A 11 de março de 2014, o Parlamento da Crimeia aprovava uma declaração de independência da República Autónoma da Crimeia e da cidade de Sebastopol em relação à Ucrânia. A 16 de março, enquanto o território estava sob ocupação militar russa, era realizado um referendo, oferecendo aos eleitores a escolha entre permanecer na Ucrânia com uma autonomia reforçada ou integrar a Federação da Rússia. Esta segunda opção venceu por uma esmagadora maioria de 96%, levando, dois dias depois, à assinatura de um tratado de integração da “República da Crimeia” e da cidade de Sebastopol na Rússia. Sob aparências de legalidade, se não de legitimidade, a anexação desta península tinha sido justificada pela Rússia, que invocava o precedente da declaração unilateral de independência do Kosovo de 2008, devido à política dos “neofascistas” que tinham chegado ao poder em Kiev, um discurso próximo do desenvolvido por Vladimir Putin para justificar a sua operação militar especial desencadeada em 24 de fevereiro de 2022.

O referendo de independência era, contudo, contrário ao direito constitucional ucraniano, que não autoriza a secessão unilateral de uma parcela do seu território. Neste sentido, a Resolução 68/262 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 27 de março de 2014, sublinhou que o referendo de 16 de março “não era autorizado pela Ucrânia”. Consequentemente, este não só não tem “nenhuma validade, não [podendo] servir de fundamento a qualquer alteração do estatuto da República Autónoma da Crimeia ou da cidade de Sebastopol”, mas também os Estados, organizações internacionais e instituições especializadas não devem “reconhecer qualquer alteração do estatuto da República Autónoma da Crimeia e da cidade de Sebastopol com base neste referendo”.

Novas anexações segundo os moldes da Crimeia?

Oito anos mais tarde, o cenário da Crimeia parece repetir-se com novas anexações pela Rússia de quatro regiões ucranianas. Após os referendos realizados de 23 a 27 de setembro de 2022, que resultaram numa vitória esmagadora a favor da sua integração na Federação Russa, com 99% de votos favoráveis em Donetsk, 98% em Lugansk, 93% em Zaporíjia e 87% em Kherson, estas regiões, representando 15% do território ucraniano, são doravante consideradas como suas pela Rússia, o país mais vasto do mundo.

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À primeira vista, poder-se-ia pensar que os acontecimentos de 2014 e 2022 são modelados no mesmo padrão. Se, no plano estratégico, as semelhanças são grandes, convém notar uma diferença relevante. Com efeito, ao contrário da Crimeia, que tinha ficado na sua totalidade sob o controlo das forças armadas russas, as quatro regiões ucranianas recentemente anexadas não estão completamente sob controlo russo. No terreno, os referendos foram organizados à pressa, em territórios que o exército russo apenas controla parcialmente, e em plena contra-ofensiva ucraniana.

O Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, advertiu imediatamente contra uma “escalada perigosa”. Frisando o empenho da ONU a favor da soberania e da integridade territorial da Ucrânia, declarou que “os chamados referendos” – “realizados durante o conflito armado ativo, em áreas sob ocupação russa e fora do quadro legal e constitucional da Ucrânia” – não podem ser descritos como uma expressão genuína da vontade popular. Acrescentou ainda que “qualquer anexação do território de um Estado por outro Estado resultante da ameaça ou uso da força é uma violação dos princípios da Carta da ONU e do direito internacional” e que a Rússia, na sua qualidade de membro permanente do Conselho de Segurança, “compartilha uma responsabilidade particular de respeitar a Carta”.

Sem surpresa, em 30 de setembro, uma tentativa de condenação das anexações russas pelo Conselho de Segurança não teve êxito. Um projeto de resolução apresentado pelos Estados Unidos e pela Albânia declarando que os “referendos ilegais” realizados nas quatro regiões ucranianas sob “controlo temporário russo” não poderiam ter “nenhuma validade” e “não poderiam servir de fundamento” a uma “qualquer alteração” no seu estatuto, nomeadamente uma “pretensa anexação” pela Rússia, foi vetado por esta. O texto, que exigia que a decisão de anexação fosse imediata e incondicionalmente anulada e que as forças militares russas se retirassem completamente, obteve apenas 10 votos favoráveis, tendo a China, a Índia, o Brasil e o Gabão preferido abster-se.

Por ocasião desta votação, o delegado russo criticou a manobra dos instigadores do projeto de resolução, cuja ida a votos não passaria de uma instrumentalização do Conselho de Segurança para obrigar a Rússia a utilizar o seu direito de veto, antes de responder perante a Assembleia Geral. Nos termos da Resolução 76/262 adotada na primavera passada, qualquer veto desencadeia agora automaticamente, no prazo de dez dias, uma reunião da Assembleia, a fim de que esta utilização seja debatida por todos os Estados-Membros das Nações Unidas, inclusive pelo membro permanente em causa que é convidado a justificar-se.

