais. Não dá para falar seriamente sobre isto sem pararmos um pouco para pensar do que falamos quando falamos de evangélicos—eles são infinitas e numerosas manifestações religiosas filhas da Reforma Protestante, no início do Século XVI. É já meio milénio de gente que do respeitável centro da Europa à facilmente azucrinada América Latina, passando pelas facilmente azucrináveis África e Ásia (e, claro, a América do Norte), constitui um povo cheio de diferenças. O que mais consegue unir esta Babel? A obsessão pela Bíblia, sem dúvida. Mas a partir daí, há muito, muito mundo para descobrir dentro do que os evangélicos são (só no Brasil, estima-se que os evangélicos possam representar cerca de 60 milhões de pessoas—seis Portugais). O Henrique preferiu simplificar sem qualquer qualificação. Nesse sentido, houve uma verdade acerca dos evangélicos que decidiu não dizer.

O Henrique Raposo decidiu não fazer qualquer referência à sua experiência pessoal com evangélicos em Portugal—teve olhos para descobrir neles o Chega e não descobrir neles ele mesmo, sempre que por eles passou. Essa, confesso, foi a omissão que doeu mais. Se tivermos em conta que o número de evangélicos em Portugal é ainda baixíssimo, haver uma voz pública que fala numa minoria escolhendo nada dizer do que empiricamente ela lhe deu, é chocante. E é tão mais chocante porque, a partir da sua própria experiência pessoal, a simplificação da tese do Henrique era imediatamente colocada em causa (preferiu falar num artigo ridículo da Visão que para ligar os evangélicos à extrema-direita teve de escavar uma meia-dúzia deles que ninguém conhecia—esse artigo ridículo da Visão nem sequer conseguiu topar que no meio evangélico em Portugal pessoas que se assumam de direita são uma minoria). O Henrique Raposo não esteve na Segunda Igreja Evangélica Baptista de Lisboa duas ou três vezes. O Henrique conheceu e conviveu com a Igreja Evangélica a que pertenço. Nunca encontrou nela qualquer coisa que pudesse confirmar a simplificação que decidiu fazer acerca dos evangélicos e da liberdade dos outros que alegadamente odeiam. Pelo contrário: na diferença que encontrou entre o que ele acredita e nós acreditamos, só descobriu diálogo.

O Henrique Raposo decidiu ainda não querer compreender que os evangélicos não têm uma obsessão contra o aborto e não têm uma obsessão contra a homossexualidade. O que os evangélicos têm em relação a este assunto é precisamente o oposto. Havendo alguma obsessão, ela pertencerá a quem faz destes assuntos causas finais (e, eventualmente, coercivas). Com o progresso científico que a nossa época tem, dirá sobre ela o futuro que abortar era fundamental para a saúde pública, ou que abortar era fundamental tendo em conta um ideal de libertação política? Para uma época que tem encontrado em qualquer grão de areia um problema de género, será que é aos evangélicos que devemos apontar o dedo por não descodificarem a existência a partir do modo como copulamos? Mas não, para o Henrique é claro que serão os evangélicos, que não partilham do consenso crescente de que tudo se resume a poder e sexo, que de certeza tirarão liberdade à maioria mal ganhem a guerra civil para a qual já se preparam.

O Henrique sabe que isso não é verdade. Vocês, leitores, podem ver pelos vossos próprios olhos que o Henrique sabe que não é verdade. É ir ao YouTube e pesquisar por “Igreja da Lapa” e adicionar “Fim-de-Semana Cheio na Lapa”, “Henrique Raposo”, “aborto”, “Assunção Cristas”, “Adolfo Mesquita Nunes”, “João Galamba”, “Francisco Louçã”, entre outros nomes, da direita à esquerda. Durante meia década organizámos conferências sobre muitos temas, por vezes delicados, em que conversávamos com pessoas que respeitamos e admiramos, mesmo que nos antípodas do que defendemos—toda a gente escapou ilesa. Reparem: a minha Igreja, enquanto evangélica, não é melhor nem pior do que as igrejas dos pró-Trumps e dos pró-Bolsonaros. Não me custa aceitar que muitos evangélicos, com poder nas mãos, façam coisas terríveis (se o Henrique, com o poder de dizer a verdade, decidiu fazer diferente, eu e outros evangélicos também podemos cair no mesmo erro). O meu povo evangélico pode ser e muitas vezes é mesmo uma porcaria, não duvidem. Mas até isso acontecer, convém não fugir da verdade que nos recebeu em carne e osso, de braços e ouvidos abertos. É uma pena que te tenhas esquecido, Henrique.