A invocabilidade da autodeterminação dos povos?

Seja na Crimeia no passado ou nas regiões de Donetsk, Lugansk, Zaporíjia e Kherson no presente, o discurso da Rússia baseia-se no direito internacional para justificar as anexações. Ontem como hoje, é invocada a proteção das populações russófonas e, mais especificamente, o direito dos povos à autodeterminação, que é brandido como um estandarte das reivindicações de independência. Os povos teriam um direito à autodeterminação externa que teriam expressado através do referendo – já em 2014 no caso das regiões de Donetsk e Lugansk, reconhecidas pela Rússia como Estados independentes três dias antes de invadir a Ucrânia – e que teriam exercido através da conclusão de um tratado de integração à Rússia.

Politicamente, a justificação é astuta, pois, em si, tal como reconhecido pelo Tribunal Internacional de Justiça no seu parecer consultivo de 2010 sobre a Conformidade com o direito internacional da declaração unilateral de independência relativa ao Kosovo, uma secessão – materializada por uma proclamação unilateral de independência ou por um referendo sobre o futuro estatuto de um território – é um facto que não é proibido nem permitido pelo direito internacional. Por outras palavras, embora os princípios da integridade territorial e da intangibilidade das fronteiras protejam o Estado das intervenções externas, não o protegem de um desmembramento. Portanto, a validade da secessão deve ser avaliada à luz do direito nacional do Estado em causa, a quem compete determinar a sua autodeterminação interna.

A opção política da Rússia de integrar os territórios ucranianos no seu território nacional permite-lhe assim contornar a proibição, que lhe é imposta pelo artigo 47 da Quarta Convenção de Genebra de 1949, de anexar um território ocupado. Ao passar de uma área ucraniana ocupada pelas forças armadas russas para uma área russa atacada pelas forças armadas ucranianas, de acordo com a Rússia, a sua operação militar especial não é uma agressão, mas uma ação de legítima defesa, dando-lhe a possibilidade de retaliar contra qualquer ataque em larga escala ao seu território, inclusive com armas nucleares em caso de perigo que ameace a existência do país.

Juridicamente, a justificação é contestável. A autodeterminação dos povos, reconhecida pela Carta das Nações Unidas como um dos objetivos da Organização (artigo 1 (2)), é de âmbito restrito. Em direito positivo, este direito só pode ser invocado de forma incontestável para criar um novo Estado no contexto de povos colonizados sujeitos à subjugação, domínio ou exploração estrangeira (Resolução 1514 da Assembleia Geral de 1960), ou mesmo, segundo uma interpretação alargada a partir da década de 1970, no contexto de povos sob ocupação estrangeira ou vítimas de apartheid.

No entanto, esta autodeterminação externa nunca se estendeu ao ponto de beneficiar qualquer minoria com veleidades de independência. Só poderia ser reivindicada – segundo a controversa noção de secessão-remédio – no contexto de povos vítimas de violações maciças, persistentes e sistemáticas dos seus direitos humanos fundamentais, esta opressão tornando a separação uma ultima ratio. As regiões ucranianas anexadas, dotadas de uma ampla autonomia, não se encontram certamente num tal contexto.

Além disso, se a incorporação de um território noutro território é possível, é ainda necessário que as condições dessa incorporação não violem o direito internacional, em conformidade com a máxima ex injuria jus non oritur (segundo a qual um facto ilícito não pode ser fonte de direitos para o infrator). No presente caso, quer se trate, por um lado, das graves violações cometidas durante a guerra, acusando-se cada um dos campos de crimes de guerra e de crimes contra a humanidade atualmente sob investigação do Tribunal Penal Internacional, por outro lado, da violação de princípios tão fundamentais como a integridade territorial e a proibição da força armada, reconhecida em 2 de março de 2022 pela Assembleia Geral na sua Resolução A/ES-11/1 (na ausência de uma condenação por um Conselho de Segurança paralisado), o contexto das anexações é nitidamente ilícito.

Face às medidas de anexação da Rússia, o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, anunciou, em 30 de setembro, que ia apresentar um pedido de adesão acelerada à NATO/OTAN, um pedido que dificilmente reunirá a aprovação unânime dos 30 países membros da aliança defensiva, em particular da Turquia. Proclamou também que a Ucrânia continuará a agir em defesa do seu povo nas regiões ocupadas, enquanto a União Europeia votou, a 5 de outubro, um oitavo pacote de sanções que, por enquanto, não parecem abalar a vontade de Vladimir Putin.